Política

O estranho bolsonarismo e seus elementos centrais

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Fabio Amorim – Vimos na Parte I que o bolsonarismo se fundamenta, por um lado, no vazio do poder, na negação da política e sua descrença. Neste segundo momento, analisaremos o fenômeno Bolsonaro nos seus aspectos ideológicos. Mas antes disso, gostaríamos de analisar o aspecto eleitoral do ex-capitão em 2018, e que pode jogar luz à eleição presidencial de 2022. Pois como vimos, correligionários e adeptos de Bolsonaro venceram em cargos legislativos (senadores, deputados estaduais e federais) e executivo (governadores).

Afinal, podemos falar, em termos eleitorais, em voto bolsonarista? Entendendo um bloco coeso que vota pautas comuns e alguma fidelidade a temas e políticas públicas? Categoricamente: não! Não existe. Podemos falar isso, e apresentaremos nossa tese mais abaixo, levando em consideração o pleito de 2018. A partir de 2022, poderá surgir esse núcleo, que até agora mostra-se falso e inconsistente.

Desde a redemocratização (1985), as disputas presidenciais no Brasil vêm sendo polarizadas entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Contudo, a partir de 2006, segundo a visão do cientista político André Singer, há uma reconfiguração no mapa das eleições que mudou sensivelmente as bases sociais e políticas do país. Nas palavras do próprio Singer: houve um “‘realinhamento eleitoral’ [tese que aponta] a mudança de clivagens fundamentais do eleitorado, que definem um ciclo político longo.”1 Em outras palavras, a partir das eleições de 2006 formou-se um bloco eleitoral razoavelmente unido e que seguia a liderança de um candidato ou um que ele “apadrinhava”: estamos falando do nascimento do lulismo. Em termos gerais, o lulismo tem seu núcleo na região Nordeste; sua camada social são o que Singer chama de subproletariado (indivíduos de baixíssima renda, com até 2 salários mínimos por família); seu horizonte político é a “diminuição da pobreza com manutenção da ordem”2. A partir daquele ponto (2006), o mapa eleitoral brasileiro tomou uma forma que vem se mantendo imóvel até 2018 – o Nordeste e boa parte do Norte votam em Lula ou no seu candidato, e o Centro-Oeste, Sudeste e Sul no PSDB (ver imagem 10).

Folha de S. Paulo. Disponível aqui. Acessado em 27/07/2020. Há algumas alterações feitas por Fabio Amorim na imagem original.

Se olharmos a imagem, as quatro eleições (2006, 2010, 2014 e 2018) são praticamente uma repetição eleitoral. O lulismo se manteve encrustado no Nordeste e boa parte do Norte, enquanto o partido da oposição, nas outras três regiões. Ou seja, o grupo de eleitores que estavam sob o guarda-chuva do PSDB em todos esses anos, apenas transferiram seu voto ao ex-capitão – como podemos ver no mapa. Porém, há uma diferença de 2018 para os outros pleitos. Por trás dos votos do PSDB, havia uma massa de insatisfeitos que, sem opção de candidatos, votavam no inimigo natural do Partido dos Trabalhadores. Esse grupo via ano a ano o lulismo se firmar como corrente política dominante não só nos sufrágios nacionais, mas também nos municípios. Enquanto o PT tinha em 1996 110 prefeitos e em 2012 chegou a 644, o PSDB no mesmo período caiu de 921 para 701 (ver imagem 11). É justo dizer que esse grupo – difuso, sem pautas comuns, mas que tinha como unidade a aversão ao petismo – desde 2015 já lotava as ruas e inflamava as redes sociais. Mas é 2018 que eles encontram o político que finalmente consegue vocalizar toda a fúria e rejeição engasgada a quase 15 anos e que os peessedebistas se mostravam incompetentes para concretizá-la. Estamos falando aqui de neofascistas, conservadores, nostálgicos da Ditadura Militar, fanáticos religiosos, neointegralistas, profissionais de segurança. Esse movimento de libertação/radicalidade se refletiu nas urnas, pois Bolsonaro ganhou em Minas gerais, Tocantins, Rio de Janeiro, Amazonas e Amapá, redutos históricos do lulismo.

Imagem 11. Folha de S. Paulo. Disponível aqui. Acessado em: 27/07/2020. Há modificações feitas por Fabio Amorim na imagem original.

