Ricardo Neder – Desde Aristóteles, persiste o sonho de que a tecnologia erradicará a escravidão. Mas, no capitalismo, foi tomada para fins econômicos e militares, sujeitando corpos e mentes. É hora de resgatá-la, pelo direito à fruição da vida.
Às quartas-feiras, Outras Palavra publica uma série de artigos de Ricardo Neder, intitulada A Gambiarra e o Panóptico (fruto de livro homônimo, publicado pelo Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina, da UnB, e editora Lutas Anticapital) que, por meio dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia, visa compreender a sociedade de controle e vigilância – e se é possível superá-la e reconstruir o Socialismo e as Democracias. Leia a apresentação da série. Aqui, todos os textos já publicados. O título original do texto abaixo é: Escravidão e Tecnologia
“Os bens são um instrumento para assegurar a vida, a riqueza é um conjunto de tais instrumentos, o escravo é um bem vivo…, e cada auxiliar é por assim dizer, um instrumento que aciona outros instrumentos. Na verdade se cada instrumento pudesse obedecer sua missão obedecendo a ordens ou percebendo antecipadamente o que lhe cumpre fazer, como se diz das estátuas de Dédalos, ou dos trípodes de Vulcano, que entram como autômatos nas reuniões dos deuses, se então as lançadeiras tecessem e as palhetas tocassem cítaras por si mesmas, os construtores não teriam necessidade de auxiliares, e os senhores não necessitariam de escravos.
(Aristóteles. Política)
Um escravo fugido que retorna a casa, é o tema da história que ficou registrada na Bíblia sobre o escravo fugido, Onésimo. Quem já leu há de se lembrar, e os que não o leram certamente gostarão de conhecer. Ele retorna à casa do seu ex-proprietário, com uma carta (conta Paulo, na Epístola aos Romanos). O escravo tinha se refugiado em Roma, e de lá retorna para sua cidade natal, com a carta a tiracolo que ficou conhecida como Carta a Filemon (nome do dono do escravo fugido).
Ele foi confrontado pela exortação de Paulo, o ex-centurião romano, como reza a lenda. Diz na carta:“tens de volta não um servo, mas um irmão caríssimo!” (Em outras palavras, aceita que existe uma alma individualizada e os cristãos são intérpretes desta verdade, quis dizer para Filemon). Ora, deve ter sido uma decepção. Perder um escravo? Aceitar Onésimo cristão?! Nem servo ele se considera mais. Vou perder a paz que me assegurava praticar a melhor filosofia e política!
A nova ordem teológico-civil cristã combateu a religiosidade dos antigos que tinham a possibilidade de mergulhar a imaginação ativa tanto na adoração de um deus-imperador, quanto fazer a imersão hipnótica do adepto no tratamento psicossomático em uma jornada de cura de sua doença pelos templos com base na interpretação dos sonhos e mitos. Ao individualizar a alma e apelar para a sua salvação por meio de um espírito tornadologosdivino, o cristianismo passou a condenar que um imperador, por exemplo, pudesse ser adorado como deus.
Para o cristianismo nascente era uma forma de escravização da alma, ou perda da autonomia, em outras palavras – heteronomia. E, assim, condenaram também, de roldão, aquela forma antiga (não a adoração de imperadores), hoje, diríamos, quase psicanaliticamente, que o adepto mergulha na imaginação e vive uma cura psíquica que o poderia levar a um estado de liberação e autonomia diante do sofrimento.
Terá lhe dado um conforto à altura da cura iniciática dos antigos que julgavam ser a alma uma entidade coletiva? De qualquer forma, os tempos eram outros, e o fim do império se avizinhava. O cristianismo abriu caminho futuro para individualizar a alma do trabalhador e do pobre na cidade e no campo, da mulher e da criança – tão idêntica quanto à do senhor e do imperador (unindo-os contra os pagãos).
Uma ideia subversiva que atravessou séculos sendo contestada pelos poderosos (laicos e religiosos) levou esta discussão muito além dos séculos indígenas nos quais portugueses e espanhóis dos Descobrimentos, se depararam com os nossos povos sul-americanos. Foram tomados supostamente sem alma, ao serem escravizados e massacrados impiedosamente. Ela persistirá, na verdade, pelo menos até final do Século XIX, em um dos últimos países a tolerar a escravidão, o Brasil. Na época de Onésimo este adquire autonomia intelectual e pode pensar por conta própria, como aconteceu nesta história. Tal liberdade custou caro aos senhores. (O então proletariado sob o império romano no dia a dia desempenhava uma série de serviços domésticos, ajudava na administração da produção, comercialização e colocava em dia os serviços públicos).
