Homero Chiaraba – Soou o alarme (2020) analisa a crise do capitalismo sob o signo da pandemia. E propõe saídas ao inferno ultraliberal: ir além da recuperação do Estado, apostando na soberania popular e em rebeldias fora da racionalidade europeia
Um livro-manifesto: assim pode ser resumido a obra coletiva Soou o alarme: a crise do capitalismo para além da pandemia, de Soleni Biscouto e Jorge Nóvoa. Publicado pela editora Perspectivas em novembro de 2020, é mais um produto editorial de peso da coleção “Debates”, há décadas contribuindo para o pensamento social brasileiro, a formação de jovens pesquisadores e a população de leitores interessados nas questões candentes do nosso Brasil e o do mundo. É de se salientar que a coleção foi instituída pelo editor fundador da Editora Perspectiva, o professor da Universidade de São Paulo, Jacob Guinsburg, que deu a esta editora uma personalidade especial forjada na contestação das verdades recebidas, hegemônicas ou estabelecidas de boa parte das casas de livros do país.
Composta de três partes além de quatro textos de natureza prefacial e introdutória. Estes imergem imediatamente os leitores nos temas e problemas que encontrarão desenvolvidos de modo mais concentrado nas partes citadas. Animado por uma constelação de pensadoras e pensadores multinacionais, concatena com harmonia assustadoramente apocalíptica diferentes perspectivas do problema global que se tornou a pandemia de covid-19. O tratamento empregado a cada objeto específico, mobilizam e sensibilizam pela conexão com suas universalidades: é sinestésico constatar como problemas e sentimentos de cotidianos locais de diferentes países se repetem por todos os lados, em um fractal do neoliberalismo globalizado.
Da caput al fine o livro garante seu lugar nos anais do Brasil pós-democrático como um monumento de engajamento de seus autores com o ofício das ciências sociais, dentre os poucos livros importantes do mercado editorial brasileiro que associaram a abordagem da crise à dimensão aportada pelo novo coronavírus. Leitoras e leitores são capturados desde o seu prefácio, assinado por Gita Guinsburg, seguida pela “Carta” dos organizadores, uma mensagem de duplo alcance ultimada pelo dever do ofício de buscar as causas do fenômeno da crise: compaixão e solidariedade para os contemporâneos que vivem, sofrem e padecem nos tempos pandêmicos; memória, testemunho e alerta para os que ouvirão falar, no futuro, de um tempo no qual exploração de seres humanos, escravização de animais, amputação de florestas, a crença em mitos e a celebração da morte foram práticas normalizadas.
Acentuando o caráter singular desta obra, o texto de abertura – provavelmente o último produzido em vida por Marc Ferro, o grande historiador das inúmeras relações entre o cinema e a história que faleceu em maio de 2021 – traz um excelente diagnóstico acerca de uma ilusão dogmática que parece ter tomado as atuais análises de conjuntura: o ideal da metanoia pandêmica. Tal ideal consiste em uma crença irresoluta – quase agostiniana – no caráter redentor da tragédia humana. Tragédia esta que na era do capitalismo é denunciada por Ferro de forma categórica: “as sociedades já se esgotavam sem a covid-19”.
Os três primeiros artigos do livro têm tal fio condutor: contradizendo um discurso comum para o qual a pandemia seria uma catástrofe natural que levaria o capitalismo a um fim catártico, fazem pensar se o vírus é um fator natural, uma externalidade, uma contingência histórica na modernidade, ou ainda se a pandemia e sua crise são tão artificiais quanto o mundo que paralisam. E por artificial, quero invocar o sentido nu desta palavra – artifício, aqui que é produzido pela arte humana. Tal qual o mundo moderno que nos rodeia, a pandemia de covid-19 é mais dentre tantos dispositivos de exploração da vida e da morte. Procurando deixar de lado as teorias da conspiração, Jorge Nóvoa no texto “À beira do abismo: a exaustão ecológica planetária mais além do capitalismo” reforça a percepção e busca demonstrar como a pandemia de covid-19 não é a causa da crise, mas um elemento acelerador do caos e da barbárie que encontrou um solo fertilizado para germinar por uma década de austeridade fiscal e degradação ambiental. O historiador Ricardo Garrido adota um percurso diferente dos textos anteriores: recupera a história das pandemias desde a mais antiga, a Antonina, que assolou o Império Romano, passado pela Peste Negra e pela Gripe Espanhola, recuperando o aspecto transvalorativo de pandemias passadas. Aqui cabe uma impressão pessoal: sua argumentação reforçou-me o entendimento de que a singularidade da pandemia da covid-19 consiste em seu caráter verdadeiramente globalizado. Embora outras doenças já tenham adquirido o status de pandêmicas durante o capitalismo, talvez estejamos enfrentando a primeira pandemia essencialmente capitalista. Explico-me: eu ariscaria a dizer que a pandemia da covid-19, de sua origem, passando pela forma como espalhou-se até seus efeitos sistêmicos nas economias, nas sociedades, nas políticas nacionais, na relação estabelecida entre governos e indústrias farmacêuticas, na indústria do entretenimento e nas famílias é, em sua totalidade, um produto da máquina capitalista e nisto consistiria sua artificialidade. Na paralisação dos processos produtivos, a pandemia de covid-19 tornou-se ela própria uma estrutura reprodutora de capital.