Como vimos mais acima, a configuração eleitoral que dá a vitória a Bolsonaro em 2018, nada mais é que uma repetição eleitoral de anos anteriores. Não há nada inédito. Até mesmo a porcentagem de votos por regiões do Brasil é praticamente a mesma. Em 2010, com Dilma, e 2018, com Haddad, o maior e menor voto do lulismo foi nas mesmas regiões: Nordeste (71% e 69%) e Sul (46% e 31%) respectivamente. Importante dizermos que apesar de haver uma queda significativa nos números do Sul, ainda assim continuou a ser a menor penetração do lulismo. Por outro lado, Serra e Bolsonaro, respectivos adversários dos candidatos acima, compartilharam também dos mesmos números e desenho geográfico: o peessedebista e o ex-capitão teve seus piores desempenhos no Nordeste (29% e 30%) e seus melhores no Sul (54% e 68%).3

Como vimos na Parte I do nosso texto, o bolsonarismo como ideia política não existe. E nem, pelo menos em 2018, em termos eleitorais. Para analisarmos o último aspecto, o ideológico, de novo temos que retroceder aos fatos marcantes dos últimos 5 anos, e que estão diretamente relacionados à queda do PT. Não há paralelos na história do Brasil – pensando em períodos democráticos – em que um partido foi tão longevo no comando da nação. Por treze anos a cadeira da presidência da República foi ocupada pelo mesmo partido. Se fizermos uma analogia com o esporte, o PT foi completamente hegemônico, derrotou com primazia seus adversários. Quando há esses “times” imbatíveis, sobra aos outros se lamentarem e buscar a toda forma vencer o inimigo ou até mesmo torcer para um outro time vencê-lo – pensando em termos esportivos. Em novembro de 2019, o site Sports Insider fez uma pesquisa sobre o “Mapa do Ódio” nos Estados Unidos, que mostrava quais eram as equipes mais odiadas da NBA (a liga de basquete norte americana).4 Revelou-se naquele momento que o Los Angeles Lakers era o time mais repudiado pelos torcedores. Contudo, o interessante aqui não é os Lakers estarem no primeiro lugar, mas terem desbancado o Golden State Warriors que nos últimos anos ocupava o posto de mais “odiado” da liga – nos últimos anos, os Warriors chegaram a 5 finais consecutivas (2015, 2016, 2017, 2018 e 2019), foram campeões em 3 e vice em duas. Em suma, quanto mais os californianos venciam, mais crescia o “ódio” dos adversários.

Como vimos com o esporte, enquanto o PT vencia nas urnas crescia ao mesmo tempo o número de oponentes. Um verdadeiro “mapa do ódio” espalhou-se pelo Brasil e achou seu auge no candidato Jair Bolsonaro em 2018. Esses grupos e indivíduos mostraram sua cara em 2015-2016, que talvez será no futuro fruto de grandes estudos por cientistas políticos e historiadores, pois é nesse período em que o Brasil tem uma virada brusca nos seus rumos. Marca-se o fim da era petista na presidência – a mais longa da nossa história e talvez das mais longas da América Latina – e dos próprios rumos que o país parecia tomar de forma linear. Para se ter uma ideia da derrocada, em 2012, no último sufrágio glorioso do Partido, tínhamos o “‘Tição do PT’” que depois em 2016 virou “‘Tição da Ambulância’”; “‘Edna do PT’” virou “‘Professora Edna’”. Segundo dados da Justiça Eleitoral, em 2012, 1.045 candidatos daquela eleição se apresentavam com a sigla do Partido. Em 2016, apenas 362 continuaram usando a sigla.5 Se olharmos o gráfico da imagem 11, podemos ver a queda vertiginosa das prefeituras conquistadas pelos petistas. Entre os vários fatores que marcaram o declínio do Partido, estava a própria figura da presidência. Dilma Rousseff era a personagem e a caricatura ideal para a oposição mostrar todos os defeitos, inabilidades, incompetência e falta de identidade ideológica do Partido dos Trabalhadores – e mais do que isso, fazer a população esquecer os anos Lula, que acabou seu segundo mandato (2010) com índices recordes de aprovação. Péssima comunicadora, detentora de pérolas que ficariam excelentes em programas de humor, ausência de capacidade de articulação, horizonte político tosco. Era tudo que os antagonistas precisavam para levantar a cabeça depois de 13 anos de silêncio.