Perder um escravo tinha algo que podemos comparar hoje a ter uma casa ou um carro roubado. (Ele era, de certa forma, um ser máquina). Uma tecnologia viva, naquela época. Hoje quando abrimos a geladeira querendo água ou cerveja fria, e a encontramos com certeza no interior do aparelho, se estabelece uma funcionalidade que é ao mesmo tempo familiaridade e estranheza, entre o sujeito e a máquina.
Dependo da máquina para esta pequena satisfação e são de relações aparentemente banais como estas que se desenvolvem as formas de heteronomia ou dependência. A tecnologia era vista como saber aplicado e capaz de alterar as condições da vida do homem.
Esta antiga promessa já tinha sido genialmente intuída pelos filósofos na Antiguidade. Particularmente Aristóteles vislumbrou, nas realizações de máquinas simples, o funcionamento de autômatos como substitutos dos escravos para aliviar o fardo da humanidade diante do labor. O maior filósofo da Antiguidade ao comentar sobre as partes componentes da cidade, aborda inicialmente o papel do chefe de família, e das famílias… assim como a autoridade daí decorrente sobre a mulher, filhos e a posse de bens inanimados e animados, entre estes últimos os escravos. Em epígrafe mencionamos a passagem na qual ele afirma em Política que os senhores não necessitariam de escravos, se houvessem autômatos.
Notem que Aristóteles sente a falta de “algo” para que isto se torne realidade. Cerca de 1.700 anos depois, Marx, em plena revolução industrial… cita exatamente esta passagem de Aristóteles. E menciona que Antípatros (um poeta grego do tempo de Cícero séc. I d.C)… “saudou a invenção do moinho de água para moer o trigo, forma elementar de toda maquinaria produtiva, como a aurora libertadora das escravas e restauradora da idade de ouro”;daí Marx conduz a reflexão para a atualidade da sua época: “Ah! Esses pagãos!. Nada entendiam de economia política nem de cristianismo (…) entre outras coisas eles não entendiam que a máquina fosse o meio mais eficiente de prolongar a jornada de trabalho”. (O Capital, “A máquina e a indústria moderna).
Tanto os antigos, quanto nós atualmente olhamos para a técnica como um domínio sobre a matéria; tal domínio inclui agora, uma categoria inteiramente diversa que é a das sociedades técnicas; sociedades inteiras existem como tal porque os dispositivos técnicos são parte da herança de conhecimentos fortemente estruturados em bases de transmissão cultural. Mas nunca vimos sociedade humana qualquer transformar a matéria sem dotar esta apropriação de um sentido ou conteúdos específicos: as identidades cultural, religiosa, militar, econômica estão mescladas nos dispositivos técnicos, e não há como destrinchá-las. Na antiguidade esta apropriação estava regida por considerações de ordem mágica ou esotérica, pragmáticas e utópicas ao mesmo tempo, sem dualismos. Talvez a diferença seja esta: adotamos um olhar dualista ao atribuir um sentido de autonomia à tecnologia, e elidimos assim, seus vínculos mais íntimos com o senso comum.
Aliás, havia técnicas dominadas diferencialmente por homens e mulheres. A técnica era, antes de tudo, um domínio sacralizado sobre a matéria, tratada como “algo” se destituído de vida, ou parte de um ser… Era neste sentido, conhecimento esotérico (dotado de conhecimento religioso reservado a poucos) ou exotérico (dotado de sabedoria incomum que depende de uma educação específica laica).
Diante da técnica e da (moderna) tecnologia é prudente partir de um duplo olhar: sua suposta neutralidade ou inocência se esfumaça quando a concebemos tanto como um conhecimento que estuda a si próprio, e por isto ela mesma é um “alvo” de conhecimento (enquanto ciência da tecnologia), quanto uma operação, dispositivo ou conjunto de constructos educacionais e morais, normativos e orientadores do comportamento das massas (no seu consumo material, representações sociais, econômicas, políticas de valorização da tecnologia como um dispositivo ‘neutro’).
