Marcio Pochmann – Por conta da pandemia, 68,3 milhões de trabalhadores formais, informais e desempregados precisaram recorrer aos programas emergenciais do governo.
Impactos sociais e econômicos da pandemia podem provocar debate sobre retomada da construção de estado de bem estar social no Brasil
Nos marcos do capitalismo, a problemática da pobreza se alterou profundamente. Isso porque deixou de estar associada à escassez resultante da insuficiência de produção dos bens e serviços necessários à sobrevivência humana. No crescente processo de acumulação de capital, a prevalência do pauperismo deixou de referir-se à escassez, para ser resultado da concentração da riqueza gerada.
Nestes termos, a longa trajetória da antiga Lei dos Pobres, implementada em 1388 na Inglaterra, sofreu importante inflexão em 1834. Sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, com o desenvolvimento do Estado de bem-estar social. Por quase 450 anos, a Lei dos Pobres inglesa visava mais à punição do que à proteção social dos pobres. A lei decorreu da escassez de mão de obra diante do extermínio e cerca de 1/3 da população pela peste negra,
O avanço da riqueza capitalista expandida e cada vez mais concentrada em poucas famílias convivendo com a massificação dos empobrecidos gerou um conjunto de reações crescentes que acabaram sendo contornadas pelo estabelecimento do sistemas de proteção social e trabalhista, bem como da promoção do bem estar econômico.
De um lado, a oferta de equipamentos e serviços públicos universais nas áreas, por exemplo, da saúde e educação. De outro, a difusão do sistema de garantia de renda às famílias pobres, velhos, desempregados, doentes, pessoas com deficiências físicas e mentais. Todos associados à previdência e assistência social e outros mecanismos de transferência de renda.
Em geral, a redistribuição do fundo público financiado por tributos progressivamente cobrados relativamente mais entre os ricos à parcela empobrecida, permitindo reduzir a pobreza e a desigualdade de renda.
Pobreza desproporcional
O desenvolvimento tardio do capitalismo no Brasil foi acompanhado da condição retardatária de medidas redistributivas, resultando na condição de um dos países mais desiguais do mundo, com um contingente de pobres desproporcional à riqueza acumulada de alguns poucos. A Constituição Federal de 1988 buscou, em parte, reparar o atraso nacional, criando as condições legais para a construção do Estado de bem estar social.
Após três décadas de avanços aos “trancos e barrancos”, o Brasil situava-se entre os países com considerável montagem do seu Estado de bem estar social. Mas desde o golpe de 2016, com os retrocessos decorrentes do desmonte do Estado brasileiro, a oferta de equipamentos e serviços públicos universais tem sido contraída consideravelmente.
Além disso, houve também a privatização e os cortes de recursos orçamentários impostos pelas políticas neoliberais de austeridade fiscal. A Emenda Constitucional 95 congelou os recursos públicos não financeiros por duas décadas, contraiu verbas e inviabilizou políticas de proteção social e trabalhista.
Com a pandemia do novo coronavírus, contudo, parece ocorrer uma reviravolta aparente na política de garantia de renda do governo atual. Além de incorporar em 1,2 milhão de novas famílias ao Bolsa Família, foi instituída garantia temporária de renda aos brasileiros em situação de vulnerabilidade social. Inicialmente por três meses, no valor mensal de R$ 600, para cada pessoa elegível, sendo possível acumular até dois benefícios por família.
Até o mês de junho, 58,6 milhões de pessoas foram beneficiadas (91,5% do total de trabalhadores sem contrato de trabalho assalariado formal). Destes, 50,7% advindos dos cadastros já existentes do programa Bolsa Família e 59,3% recentemente selecionados pela Caixa Econômica Federal.
O papel da política social
Com isso, 95% dos 14,2 milhões de beneficiados pelo Bolsa Família tiveram multiplicado por três o valor recebido desde abril de 2020. Os outros 44,4 milhões de novos beneficiados pelo mesmo programa receberam pela primeira vez uma transferência de recursos do governo federal.
Além disso, entrou em vigor benefício emergencial para empregado formal submetido à suspenção contratual por 60 dias ou à redução da jornada por 90 dias. O valor definido pelo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e de Renda fundamenta-se nas regras do seguro-desemprego, com base na média dos últimos três salários. Foram atendidos em junho a 9,7 milhões de empregados com carteira de trabalho assinada (28,7% do total do emprego formal pertencente ao setor privado).
Em síntese, os novos programas emergenciais implementados para o enfrentamento da pandemia da covid-19 atendem o conjunto de 68,3 milhões de trabalhadores formais, informais e desempregados, o que equivale a 2/3 da atual População Economicamente Ativa (102 milhões de brasileiros).
Ao mesmo tempo, o total de recursos fiscais comprometidos nos novos programas de garantia de rendimentos (R$241,2 bilhões) representa quase 8% do total da renda anual do trabalho no Brasil.
Fonte da matéria:
Deixe uma resposta