OS HOMENS DA PEDRA

A impossibilidade de falarmos em bolsonarismo se reflete em parte na composição social dos grupos que endossaram a popularidade e votaram no candidato presidencial em 2018. Religiosos, empresários, nostálgicos do período militar, profissionais da área de segurança, neofacistas, conservadores, liberais, neointegralistas entre outros. Em parte por mérito político de Bolsonaro e parte por uma conjuntura extremamente favorável – que dificilmente se repetirá em 2022 –, o ex-capitão conseguiu atrair para si todos esses grupos e suas respectivas pautas e anseios. Contudo, dentro desse retalho político-social que o bolsonarismo sonhou em construir, há um grupo que a nosso ver mantém uma certa coerência: os homens da pedra. Trata-se daqueles indivíduos que alimentam uma visão dos militares como purificadores da política e veem na violência e brutalidade a solução para problemas complexos e históricos do país – nessa categoria podemos colocar também os profissionais da área de segurança. Detentores de uma visão primitiva da sociedade – olho por olho, dente por dente – entendem que corrupção, roubo, estabilidade social são resolvidos com amputações, execuções etc. Para se ter uma ideia da força desse pensamento no Brasil, em março de 2020 o deputado federal pelo Paraná Emerson Petriv, o Boca Aberta (Pros), protocolou um projeto que dizia: “Art. 1° Dispõe sobre a amputação das mãos direita e esquerda de político que cometa crime de abuso de poder econômico, improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito (…)”. Segundo dados do Google, o nome do parlamentar aumentou 90% em relação aos meses anteriores e com buscas de 11 estados diferentes.6 Alguns poderiam dizer que a popularidade do paranaense poderia estar relacionada a curiosidade das pessoas e ao absurdo da proposta. Porém, se olharmos o quadro geral podemos ver que não se trata de um fenômeno isolado.

A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 é um dos sintomas mais claros do homem da pedra e seu reflexo na sociedade. O presidente eleito traçou uma linha política extremamente eficiente para a era da informática. Para resolver um problema complexo, uma frase feita; para se sair bem num debate, desclassificar o outro; contra uma ideia política, um meme caricaturando o tema. Dentro dessa tática, Bolsonaro criou para si um gesto que logo o identificaria e marcaria sua personalidade: o gesto da arminha. Se em 2018 houve uma união dos diversos grupos sob o guardachuva do ex-deputado federal, boa parte deles se integraram ao então partido do candidato à presidência: o PSL. É inútil dizer que não havia consistência político-ideológico alguma nos que se filiaram ao partido, a não ser oportunismo eleitoral. Contudo, um dado é marcante e nos interessa nesse contexto: dos 52 deputados federais eleitos em 2018 pelo PSL, 21 são policiais.7

Imagem 12. El País. Disponível aqui. Acessado em: 18 set. 2020.

Imagem 13. Poder 360. Disponível aqui. Acessado em: 18 set. 2020.

Os primitivistas levantaram a cabeça de fato no antipetismo que explodiu nas manifestações de março de 2015. Apesar de o tom ter sido ditado por movimentos liberais que forçavam a saída de Dilma e o fim do ciclo petista no governo federal, grupos militaristas (SOS Forças Armadas, Intervenção Já e Quero Me Defender) eram aceitos com tolerância razoável na multidão. Quando se lê as falas dos simpatizantes dos militares, podemos apontar alguns pontos claros de convergência entre eles: (1) as forças armadas como seres iluminados com o papel de purificadores da sociedade e da política; (2) a nostalgia da “paz” que se vivia no período e que pouco importa como foi alcançado; (3) a estabilidade social será alcançada com brutalidade e violência, pois ela é nosso único caminho. Em 16 de março de 2015, o empresário Aparecido Duca (59 anos), um dos líderes do SOS Forças Armadas, dizia: “Entendemos que o governo todo está tomado por corrupção. Só os militares podem resolver.” e “A coisa toda está tomada. Por isso, só com intervenção militar”. Na mesma fala – que talvez nem o pai da psicanálise Sigmund Freud (1856-1939) explicaria – o sujeito diz que “intervenção não é golpe”. Porém, os militares “deveriam tomar o governo por 90 dias, destituir o Congresso, julgar os corruptos no tribunal militar [militar!] e criar partidos de direita para comandar o Brasil.”8 Segundo o empresário, nada disso é golpe.

Coadunando os três pilares que falamos antes, o contador Tiago da Silva Agostinho, 31 anos, dizia: “seria necessário que o Exército brasileiro viesse e limpasse tudo, não só o PT. O impeachment da Dilma não vai acabar com a corrupção.” Na mesma linha, Ronaldo Luis Pereira de 67 lembrava: “Eu vivi o regime militar e essa foi a melhor época do país. Tinha ordem e a política era limpa.” E acompanhando o pensamento mais acima do empresário, deixava claro que “Intervenção militar não tem nada a ver com ditadura.”9 Como cereja do bolo – como se diz no ditador popular –, compareceu nas ruas de São Paulo naquele 16 de março de 2015, a viúva do delegado mais vil da Ditadura Militar, Sérgio Fleury (1933-1979). Dona Maria Isabel Fleury, de 83 anos, acompanhada de uma amiga, se orgulhava: “Na época deles era tudo muito melhor.”10

Imagem 16. Folha de S. Paulo. Disponível aqui. Acessado em: 25 set. 2020.