Esta não é a posição dos autores do livro que, já no título geral, inscrevem a pressuposição de que a crise preexiste e irá para além da pandemia. Chamo assim, a atenção dos leitores para o que será explorado das diversas dimensões da crise do capitalismo, nos artigos que se seguem. Aliás, renunciando a qualquer perspectiva teleológica da história em À beira do abismo, Nóvoa chega à crise ecológica, não sem demonstrar a concomitância entre os processos de financeirização da economia mundial resultado das contradições mesmas do crescimento capitalista após os denominados 30 Anos Gloriosos posteriores à II Guerra Mundial. A opção à financeirização que os protagonistas do neoliberalismo adotaram é o que explica o processo de desindustrialização no mundo, a destruição dos postos de trabalho, a generalização da automação robótica e informática, além de vários outros aspectos que foram codificados por economistas, sociólogos, filósofos e historiadores diversos, como progresso e crescimento econômico. A ideia de “fim da história”, deixa a obra transparecer, não pode ser confundida com os limites do horizonte do capitalismo mundial.
A parte I é guiada pelo tema “Aceleração da história: agravamento da crise pela pandemia” e conta com quatro textos. O primeiro, assinado pelo destacado economista e professor emérito da Universidade de Paris, François Chesnais, aponta paralelos entre a atualidade, a qual denomina de “Crise do confinamento”, e o período que se seguiu à Crise de 1929. Os elementos que permitem tal paralelo seriam o aumento do protecionismo e o tratamento nacionalista da pandemia e do pós-pandemia. Sua análise comparativa acentua que o agravamento dos impasses do sistema capitalista mundial se expressou inclusive na velocidade da propagação do vírus possibilitada pela “mundialização do capital”, fórmula que dá título ao seu Opus Magnum, também publicado no Brasil. Tanto quanto Nóvoa já havia assinalado, Chesnais acentua com as dificuldades para uma recomposição do sistema, considerando inclusive os desgastes e limites colocados pelo meio ambiente natural planetário. Sua atenção não esquece o Pantanal mato-grossense e a Amazônia.
Em “A pandemia agrava a crise do mundo e da América Latina”, Cláudio Katz analisa os efeitos dos primeiros meses da pandemia para a América Latina, como os diferentes governos regionais lidaram com o combate ao vírus e reforçando, ao final, as já conhecidas e desejadas fórmulas da necessidade de fortalecimento dos direitos sociais e das políticas públicas responsáveis por sua efetivação, auditoria das dívidas dos países da América Latina e implementação de novas (velhas reivindicações, na verdade) formas de financiamento público, tais como a tributação de grandes fortunas. Na terceira análise da seção, Paulo Balanco e Humberto Miranda do Nascimento buscam demonstrar a explosiva combinação entre o processo de financeirização do capital, o esvaziamento das formas democráticas e o advento da pandemia, o que revela a “problemática relação entre democracia e mercado” (p.184). Também para esses autores, a importância assumida pela financeirização não é algo exterior ao processo de reprodução do capital. É uma das características assumidas por ela que coincide com a queda da lucratividade em grande parte dos setores produtivos. A dívida pública se tornou um mecanismo de apropriação de mais-valor sob a forma de dinheiro público. Longe de ser o fenômeno dos bancos salvando o Estado, trata-se do inverso: o Estado se endivida para salvar o setor privado. Rosa Maria Marques encerra a primeira parte com “A economia brasileira e a crise da covid-19”, demonstrando os efeitos nefastos da pandemia no Brasil. Seu maior mérito é mostrar como, ao contrário do que vem propagandeando o governo brasileiro, os indicadores econômicos brasileiros já indicavam um estado de estagnação que foi apenas catalisado pela pandemia. Seus dados estatísticos mostram isto.
