Raphael Tsavkko Garcia – Chacina, massacre, extermínio. O episódio do Jacarezinho tem vários nomes e um só culpado, ou melhor, culpada: uma sociedade que criminaliza a pobreza, que se recusa a rever seu passado, a desmilitarizar e humanizar sua polícia, a exercer seu controle sobre os agentes de segurança, a legalizar as drogas e, enfim, a enxergar o outro — especialmente o vulnerável — como indivíduo detentor de direitos.
Nas redes, figura a batalha de sempre: de um lado, defensores dos direitos humanos lamentando e repudiando a chacina, do outro os que aplaudem a morte de 25 “bandidos” — como assegurado pelo vice-presidente Mourão. Uma batalha desigual em que, infelizmente, os direitos humanos constantemente saem derrotados.
É possível que parte dos 25 chacinados fossem realmente criminosos, mas isso pouco importa. Execuções sumárias em meio a uma ação ilegal (o STF proibiu tais ações durante a pandemia) e como vingança pela morte de um policial são, em si, inaceitáveis e além de quaisquer justificativas.
Um criminoso deve ser preso, julgado e então condenado – jamais executado, eliminado. Fala-se muito em “guerra”, mas não há espaço para uma lógica de guerra do Estado brasileiro contra seus cidadãos, estejam eles cometendo crimes ou não.
E essa mesma sociedade dividida elegeu Bolsonaro que, curiosamente, esteve no dia anterior no Palácio das Laranjeiras com o governador Claudio Castro. Era o ex-governador Witzel quem celebrava o “tiro na cabecinha”, mas seu vice-tornado-governador parece não ser muito diferente.
Witzel, é bom lembrar, foi eleito exatamente por seu discurso violento de confrontação e de “guerra”. Como Bolsonaro.
A visita do presidente pode ter sido uma mera coincidência, rendeu notas de rodapé em sites diversos, mas os seus motivos estão longe de serem coincidência. A lógica que move parte importante da sociedade, a polícia e o poder público — que deveria ter o dever de proteger, mas que no fim age por vingança — é a mesma.
O que aconteceu no Jacarezinho é o que podemos chamar de “business as usual”. Trata-se do modus operandi padrão das forças de segurança no Rio de Janeiro e que encontra eco (e aplausos) em diversos estratos sociais — parte importante deles que elegeu Bolsonaro.
Claro, não podemos esquecer que foi a então presidente Dilma que colocou o Exército em favelas, que o seu partido, o PT, apoiou de maneira entusiasmada as horríveis UPPs (e pouco fez enquanto parte de sucessivos governos do Rio de Janeiro para solucionar de fato o problema do tráfico de drogas, das milícias e dos extermínios).
Mas essas tentativas de aceno a parcelas violentas da sociedade não deram tantos frutos ao partido quanto os petistas gostariam. É Bolsonaro quem melhor encarna a figura do presidente durão que não recua diante de “bandidos” e que mata quando “necessário”.
A família Bolsonaro foi rápida em atacar quem repudiou a chacina. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) atacou Marcelo Freixo, também deputado federal (PSOL-RJ), enquanto seus irmãos Flávio e Carlos lamentaram a morte do policial na ação. Não são poucas as vozes que comentam que a operação policial no Jacarezinho beneficia diretamente as milícias — e a essa altura já são mais do que evidentes os elementos que aproximam os interesses desses ao da família do presidente.
O que aconteceu no Jacarezinho não é exatamente resultado das ações e discursos dos Bolsonaro, simplesmente porque ações violentas deste tipo partindo da polícia são comuns. O que podemos dizer com clareza, entretanto, é que Bolsonaro é resultado de Jacarezinhos, ele é a representação da chacina, do massacre, do extermínio. A ação policial, o seu consequente aplauso e a existência de Bolsonaro enquanto líder máximo da nação são parte do mesmo fenômeno social.
Inexiste diferença substancial entre bater palmas para a chacina e defender, de maneira consciente, cloroquina, “tratamento precoce” ou que a pandemia “não passa de uma gripezinha”. São faces de um mesmo negacionismo, de um sentimento de potência justiceira que se manifesta em desejo de eliminação do outro. “Bandido bom é bandido morto”, eis o grito daquele que nega seus próprios pecados, que repudia o fato de muitas vezes ser igual ao que tanto detesta. É o ódio colocado no espelho.
Em meio a tamanho caos, é difícil até mesmo superar a dor e propor alternativas. Uma delas seria a legalização das drogas — que não apenas geraria bilhões para os cofres públicos, como também renda para milhares ou milhões de pessoas. Uma quantia absurda de dinheiro que, como lembrou o ativista Raull Santiago, é usada para fazer chacina e destruição.
A família Bolsonaro é menos culpada pela chacina do Jacarezinho — como muitos tuitaram e postaram em redes sociais em justificada revolta — do que resultado dela. Resultado visível de um processo constante e histórico de desumanização e chacinas, de uma tremenda divisão de classes em que o andar de baixo tem sua humanidade negada e apagada.
No fim, estamos falando de um processo de retroalimentação em que o ódio é o combustível e o resultado é o sangue correndo por vielas estreitas e íngremes das favelas e o sufocamento nas camas de hospital por todo o país com um presidente que não apenas aplaude como é cúmplice e muitas vezes também autor da barbárie.
Fonte da matéria: https://noticias.uol.com.br/colunas/coluna-entendendo-bolsonaro/2021/05/07/bolsonaro-e-resultado-de-chacinas-como-a-do-jacarezinho.htm
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