A linha primitivista que explodiu em 2015 desembocou no pleito presidencial de 2018 com a eleição de Jair Bolsonaro. Uma cidade em especial chamou a atenção do jornal Folha de São Paulo no pleito presidencial. Treze de Maio, uma cidadezinha de 7.000 habitantes, em Santa Catarina, escrutinou o ex-capitão com 89% dos votos. Ao visitar o pequeno município, a Folha conversou com Iter Bez Fontana, 32 anos, que disse ter votado em Bolsonaro. Após criticar o PT – que segundo ele “afundou o país” –, justificava seu voto dizendo que “Chegou a hora de começarmos a usar mais o olho por olho, dente por dente. Ninguém aguenta mais”. Fontana mantém em casa duas espingardas calibre 12, assim como Elton Nascimento, 27 anos, que guarda consigo uma pistola e um rifle. Elton dizia acompanhar Bolsonaro desde 2012, quando o conheceu num Oktoberfest. Seu “amor” pelo político, segundo ele, vinha do seu discurso sobre “porte de armas para cidadãos de bem. Foi amor à primeira vista.”11 Em suma, os homens da pedra fazem parte de um grupo expressivo do eleitorado que se aglutinou em volta do presidente eleito em 2018. Seu discurso, vazio e rasteiro como quase tudo que gira em torno de Bolsonaro, aponta sempre para a questão da segurança como o problema central de tudo no Brasil. Apesar de tosco do ponto de vista das ciências humanas, a fala dos primitivistas tem adesão fácil pela situação do país, pois aqui a violência social chega a números de mortos maiores do que nações em guerra.12 O medo, a insegurança, o sentimento de injustiça, conivência das autoridades entre outros motivos expõem a população ao discurso simplista e com a ideia de solução mágica para problemas complexos.

Imagem 17. Folha de S. Paulo. Disponível aqui. Acessado em: 08 out. 2020. Imagem original modificada por Fabio Amorim

A ONDA ANTIPETISTA

Todos os motes retóricos antipetistas, nasceram em 2015-2016 nos protestos contra o Partido. A partir daquele momento, os grupos de direita conseguiram equacionar todas as suas diferenças em torno de 3 aspectos básiscos: (1) um inimigo comum; (2) um símbolo conhecido de todos que sintetizasse esse inimigo; e (3) identificar esse inimigo como um representante do sistema, ou seja, aquele que manipula e dita as regras das nossas vidas. Esses três pontos foram cirurgicamente delineados pelo cientista político Jorge Chaloub:

“O ponto central, todavia, é a importância da ideia de inimigo para a coesão desse campo da direita radical. Grupos caracterizados por ênfases diversas e mesmo argumentos contraditórios acomodam-se do mesmo lado em virtude da ojeriza pela outra parte da trincheira. Na luta concreta, a esquerda tem uma face mais evidente: o Partido dos Trabalhadores. A identificação é eficiente não apenas porque vincula o inimigo ao mais conhecido partido nacional, alvo de incessantes ataques da mídia durante os últimos quinze anos, mas também porque permite identificar a esquerda com o status quo. Nesse movimento, a direita radical assume o lugar da contestação antissistema usualmente reivindicado pela esquerda.”13

Eu adicionaria um quarto ponto: o uso tosco, simplista, demonizador como ferramenta pedagógica para desmoralizar a esquerda e o socialismo: a caricatura do fracasso (Venezuela, Cuba, Coreia do Norte). Em 2015 a direita colocou dessa forma os objetivos da luta política: temos um inimigo comum: o sistema e a esquerda; quem os representa? O PT; se não fizermos algo, onde vamos chegar? A países como Cuba e Venezuela.

Todo esse quadro caótico e difuso, aprofundou-se na cabeça de muitos brasileiros que embarcaram de corpo e alma no asco ao PT. Assim como fizemos antes – e nos parece o caminho certo para desconstruir o bolsonarismo –, os marcos históricos para entendermos o antipetismo passa pelos protestos de 2015, pelas eleições municipais de 2016 e culmina na eleição presidencial de 2018.