A parte II do livro tem como foco os efeitos da pandemia no Estado, no direito e na política. A seção é aberta por Pierre Dardot com “A soberania do Estado à luz da pandemia”. Sendo um dos artigos mais interessantes do livro, Pierre Dardot assinala como o tema de soberania estatal é revigorado pela pandemia, contrastando com um mundo cada vez mais mundializado. O autor destaca três aspectos da crise pandêmica que apontam para o paradoxo que representa tal revigoramento: “primeiro, o caráter inédito de uma pandemia diretamente ligada à mundialização; segundo, a consciência aguda dos limites de nosso conhecimento; terceiro, a consciência limite e repentina de nossa vulnerabilidade” (p. 207). Dardot então usa a doutrina ocidental da soberania para demonstrar como seus postulados são de difícil conciliação com tais características. Ao final, conclui com a defesa de uma soberania popular na qual o povo figure como ativo ator político, como a única forma de garantir o Estado de Direito. Três estudos dessa mesma seção também são importantes e se concentram em análises das relações políticas entre Estados nacionais e seus cidadãos no contexto da pandemia. Existe, pois, uma quase “repetição” dos métodos políticos neoliberais para enfrentar a crise em espaços como a França (Patrick Vassort assinala uma tendência autoritária em direção ao formas totalitárias encetadas por Macron e governos eleitos democraticamente), a Espanha (para a qual Domingos Urbin assinala a persistência do fantasma pendular de um regime totalitário nunca desapareceu da vida espanhola), o México (Carlos Ríos Gordillo mostra como a covid, associada ao neoliberalismo, produziu a repulsa negacionista e intolerante de setores sociais aos trabalhadores da saúde). Em relação à experiência brasileira, Valdemar de Araújo e Mateus de Azevedo desconstroem a política de gestão da pandemia do governo de Jair Bolsonaro, analisando com dados suas incongruências. Os três últimos textos destacam-se por tratarem dos efeitos políticos conjunturais em esferas da vida específicas: na relação entre política e mídia, Soleni Fressato estuda detalhadamente o caso específico do brasileiro Jornal Nacional, um dos telejornais com maior audiência no mundo. A autora acompanha ao longo dos sete primeiros meses a assunção do protagonismo do Jornal Nacional da Globo na informação sobre o desenrolar da contaminação e mortes, além do papel pedagógico para instruir a população quanto às medidas de prevenção, além do trabalho de fiscalização e denúncia que o JN assume. Serão observadas por Antônio Sá, Murilo Sampaio e Pedro Lino de Carvalho a análise das consequências da Reforma Trabalhista e sua expressão no direito. Bruno Souto se aplicará sobre a relação entre a política e a saúde, destacando a importância do SUS – o sistema universal de saúde pública brasileira, também um dos maiores e mais sólidos do mundo – no enfrentamento da pandemia.
Se a parte I do livro aborda a situação que o vírus encontrou no mundo de 2020 – um mundo que já não existe mais, diga-se de passagem – e a parte II nos conduz pelos efeitos contemporâneos da pandemia, a parte III nos dá um breve vislumbre de futuros possíveis. O filósofo da política e do direito Denis Collin, em “A crise sanitária à crise global do capitalismo”, avalia como as medidas sanitárias adotadas pelos executivos nacionais representaram, em sua opinião, perigosos avanços sobre as competências do legislativo, como parte de uma estratégia sempre latente de adestramento das massas. No afã de acentuar o caráter estrutural da crise, subordina a ela importância de aspectos conjunturais aproveitados pelo governo Macron para ampliar as medidas restritivas às liberdades democráticas. Já Eleutério Prado, em “Ocaso do capitalismo: fim da civilização humana”, aproveita o contexto da pandemia para fazer uma análise das trajetórias de Brasil e China, a fim de diagnosticar o fim do capitalismo tal como o conhecemos. Se este autor procura enfatizar os limites contraditórios e intransponíveis do capitalismo, quase de forma complementar Daniel Jeziorny, em “Metabolismo social e pandemias: alternativas ao ‘vírus’ do crescimento”, desenvolve o conceito de metabolismo social para tratar da questão fundamental: “a desaceleração do capitalismo pode se verificar ad infinitum?”. Para Jeziorny, uma ruptura entre as sociedades e a natureza vem se estabelecendo proporcionada pelo supercrescimento do capitalismo no mundo sem respeitar à mãe natureza.