Enquanto constructo educacional e moral a tecnologia tem sido desenvolvida para realizar importantes formas de coordenação de valores na sociedade. Qualquer que seja a extensão do apoio da técnica nos procedimentos objetivos das ciências, ela forma um sistema independente. A visão sobre sua neutralidade é interessante. Eram comuns visões de que a tecnologia sendo um elemento cultural que se distingue pela materialidade, ela só promete o bem ou o mal na medida em que os grupos sociais que a exploram prometem o bem ou o mal. A máquina em si não exige e não faz promessas, é o espírito humano que faz exigências e promessas – afirma esta perspectiva ingênua (Lewis Munford).
A tecnologia revela o modo de proceder do homem para com a natureza, o processo imediato de produção de sua vida material e assim elucida as condições de sua vida social e as concepções mentais que dela decorrem (Marx). Dadas as condições contemporâneas nas quais a prática da pesquisa científica colocou o pesquisador sob um falso dualismo – binômio ciência & tecnologia, o somatório chamado tecnocientífico subordina ou disciplina as pesquisas nas universidades e centros privados às demandas de inovação dos sistemas corporativos e empresariais, que nada tem de livre mercado, pois tem o poder oligopólico de comandar o obsoletismo programado dos produtos (embora precisem ser conspiratórios o suficiente para assegurar apoios de governos para legislações nacionais que coíbam a rebelião contra o sistema de consumo).
Qual a autonomia e neutralidade dos sujeitos produtores de conhecimento, cientistas e pesquisadores neste quadro? Pesquisadores ou coletivos sociais e instituições diante de políticas e gestores governamentais, empresários e poder econômico, como ficaram? É significativo que até o século XVIII os diferentes ofícios e artes, técnicos e artesãos tivessem a denominação de ofícios de mistérios (mystères) em cujos arcanos só podiam entrar os empíricos e profissionalmente iniciados.
Segundo Marx,a indústria moderna rasgou o véu que ocultava ao homem seu próprio processo social de produção e que transformava os ramos de produção naturalmente diversos em enigmas, mesmo para aqueles que fosse iniciado num deles. Esta concepção de ciência da tecnologia (marca) o princípio de considerar em si mesmo cada processo de produção e de decompô-lo sem levar em conta qualquer intervenção da mão humana em seus elementos constitutivos”. (Marx, O capital: 2006:551 23ª ed.).
Uma reflexão crítica contemporânea começa a analisar a tecnologia por meio do conceito de ambivalência: a tecnologia ora se concretiza como alvo de conhecimento, ora é operada como instância de coordenação de valores. Marx apontou a ingenuidade dos antigos para quem a tecnologia viria a reduzir os esforços e dores do trabalho pesado. Já nos séculos XVI/XVII isto se tornou um potencial ideológico quando Leonardo da Vinci, Galileu e Francis Bacon lançaram as bases da ciência experimental (o primeiro projetou máquinas e artifícios que propunham a capacidade do homem para voar, ou mergulhar nas profundezas do mar, e o segundo tornou claro que esta ampliação das capacidades da força humana tinha uma base experimental que geraria a transformação do mundo; enquanto o terceiro realizou a defesa de uma moralidade a mais ampla possível ao associar progresso social ao desenvolvimento da ciência).
A partir daí estava em questão uma outra finalidade inteiramente diversa da realização da ciência experimental para possibilitar a superação do labor e aumentar a autonomia do indivíduo. A preocupação de Da Vinci e Galileu era diferente da de Aristóteles. Máquinas servem a propósitos da engenharia civil e militar; apresentam resultados decisivos em matéria econômica. Devem ser aplicadas para multiplicar a força do homem na paz e na guerra. Este vertente foi amplamente dominante desde então. Após as grandes guerras mundiais no Século XX devemos, de fato, indagar onde teria ido parar o antigo sonho de fazer da tecnologia um alívio das dores do labor (Hannah Arendt).