O ódio ao PT em 2015 foi a maior fraternidade da direita naquele momento histórico. Essa psicologia social, se aprofundou quase de forma patológica aos antagonistas do Partido dos Trabalhadores. Um caso curioso, e até digo triste, foi o da mãe que levou seus filhos de 8 e 10 anos as manifestações de março de 2015 em São Paulo. Segundo a mãe – curiosamente psiquiatra, Andrea Bernardes – sua filha estava com medo de ir ao protesto, e perguntou: “Será que quem votou na Dilma vai atirar na gente, mãe?”.14 O que a criança já ouviu sobre PT para dizer isto? O que ela já viu? O que comentaram para ela? Já no Rio de Janeiro, um homem que passava de bicicleta com um pano vermelho nas costas era oralmente hostilizado. Enquanto se repudiava indistintamente tudo aquilo que se movia com a cor vermelha – quase como numa tourada –, grupos pró-militares eram tolerados entre os participantes.

Imagem 17. G1. Disponível aqui. Acessado em: 24 out. 2020

Logo após uma crítica ao PT, quase que automaticamente falava-se em ditaduras (Venezuela, Cuba) e críticas ao comunismo e a ineficiência da esquerda no poder etc. O empresário Aparecido Duca, o qual nos referimos um pouco mais acima, nos fornece outra pérola do nosso passado recente: “São 32 partidos políticos hoje e 17 são comunistas. Eles estão infiltrados na pátria.”15 No Fórum dos leitores do jornal Estado de São Paulo, onde pessoas comuns podem expressar sua opinião, o cidadão Antonio Gomes, orgulhava-se dos protestos e das cores predominantes de março de 2015: o “(…) pujante verde-amarelo, em contraste eloquente com as bandeiras da cor do comunismo internacional (…)”.16 No final de março daquele ano (2015), numa seção semelhante que abre espaço a opinião dos leitores na revista Veja, fica claro a equação ideológica que falamos aqui. Antes, uma pequena contextualização é necessária. Naquele mês, o líder do MST e aliado do PT, João Pedro Stédile, esteve na Venezuela com o presidente Nicolás Maduro, o que gerou polêmica. Segundo a cidadã Rosangela Maria, Stédile juntamente com o Partido dos Trabalhadores, buscavam “formar uma liga das nações latinas em defesa de um Brasil petista ditatorial.” Já para Luiz Buzetti, querem “implantar o sistema bolivariano-cubano em nosso país.” O leitor Anesio Scandiuci sintetizou a ideologia do antipetismo: segundo ele “Os ‘cumpanheros’ não obtiveram êxito em 1964, mas continuam tentando nos impor o regime antidemocrático de Cuba e da Venezuela, onde imperam a miséria e o caos total.”17

Como já analisamos mais acima, explodiu em 2015 nas ruas a aversão ao PT e seus governos. As eleições de 2016 foi a materialização política desse movimento. Na eleição para a cidade de São Paulo – baluarte dos protestos contra o governo – o candidato João Dória (PSDB) varreu Fernando Haddad (PT) com uma vitória avassaladora de mais de 2 milhões de votos de vantagem ainda no primeiro turno. Na reunião de vitória com seus correligionários, a ideologia do momento se fez presente: “Antes dos discursos de Dória e Alckmin, o prefeito eleito ergueu a bandeira do Brasil enquanto militantes gritaram ‘a nossa bandeira jamais será vermelha’”.18 Assim como vimos em 2015, a oposição ao petismo se misturava e combinava com um suposto – e até posso dizer imaginário – inimigo externo que segundo eles é o comunismo.

De forma consciente ou inconsciente – não podermos afirmar categoricamente – Jair Bolsonaro em 2017-2018 conseguiu como nenhum outro candidato atrair para si o sentimento que nasceu em 2015-2016: o antipetismo. Assim, podemos afirmar que é incorreto chamarmos a eleição de 2018 de onda bolsonarista, mas sim de onda antipetista. Sempre usando uma linguagem simples, com pouca coerência e poucas ideias concretas, o ex-capitão alimentou sua candidatura no biênio 2017-2018 em suas entrevistas. Usando um discurso de guerra, confronto, batalha, ele alicerçou sua retórica em dois pilares básicos – quase como uma fala pronta –: PT e esquerda. Nenhum tema escapava ao então deputado federal que não estivesse dentro do problema PT/esquerda.

