Jamil Chade – Eles são líderes comunitários, artistas, vereadores, jornalistas, defensores de direitos humanos, indígenas e cientistas. No Brasil, há um ponto em comum que os une: a realidade cada vez mais clara de violência, intimidação, pressão ou mesmo morte. Levantamentos realizados por diferentes instituições revelam que o espaço democrático no país encolheu com leis, processos judiciais, corte de orçamentos ou simplesmente “pela bala”.
O Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, um dos maiores bancos de dados sobre democracias no mundo, já deixou de classificar o Brasil desde o começo do ano como uma “democracia liberal”. Agora, o país é visto como uma “democracia eleitoral”, agarrada ao voto como garantia mínima de direitos iguais.
Esse fenômeno já havia sido denunciado na ONU pela alta comissária de direitos humanos, Michelle Bachelet, em 2019, o que levou o presidente Jair Bolsonaro a contra-atacar com duras críticas direcionadas à ex-presidente chilena, inclusive evocando a ditadura militar chilena.
Ainda de acordo com o V-Dem, que coleta informações sobre países desde 1789, ano de início da Revolução Francesa, nos últimos dez anos a deterioração da democracia no Brasil só não foi maior que a realidade verificada na Hungria, Turquia, Polônia e Sérvia.
Segundo Staffan Lindberg, um dos autores do informe e diretor do instituto, tal tendência ganhou uma nova dimensão mais recentemente. “O Brasil foi um dos países no mundo que registrou a maior queda nos índices de democracia nos últimos três anos”, alertou. “Para o Brasil, ao que parece, o futuro foi adiado mais uma vez”, conclui o Centro para o Futuro das Democracias da Universidade de Cambridge.
Brasil passa a ser questionado no debate mundial
Pela primeira vez em décadas, o país foi denunciado nas instâncias internacionais, inclusive por flertar com o risco de genocídio durante a pandemia de coronavírus.
Já no Conselho de Direitos Humanos da ONU, um relator sugeriu que uma comissão de inquérito fosse montada para examinar a crise de direitos humanos no Brasil, algo inédito desde o fim da ditadura militar (1964-1985). O governo brasileiro rechaça a investigação, acusando-a de operar sob “tutela ideológica”.
A partir de dados públicos, levantamentos de entidades reconhecidas e casos concretos, a reportagem do UOL mapeia a seguir esse encolhimento do espaço cívico e democrático no país.
Ser político pode ser perigoso
Um dos aspectos é a violência contra políticos. Nesta semana, a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) foi obrigada a recorrer à ONU diante de ameaças que vem sofrendo contra sua vida, num cenário que remete ao caso de Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio.
Um levantamento realizado pelas ONGs (organizações não governamentais) Terra de Direitos e Justiça Global identificou 327 casos de violência política no país entre 2016 e 2020. Nesse período, foram 125 assassinatos e atentados, além de 85 ameaças e 33 agressões. Vereadores, prefeitos e vice-prefeitos são os principais alvos.
2019 foi especialmente violento para os políticos, com três vezes mais casos em comparação aos dados de 2016. No ano passado, pelo menos um episódio de violência política foi registrado a cada três dias no Brasil, a maioria no interior do país.
Em dois terços dos casos jamais se identificaram os suspeitos pelos assassinatos, um sinal claro da imunidade e baixa responsabilização nesses crimes.
“Nos últimos quatro anos e meio, assassinatos e atentados tiveram papel relevante na estruturação da violência política e eleitoral no Brasil”, aponta o documento. “Os casos não se resumem a ataques de ordem pessoal, tratam-se de fenômenos que afetam a integridade da democracia, comprometem o exercício regular de direitos políticos e atacam esferas coletivas e difusas de participação”, apontou.
Na universidade, professores com receio em tratar de assuntos
A liberdade acadêmica também está sob ataque, segundo um levantamento publicado Global Public Policy Institute, em Berlim. De acordo com o estudo, as ameaças ganharam força quando o então candidato Jair Bolsonaro passou a atacar universidades, colocando-as como foco de sua ofensiva contra o “comunismo”.
Os ataques não ficaram apenas no discurso e incluem cortes significativos no orçamento e congelamentos, entre outros fatores, apontam os alemães.
O informe ainda cita o relatório do Scholars at Risk, publicado nos Estados Unidos em novembro de 2019, e que coleta casos de ataques direcionados a acadêmicos e estudantes em todo o mundo. Pela primeira vez, o instituto indicou “a crescente fragilidade do ambiente acadêmico no Brasil”.
Isso se traduz em casos como o de um estudante da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) que recebeu ameaças racistas e foi estuprado no contexto de ataques contra a comunidade LGBTQ+ por apoiadores bolsonaristas por volta da época das eleições, aponta o estudo.
17% dos entrevistados disseram ter restringido o conteúdo de suas pesquisas por medo de represálias, especialmente por parte de agências de financiamento e atores ou órgãos da administração pública. Além da pesquisa, 20% dos entrevistados mencionaram restringir o conteúdo de suas aulas por medo de represálias.
Arte censurada
Outra constatação da pressão é sentida no setor das artes. O Observatório de Censura à Arte, com sede em Porto Alegre, compila cerca de 50 casos de censura ou tentativa de censura contra artistas e obras no Brasil desde 2017. Mas os dados revelam um salto importante a partir do final de 2018.
O observatório tem como objetivo “mapear os casos de censura às expressões artísticas no Brasil desde o episódio do Queermuseu, escolhido aqui como marco devido à repercussão emblemática”.
Um deles ocorreu em fevereiro de 2020, quando um memorando da Secretaria de Educação de Rondônia começou a circular nas redes sociais. “Com assinatura eletrônica que comprova a autoria, o documento apresentava uma lista de mais de 40 livros que deveriam ser recolhidos das escolas, pois estavam classificados como “inadequados”, indica o Observatório.