As formas de superação da escravatura não são ditadas pela adoção da tecnologia. Ao contrário, os sistemas técnicos ressignificaram as tentativas de subordinação do/a trabalhador/a a tempos e modos de trabalhar. Não foi abolida a idolatria do trabalho, e a tecnologia se tornou propulsora de um permanente estado de frustração que posterga para o futuro a abolição da heteronomia do trabalho. Este desgosto por ter que trabalhar sem gosto. Em luta contra isto, e pelo direito à vagabundagem, em suas metamorfoses afrobrasileiras e povos indígenas insistem em entrar na modernidade pelo Porta de Galegos (a da tecnologia que liberta, e depois de passar por ela, nunca mais retornamos ao estado ex-ante). A que dá acesso à modernidade industrialista com o direito à vagabundagem? A luta pelo direito à vagabundagem permanece como traço de distinção e expressão da cultura popular. Daí outra dimensão da gambiarra que preside a luta pelo direito a vagabundagem diante da dialéctica da gambiarra e do panótico (hoje em torno do controle cibernético). Luta agora convertida em um novo Pelourinho das criptolinguagens nas redes: trata-se de superar a condição de heteronomia, ao mesmo tempo que nos obriga a ser construtores; desincorporar a pessoa dos sistemas técnicos (sair da Matrix) exige a gambiarra como uma conquista de si próprio. Diversamente do passado, em lugar de escravizar o corpo do(a) trabalhador(a), tornamos servil a relação dos corpos com os sistemas técnicos (o que parece desviar a atenção desta tensão e conflito entre senhor e escravo, pois o algoz à distância não é percebido). A tecnologia torna-se símile de liberação.
Porque todo desenvolvimento tecnológico deve estar associado ao regime de produtividade econômica? Estamos neste ponto, próximos a uma pergunta mais ampla, diretamente ligada ao fato de que o nosso conhecimento convertido em tecnologia gerar uma segunda natureza (a qual é a própria base da produtividade econômica).
Recriamos um mundo artificial (tecnológico) que abarca esta produtividade; ela não existe fora dele. Mas, ao mesmo tempo, ao sermos recriados por esta segunda natureza externa e objetiva, estamos diante de um movimento que não é rigorosamente da sociedade “sobre si mesma” (típico problema do século XX) mas dos desdobramentos de como a sociedade estabelece o “controle sobre o controle” da segunda natureza sobre as condições de reprodução da nossa autonomia. Esta subordinação tornou-se condição para os incrementos de produtividade em todos os setores econômicos, e ao mesmo tempo inviabilizou a abolição da heteronomia.
Herbert Marcuse (em meados no século XX) aprofundou esta reflexão durante seu exílio nos Estados Unidos, longe da Alemanha nazista. Quando escreve Eros e Civilização e Ideologia da Sociedade Industrial, já tinha consolidado a análise de filosofia política sobre duas dimensões-chaves de qualquer tecnologia: enquanto expressão estética com a qual as sociedades capitalistas contemporâneas (pós anos 1960) plasmam ou articulam a ligação do sujeito com a realidade.
Em segundo, é também componente fundamental de produtividade do aparelho econômico-produtivo de dominação política em dupla chave: torna-se um poder em si; e contrapõe-se como enxame súcia, bandos contrabandos do poder industrial-militar dos países do centro capitalista sobre o mundo.
A razão é simples, mas polimórfica: a tecnologia além de ser uma forma de conhecimento, é também uma forma de coordenação e de regulação (social, cultural, política, estética e militar) de interesses. Marcuse foi um dos primeiros a perceber isto, já nos anos 1940 como uma dimensão de regulação social e cultural mediada pelas tecnologias como estética, ao lado da dimensão mais antiga anotada por Marx, de que a tecnologia é parte das relações sociais do trabalho e quem detém o poder econômico a utiliza com o objetivo de incrementar a produtividade do trabalho. A tecnologia gera maiores lucros enquanto parte da lógica do capital.
Mais do que aumentar a produtividade do trabalho, Marcuse em fins dos anos 1940 – em Eros & Civilização – dirá que a tecnologia tornou-se elemento gerador de heteronomia; sendo seu desenvolvimento pré-condição para a existência do regime de assalariamento este, ao dar origem à moderna classe trabalhadora, ao mesmo tempo gerou as condições de sua heteronomia, ou perda de autonomia.
Na verdade, Onésimo e Filemon são personagens do início da era da acumulação primitiva cristã, época que os reformadores viviam um problema ético. Como superar o regime de heteronomia da escravidão, sem destruir a sociedade? O cristianismo afirmava que não bastava abolir formalmente a escravidão; tornava-se necessário liberar a consciência do sujeito dos grilhões da escravidão. Isto levou pelo menos dezoito séculos (porque não foi o cristianismo que aboliu a escravidão, mas o surgimento de um regime econômico que elevou tanto a produtividade do trabalho no Séc. XIX, com base tecnocientífica eletromecânica que acabar com a escravidão tornou-se subproduto humanitário e cultural in/conveniente).