Numa entrevista à jornalista da Folha de S.P. em março de 2017, falando sobre um grupo de militantes que ameaçaram invadir sua casa no Rio de Janeiro, Bolsonaro mudou a conversa e falou a entrevistadora repentinamente:

“E vocês né, de esquerda, é jornalista de esquerda cheio aqui. Vocês estão cavando a própria sepultura (…). O que essa esquerdalha defende (Lula, Dilma), vocês viram quando morreu o Fidel Castro a cara… desolada de Dilma e de Lula, lá no enterro? Eles querem isso pro Brasil.”

Após dizer que o jornal Granma (órgão oficial do governo cubano) serve para “limpar a bunda e fazer sopa de papel” ele sentenciou: “E parece que vocês querem isso aqui no Brasil.”19 Apesar de pouco claro no significado da sua fala, Bolsonaro consegue ao mesmo tempo, como vimos, atacar o PT (Lula e Dilma), a esquerda e a imprensa – que como veremos foi incorporada dentro do discurso contra a esquerda.

Não se tratava apenas de um inimigo, mas um mal que conspira, ronda, e corrompe os valores da sociedade e do país. Diante desse contexto, é necessário uma vigilância constante e eliminação do oponente.20 Perguntado em novembro de 2017 no programa Canal Livre se ele achava as eleições limpas, o então presidenciável foi enfático: “não!”. Mostrando a hipocrisia explícita da fala, complementou: “Eu não tenho como comprovar que houve fraude, nem você tem como comprovar.” Além de não mostrar nenhuma prova da sua fala vaga, como ele próprio ter sido eleito para a Câmara Federal por 28 anos pelo voto popular? Primeiro, o problema é só para o escrutínio do executivo federal (“muitos de nós desconfiamos do voto eletrônico para presidente da República)”. Segundo, havia uma conspiração feito pelo PT para fraudar as urnas, como ele mesmo diz:

“Poderá acontecer em 2018. Quem aparelhou o TSE [Tribunal Superior Eleitoral], quase todas as instituições estão aparelhadas, poderá inserir em muitas seções eleitorais, o voto para aquele respectivo partido, que falei claramente o PT. 170, 40 votos fraudados. E aí nós poderemos ter uma grande bancada de petistas na Câmara vindo desse voto fraudado. E daí você não pode fazer mais nada para mudar aquela forma que aquelas pessoas foram eleitas.”

Na mesma entrevista, perguntado sobre a mudança no estilo das suas convicções econômicas, no meio da resposta o deputado não perde a oportunidade de reafirmar sua teoria conspiratória – sem nenhuma prova –: “Em não havendo fraude, com toda certeza eu estarei no segundo turno.” Perguntado pela jornalista Júlia Dualibi sobre reformas microeconômicas e compra de terras por estrangeiros, Bolsonaro apontava que o sistema estava tomado, pois o “(…) ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] e Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] aparelhados com gente de esquerda, à vontade lá, petista ainda, estão multando adoidado aqui os fazendeiros, em especial do Rio Grande do Sul.”21

Convencido da sua missão de perseguir e erradicar o PT/esquerda da vida pública – numa entrevista do programa Roda Viva em julho de 2018 –, o já então candidato à presidência da República, foi perguntado de qual obra, caso eleito, gostaria de ser lembrado na História. Respondeu ele: um “redirecionamento do Brasil no tocante a sua política. Nós cansamos da esquerda (…)”. Como dissemos antes, para Bolsonaro a esquerda/PT está presente em todos os lugares, inclusive na imprensa, sempre conspirando e manipulando o sistema. Sobre a condenação do Brasil pela corte interamericana de direitos humanos pela morte do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975) no período da ditadura militar, o ex-deputado começou respondendo que “Geralmente esses órgãos tem o viés de esquerda.” Sobre um jornal suíço que o acusava de ser misógino: “A imprensa quase toda é de esquerda no mundo.” Questionado sobre a tortura do período militar e possíveis documentos que provem com contundência o terror de Estado promovido no Brasil, o ex-deputado diz estar preocupado em

“pegar os papeis do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] , esse sim eu quero pegar, para ver para onde esse pessoal da esquerda (PT, Dilma, Lula) emprestaram dinheiro. Emprestaram não! Doaram dinheiro para Fidel Castro, para Hugo Chávez, Cristina Kirchner, para Angola, Bolívia. Isso eu quero saber.”22

Como vimos nessas entrevistas, a plataforma de campanha do ex-capitão se pautava na busca incessante, e muitas vezes irreal, do inimigo que sempre estava conspirando contra o país. Seja por meio da manipulação do voto, seja por órgãos do governo ou veículos de imprensa. “A presença do diabo fazia com que se acolhesse melhor o deus”23, como disse o professor João Riberio Júnior sobre como os nazistas usaram o ódio aos judeus para crescer na sociedade alemã.

