Jacques Távora Alfonsin – Enquanto a concentração da terra em poucas mãos não conhecer limite, não haverá limite também para o aumento dos conflitos sobre terra.
O número crescente de conflitos sobre posse de terra, em todo o Brasil, seja no meio urbano, seja no meio rural, já demonstrou claramente a inconveniência de ser resolvido por sentença judicial, executada com a violência da força pública. Problemas de gente morrendo por não ter o que comer ou onde morar, presentes nesses conflitos, não devem e não podem ser resolvidos dessa forma.
Aos poucos, juízas e juízes vão se convencendo disso, e as Corregedorias de Justiça criando espaços alternativos ao do costumeiro hábito de a interpretação da lei ser obra exclusiva de autoridade, facultando assim à próprias pessoas envolvidas nesse tipo de disputa, se pronunciarem mais livremente sobre ela. Sem toda a cerimônia própria dos ritos processuais, às vezes até com o auxílio de terceiras/os, como já acontecia com a chamada justiça restaurativa, é de se contar com mais essa iniciativa para garantir desfechos mais rápidos e justos para ações judiciais que envolvem terra e gente necessitada de acesso a ela.
Nesse reconhecimento expresso de que o formalismo processual é insuficiente para compreender e resolver disputas sobre posse de um bem como esse, fonte de vida para todas/os, vários Estados da Federação já dispõem de grupos de juízas/es encarregadas/os de presidir reuniões de conciliação, capazes o suficiente para desempenhar mais de uma função. Ampliar o seu conhecimento da terra e das profundas desigualdades sociais que a sua distribuição pode produzir: estreitar uma proximidade com litigantes, que a sala de audiências quase sempre proíbe; desarmar, na maior medida possível, o grau de preconceito, desconfiança, até ódio ou raiva, quase sempre inspirando ações judiciais dessa espécie.
Trata-se, pois, de uma iniciativa das Corregedorias que só estão recebendo críticas negativas de quem só acredita na autoridade, quando ela usa do seu poder de sanção, punindo, constrangendo, usando de violência e até humilhando, exatamente ali onde se abrem todas aquelas portas para o abuso de poder.
Alguns relatos de quem já participou dessas audiências de conciliação, todavia, como parte ou como advogada/o, mostram um surpreendente e indesejável desperdício das possibilidades franqueadas por elas, pesando contra o êxito de outras. Estão aparecendo três atitudes de quem preside uma conciliação com força capaz de eliminar qualquer chance de seu sucesso.
A primeira é a do ponto de partida escolhido para se dar a conciliação; a segunda é a da linguagem utilizada, e a terceira é a do poder de intimidação que qualquer autoridade pública, mesmo inconscientemente, introjeta em gente pobre e ignorante, por sua simples condição de poder.
Quando o ponto de partida já é o de considerar antecipadamente, como decisivo, o direito à reintegração, no caso de uma possessória, julgando prejudicado, sem mais, o direito de moradia da parte contrária a quem pleiteia a posse da terra, por exemplo, na verdade não está abrindo nenhuma porta de acordo negociado. O direito humano fundamental social de moradia, reconhecido no artigo 6º da Constituição Federal – a começar por aí – deveria ser lembrado por quem preside conciliação, só apareceu lá, por uma emenda constitucional votada mais de uma década depois de 1988, para vergonha nossa e justamente por pressão dessas multidões pobres, presentes nessas audiências de conciliação.
Se ele nem assim é levado em conta, essas audiências só servem para antecipar a sentença, mal prorrogando a data da sua execução, com todos aqueles efeitos indesejados pela própria conciliação. Imagine-se aquela senhora pobre, de bebê recém nascido que leva a ao colo, lá no canto da sala onde essa audiência informal está sendo realizada, ouvir do/a juiz/a, em tom de severa ameaça, como aconteceu recentemente numa dessas audiências previstas para se buscar uma transação e evitar uma violência:
“Se vocês não concordam em sair pacificamente do imóvel, eu não posso fazer nada; já existe coisa julgada sobre esse caso e, aí, eu só posso devolver esse processo para a Vara de origem; lá, a força pública usará dos seus meios para retirar vocês da área”.
A tal mulher tem outros filhos, estão em escola próxima, há serviços públicos de agua, luz, segurança e transporte onde ela os está criando, tudo levado para lá, por pressão de moradoras/es, há mais de dez anos, quando ela chegou ali com o marido desempregado e a sua velha mãe doente:
“Meu Deus, sair pacificamente para onde, se o que eu ganho devo ao bolsa família, não tenho para onde ir nem dinheiro para a mudança? Que diabos hão de ser coisa julgada e vara de origem?”
Aí está uma prova clara, mais do que do desperdício de um instrumento jurídico válido como é o da conciliação, o de não se deixar de aproveitar, por mínima que seja, a chance de se fazer justiça. Uma oportunidade como a da conciliação deveria advertir sua condução, que o próprio Código de Processo Civil dá preferência para essa modalidade de solução de questões levadas a juízo. Chegou a criar um capítulo inteiro sobre isso (artigos 165/167) e, nos conflitos sobre terra, como em possessórias multitudinárias propostas contra sem-tetos e sem-terras, índias/os e quilombolas, por exemplo, há mais razão ainda para essa iniciativa (artigo 139 inciso V e 565 e seus parágrafos).
Enquanto a concentração da terra em poucas mãos não conhecer limite (uma velha reivindicação popular de se impor em lei um módulo máximo para esse tipo de ocupação do espaço territorial), não haverá limite também para o aumento dos conflitos sobre terra, pois sendo essa limitada, a matemática se encarrega de ensinar: alguém que a ocupa ilimitadamente veta espaço necessário à vida alheia.
A conciliação judicial não resolve esse problema, mas não deveria somar aos seus péssimos efeitos o desperdício da chance de restringi-los, mesmo na escala diminuta de um processo judicial.
O desperdício da conciliação judicial em conflitos sobre terra
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