Em “Pandemia e Estado de emergência permanente”, Nakamura explora o “poder criativo” das distopias como um ponto de fuga que nos permita visualizar os problemas urgentes de nosso tempo. A problemática da reconstrução de redes de proteção social, que caracterizou o Estado do pós-guerra, mas que paulatinamente foi desconstruída pela institucionalidade neoliberal, ressoam no trabalho de Liliane Oliveira, “Fios de solidariedade entre o povo comum: emergência de ações a partir da pandemia”. A partir do relato de experiências locais da cidade de Salvador, a autora demonstra como a solidariedade espontânea é, muitas vezes, o único antídoto que a população periférica tem contra os projetos de promoção da morte de governos neoliberais. Encerrando a obra, Christian Laval sintetiza os problemas capitais para a construção de uma nova utopia em “Habitar ou dominar: as lições de uma tragédia”. Laval traduz a dialética que se impõe, tragicamente, ao ser humano através do dilema entre insistir na racionalidade europeia de submissão da natureza pelo ser humano, que vem pautando o mundo nos últimos quinhentos anos. Como alternativa assinala a necessidade de um novo paradigma existencial que priorize a habitação, ou coabitação do planeta. É o modo de vida que envolve o cuidado do cultivo e inspira a emergência de uma nova sociedade global animada por um novo tipo de cosmopolitismo, todos centrados no princípio do comum, que se revela um princípio ecológico por natureza.
Alguma coisa mudou desde a elaboração do livro, é verdade. Trump já vai tarde e o governo de Joe Biden, obrigado a proceder uma inflexão em direção à centro-esquerda, reconduz os Estados Unidos ao local de liderança que tradicionalmente ocupam nas questões globais. Movimento que pode acontecer também no Brasil, após o restabelecimento dos direitos políticos de Luís Inácio Lula da Silva e suas crescentes chances de vitória nas eleições que se descortinam em 2022. No Brasil com direitos políticos de Lula restabelecidos e em francas chances de retornar à presidência do Brasil com certo poder de influência internacional, somos tentados a imaginar que o mundo não é mais aquele de 2020. Como nos alerta Marc Ferro: a história não se cansa de nos surpreender. Isso de forma alguma tira o valor monumental de Soou o alarme, sendo uma obra de leitura imprescindível para a compreensão dos chamados “tempos de pandemia” que, ao que tudo indica, vieram sem aviso, mas serão um desses acontecimentos históricos que perdurarão por anos.
De modo geral Soou o alarme convida-nos à reflexão, tal qual um manifesto por uma nova forma de vida em comum no planeta terra e com ele. Algumas mensagens são fortes e transcendem o próprio tempo histórico do livro: a capacidade da história de surpreender-nos sempre, as contradições insuperáveis do sistema, o direito como expressão dos interesses dominantes das sociedades neoliberais fundamento da racionalidade e da validade da política e do direito, e a busca por tentar resgatar de suas raízes democráticas mais antigas greco-romanas inspiradas na necessidade superar a “humilhação do destino”, a necessidade de reconstruir a harmonia entre a vida humana e a natureza e a busca por uma nova utopia, que inclua a aspiração da instituição do comum como princípio político. É, pois, um chamado para que paremos de dominar o mundo, e passamos a habitá-lo. Uma mensagem que faz lembrar Benjamin: “O dia jaz cada manhã como uma camisa fresca sobre nossa cama; esse tecido incomparavelmente fino, incomparavelmente denso, de limpa profecia, assenta-nos como uma luva. A felicidade das próximas vinte e quatro horas depende de que nós, ao acordar, saibamos como apanhá-lo”.1 Faz parte deste saber a consciência de que o Planeta Terra é perene, mas a vida humana, efêmera – e cada vez mais ameaçada de extinção sob a governamentalidade neoliberal.
1 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 64
Fonte da matéria: Um livro-manifesto por um novo senso de utopia – Outras Palavras. Link: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/um-livro-manifesto-por-um-novo-senso-de-utopia/
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