Assim Bolsonaro fez seu caminho. Além dos motes ao que falamos um pouco mais acima, Bolsonaro conseguiu resgatar velhos preconceitos políticos da história brasileira. Trazendo um pensamento completamente anacrônico do período da Guerra Fria (1945-1991), com a ideia da ameaça comunista, ele vinculou o PT ao inimigo externo e unificou as bandeiras. Numa reportagem de 2017 à revista Veja, expôs os slogans preferidos dos seguidores do deputado federal nas redes sociais – que naquele momento já despontava em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, atrás de Lula. Eram eles: “Comunista tem que morrer (…)”, “Não gostou? Vai para Cuba”.24 Já após consolidada sua vitória, o presidente eleito fomentava a ideologia que uniu sua base de apoio. No seu primeiro pronunciamento, ainda na sua casa no Rio de Janeiro, ele colocou sobre sua mesa 4 livros: a Constituição FederalA Mensagem, tradução da Bíblia para a linguagem contemporânea, as memórias de Winston Churchill (1874-1965) e o livro do autointitulado filósofo Olavo de Carvalho. O último citado talvez seja o mais conhecido pensador no Brasil da teoria da conspiração comunista. Além de poder simbolizar o conservadorismo, Churchill também foi um grande opositor do comunismo soviético.

Para além de interpretações talvez subjetivas, o ex-capitão objetivamente, ainda no discurso em sua casa, inflamou sua base eleitoral dizendo: “Não poderíamos mais continuar flertando com o socialismo, com o comunismo e com o populismo, e com o extremismo da esquerda.”25. Sem podermos entrar no mérito da questão, e não é nossa intenção, o delírio da aproximação entre os governos do PT e um processo de fato de transição ao socialismo, manteve-se vivo nas falas de Bolsonaro nos seus discursos como presidente recém-eleito. Ao receber a faixa presidencial de Michel Temer no Palácio do Planalto, logo no começo disse ele: “(…) me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo (…)”. Após terminar seu discurso, ele segurou uma bandeira do Brasil – imitando o mesmo gesto e palavras da festa da vitória de João Dória em 2016 –, ele voltou ao microfone e disse: “Essa é a nossa bandeira, que jamais será vermelha”.26

Imagem 18. Folha de S. Paulo. Disponível aqui. Acessado em: 12 nov. 2020.

CONCLUSÃO INCONCLUSIVA

Com certeza o bolsonarismo, como categoria político-ideológico, será alvo de inúmeros estudos e árduos debates nas universidades e na sociedade de forma geral. Até mesmo porque se trata de um fenômeno ainda em curso. Nossa pesquisa, ainda que incipiente, não tem a pretensão de fechar a discussão sobre o que é e qual o significado da ascensão de Jair Bolsonaro a presidência da República em 2018. Mesmo com todas essas ressalvas, acreditamos que algumas pistas nos dão indícios desse fenômeno que explodiu nas eleições de 2018 – não só no nível federal mas também estadual.

Pelo menos até o momento que o autor dessas linhas produz esse texto, não nos parece correto falarmos em bolsonarismo ou onda bolsonarista em 2018 – mesmo usando com recorrência o termo –, mas sim antipetismo. Pois vimos que desde 2015 houve uma explosão social e de uma direita que tinha como unidade política a visão do inimigo comum e que refletia tudo que eles eram contra. O PT simbolizava tudo aquilo, como bem detalhou o professor Jorge Chaloub, que a nova direita era contra, fossem elas coisas reais (o Estado, esquerda, melhoria de vida dos mais pobres, corrupção, burocracia, hegemonia petista) ou irreais (conspiração comunista, corrida para o socialismo, semelhança entre Brasil e Venezuela etc.). O pleito de 2016 demonstra o declínio do PT de forma clara. E 2018 é o desfecho desse processo o qual o candidato do PSL apenas soube surfar com muito mais habilidade do que os outros candidatos à presidência. Outro fator importante é que o mapa eleitoral mostra que Bolsonaro apenas herdou os históricos votos do PSDB desde 2006, não constituindo base própria de votação apenas uma repetição da antiga disputa entre o PT e o PSDB. Mesmo em termos socioeconômicos, o quadro se repete. Pegando o lulismo como referência teórica de André Singer e que nasceu em 2006, em 2018 temos apenas o antilulismo.