“Com a rápida repercussão negativa, o governo primeiramente negou a autoria do documento, depois admitiu a censura e recuou da decisão. A lista continha livros de autores como Machado de Assis, Caio Fernando Abreu, Carlos Heitor Cony, Euclides da Cunha, Ferreira Gullar, Nelson Rodrigues, Mário de Andrade, Rubem Fonseca, Franz Kafka e Edgard Alan Poe”, diz.
“Além disso, constava no documento que “todos os livros de Rubem Alves” também deveriam ser recolhidos”, indicou.
Ataques constantes à imprensa, partindo do presidente e de seus filhos
Os ataques contra a imprensa também aumentaram, enquanto o acesso à informação passou a ser dificultado. Segundo um levantamento da entidade Artigo 19, Bolsonaro, seus filhos, ministros e assessores realizaram um total de 449 ataques contra jornalistas desde o início de seu mandato, em janeiro de 2019.
Desse total, 23% partiram do próprio presidente, o que representa 102 ataques. O estudo aponta que 40 deles tentaram deslegitimar o trabalho da imprensa, contra outras 40 declarações com discurso estigmatizante sobre a mídia. Em 13% dos casos, o presidente expôs jornalistas e comunicadores, gerando ataques massivos contra estes nas redes sociais.
“Os filhos de Jair Bolsonaro que também exercem mandatos eletivos e figuraram como autores de quase metade (220) dos ataques”, diz o documento.
O acesso à informação também passou a ser dificultado. Uma MP (medida provisória) editada por Bolsonaro em março propunha uma emenda à lei de acesso à informação que suspenderia o prazo de resposta por parte das entidades públicas, sob a justificativa da pandemia. Em abril, a MP foi derrubada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
Ativistas e indígenas mortos, e conselhos esvaziados
Outra constatação é de que a violência contra grupos indígenas aumentou de forma importante nos últimos anos. Um recente informe produzido pelo Conselho Indigenista Missionário, ligado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil ) revelou nesta semana que houve uma “explosão nos casos de agressão, 276 em 2019, contra indígenas, em comparação com 110 em 2018, além de um aumento nos suicídios e um aumento de 134,9% nas invasões de territórios indígenas”.
Para a Global Witness, o Brasil é o terceiro lugar no mundo mais perigoso para ativistas ambientais e defensores dos direitos humanos. Em 2019, 24 assassinatos ocorreram no país. Desses, 10 eram indígenas. O Brasil ainda representa um assassinato de cada dez ambientalistas que morreram no mundo no ano passado.
Desde 2002, a organização estima que foram pelo menos 653 execuções no pais, o que estabelece o Brasil como o mais perigoso nesse século para ambientalistas e ativistas. Criado há quase 20 anos o ranking sempre trouxe o Brasil como o principal local de mortes do mundo.
O encolhimento do espaço cívico não ocorre apenas pela violência. Desde 2019, o governo modificou de forma profunda a maneira de funcionamento dos conselhos e órgãos colegiadas da administração pública federal, o que de fato mina a participação da sociedade civil na formulação de políticas públicas.
Numa primeira avaliação, 55 órgãos colegiados seriam extintos, esvaziados ou seriamente abalados. Em uma carta a relatores da ONU que se queixavam desse gesto do governo, porém, Brasília insistiu sobre a necessidade de fazer a reforma.
O cenário em diferentes segmentos da sociedade preocupa também Ilona Szabó de Carvalho, cientista política e cofundadora do Instituto Igarapé. “O espaço cívico — a esfera pública onde cidadãos se organizam, debatem e agem para influenciar a opinião e as políticas públicas – está se fechando em uma velocidade assustadora no Brasil”, alertou Ilona em entrevista à coluna. Ela está lançando neste mês seu novo livro “A defesa do espaço cívico” (Editora Objectiva).
“O governo de extrema-direita está avançando de maneira ameaçadora sobre o trabalho e sobre a liberdade de expressão e atuação de ativistas, jornalistas, acadêmicos e artistas, demonizando os direitos humanos e a ciência, perseguindo e criminalizando os adversários e implementando ações intimidatórias e repressivas”, disse.
Segundo ela, a supressão do debate livre, da mobilização e da participação social exercem efeitos negativos na formulação de políticas públicas efetivas e, por consequência, no bem público. “E é fatal para o exercício pleno da democracia”, disse.
Ilona aponta que o Brasil está seguindo a cartilha com estratégias usadas por líderes com traços populistas-autoritários que estão deliberadamente fechando o espaço cívico mundo afora.
“A esfera digital é apenas a face mais visível dessa guerra contra a democracia. A intimidação online, as ameaças e as tentativas de difamação mobilizada por haters, perfis falsos e robôs podem ter consequências graves no mundo real e, cada vez mais são acompanhadas por outras estratégias e táticas que incluem censura, vigilância, ameaças, entre outras”, diz.
“Se quisermos defender e recuperar o espaço cívico — e assim revitalizar nossas democracias — precisamos detectar melhor os sinais de alerta de que ele está em perigo”, defende.
“E para enfrentar nossos maiores desafios comuns, de um lado, os cidadãos terão de se levantar contra as ameaças; de outro, lideranças responsáveis precisarão formar coalizões amplas, capazes de se estender por diferentes áreas e geografias de interesse. No momento em que governos estão se voltando contra seus cidadãos, parece mais urgente do que nunca a ação cívica para intermediar novos pactos sociais e garantir um planeta mais solidário, cooperativo e sustentável para as futuras gerações”, completou.
Fonte da matéria:
(https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/10/03/nao-e-papo-de-comunista-a-democracia-esta-de-fato-encolhendo-no-brasil.htm)
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