Vimos também que a base social do que chamamos vulgarmente de bolsonarismo é frágil e se dissolveu nos dois primeiros anos de governo. Liberais, empresários, jornalistas da grande mídia, religiosos, conservadores, lavajatistas, neofascistas, neointegralistas, profissionais de segurança etc. Todos eles orbitaram em torno do ex-capitão não por uma proposta clara político-ideológica de país, mas pelo seu poder de concentrar a repulsa ao PT. Outro pilar que sustentou a popularidade do candidato, em termos mais modestos, foi seu apolitismo. Ou seja, seu poder de negação da política e dos seus agentes. Claro que essa segunda categoria é consequência direta do antipetismo.

1 – SINGER, André. Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 13.

2 – Ibidem., p. 13.

3 – Números referentes ao livro de André Singer, p. 230 e Acervo Folha disponível em: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=48506&anchor=6103844&origem=busca&pd=e9a5ef64473cc038a84b8dec8b1bda2d

4 – Matéria disponível em https://www.espn.com.br/nba/artigo/_/id/6292896/los-angeles-lakers-desbanca-golden-state-warriors-e-recupera-posto-de-time-mais-odiado-da-nba Acessado em: 16 maio 2020.

5 – ZALIS, Pieter. LEITE, Pedro Dias. Para onde eles vão agora. Veja, São Paulo, n. 36, p. 55 set. 2016.

6 – Artigo disponível em: https://www.folhadelondrina.com.br/folha-mais/olho-por-olho-dente-por-dente____a-retaliacao-que-nao-cabe-na-constituicao-2982408e.html Acessado em 14 set. 2020.

7 – COGGIOLA, Osvaldo. A perfeitamente resistível ascensão de Jair e Hamilton. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, n. 136, p. 11, nov. 2018.

8 – Caras da avenida. Folha de São Paulo, São Paulo, ano 95, n. 31.393, 16 mar. 2015. Poder, p A9.

9 – Protestos de março. Folha de São Paulo, São Paulo, ano 95, n. 31.393, 16 mar. 2015. Poder, pp. A5-A11.

10 – Caras da avenida. Folha de São Paulo, São Paulo, ano. 95, n. 31.393, 16 mar. 2015. Poder p. A8.

11 – CANZIAN, Fernando. Rincão bolsonarista em Santa Catarina rejeita passado negro. Folha de São Paulo, São Paulo, ano 98, n. 32.716, 29 out. 2018. Eleições 2018, p. A28.

12 – Morre mais gente no Brasil que na Síria, país em guerra desde 2011. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/06/total-de-mortes-violentas-no-brasil-e-maior-do-que-o-da-guerra-na-siria.shtml Acessado em: 26 set. 2020.

13 – CHALOUB, Jorge. Um olhar sobre a instável hegemonia da direita radical. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, n. 136, p. 7, nov. 2018.

14 – Caras da avenida. Folha de São Paulo, São Paulo, ano 95, n. 31.393, 16 mar. 2015. Poder, p. A8.

15 – Caras da avenida. Folha de São Paulo, São Paulo, ano 95, n. 31.393, 16 mar. 2015. Poder, p. A9.

16 – Fórum dos leitores. Estado de São Paulo, São Paulo, ano 136, n. 44.344, 16 mar. 2015. Espaço aberto, p. A2.

17 – LeitorVeja, São Paulo, n. 12, p. 31, mar. 2015.

18 – Em primeiro discurso, prefeito eleito prega pacificação no PSDB. Folha de São Paulo, São Paulo, ano. 96, n. 31.960, 3 out. 2016. Eleições 2016, p. 2.19 – Entrevista disponível abaixo. Acessado em: 10 jan. 2021.

20 – Bolsonaro diz que vai “fuzilar a petralhada”. Disponível em https://exame.com/brasil/vamos-fuzilar-a-petralhada-diz-bolsonaro-em-campanha-no-acre/ Acessado em: 24 jan. 2021.21 – Entrevista disponível abaixo. Acessado em: 24 jan. 2021.

22 – Entrevista disponível abaixo. Acessado em: 24 jan. 2021.

23 – JÚNIOR, João Ribeiro. O que é nazismo. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 67.

24 – COSTA, Ana Clara. A ameaça Bolsonaro. Veja, São Paulo, n. 41, pp. 42-46 11 out. 2017.

25 – “Missão não se escolhe, nem se discute, se cumpre”. Folha de São Paulo, São Paulo, ano. 98, n. 32.716, 29 out. 2018. Eleições 2018, p. A9.

26 – Discurso de posse do presidente.  Acessado em: 30 out. 2020.

Fonte da matéria: https://outraspalavras.net/direita-assanhada/o-estranho-bolsonarismo-e-seus-elementos-centrais/

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