Esta trajetória talvez mais espetacular e complexa do conhecimento por que passou a humanidade tem como visão complementar: não existe ciência sem tecnologia, e vice-versa. A ciência experimental (que conduz à tecnologia) é a forma universalizada da técnica; em contraste com as experiências históricas das técnicas entre os chineses antigos, mesopotâmicos, gregos e romanos, árabes e persas que expandiram as técnicas até um certo ponto, estas experiências civilizacionais não puderam ultrapassar o limiar a partir do qual se tornaria tecnologia.
Tardiamente, a ciência experimental, a tecnologia e os sistemas técnicos passaram a ser entrelaçados na sociedade. Algo próximo da noção de que ao laboratório de pesquisa & desenvolvimento, se associa uma esfera de instrumentalização secundária da tecnologia (Feenberg) na sociedade, reflexo de uma estética da indústria de máquinas (genérica). Base da formação da classe trabalhadora moderna, deu origem ao operariado industrial. Algo como uma des-antropomorfização da base material? Estaríamos diante de uma evolução ilimitada da ciência e da produção (Lukács)? Assim, os processos que conduzem este enraizamento são mais importantes, ou superiores, aos da própria geração de conhecimento científico que viabiliza a tecnologia. Embora ambos estejam inextricavelmente ligados somos hoje obrigados a rever o olhar unitarista da ciência experimental. Até meados do séc. XIX a visão de que a ciência era única em todo planeta (unitarista) não encontrava contestação. A visão unitarista afirma que os achados da Ciência são válidos para explicarmos os fenômenos físicos e a partir disto construir tecnologias específicas. A uma ciência unitária, corresponderia também a um monismo metodológico no desenvolvimento da tecnologia.
Para os adeptos do unitarismo científico clássico (que nada tem a ver com o que chamamos de unitarismo tecnológico contemporâneo do pós-II guerra mundial) sucedeu uma transformação – se quiserem, um enorme conflito na medida em que as relações entre Ciência & Poder avançaram tão celeremente desde o final do século XIX que a distinção entre fazer por exemplo, ciência química para a indústria civil, e para a indústria militar perdeu toda e qualquer possibilidade de ser defensável.
A pergunta mais ampla está diretamente ligada ao conhecimento convertido em tecnologia que gera uma segunda natureza, é certo, relacionada àquelas duas dimensões de toda tecnologia a que se refere Marcuse. Na sua visão a tecnologia se converteu em uma segunda natureza porque recriamos um mundo artificial, mas ao mesmo tempo, estabelecemos relações sociais que são alimentadas tendo como eixo esta segunda natureza externa e objetiva!
A ciência desde o século XVIII é a sistematização talvez mais espetacular e complexa por que passou a humanidade, e deste conhecimento resultou duas interpretações básicas sobre o fazer científico. Afirma-se que quem faz ciência não faz tecnologia. É o olhar do cientista. Chamemos este de olhar unitarista da ciência. A ciência e os cientistas têm sido unitaristas. Não só seus achados são supostamente válidos em qualquer recanto da terra. Mas trata-se da maneira como explicam os fenômenos físicos: não porque ela pretende ser a mesma, mas são unitaristas porque permitem a partir dela construir tecnologias específicas que tem a pretensão de se tornarem intermediários no nosso cotidiano. Algo como uma ameaça à condição de existência no cotidiano (vista como categoria idealista da atividade livre do sujeito – Adorno).
A uma ciência unitária, corresponderia também a um unitarismo no desenvolvimento da tecnologia. A nova escravidão como sabemos, revela o potencial desta tecnologia implícita na base epistemológica, ou seja, numa base sistemática de conhecimento sobre o mundo, seu funcionamento com leis e regras. Esta perspectiva nos dá um novo sentido à relação do conhecimento (ciência) com a tecnologia. Ela é unitarista – ou seja, só admitimos uma maneira de fazer ciência e tecnologia. É claro que esta equação não foi formulada historicamente de forma negativa, mas apenas como um sinal positivo e o determinante disto é a forma como a inovação tecnológica é adotada como um fato econômico, e ao mesmo tempo, sociocultural.
Aqui retomamos as duas dimensões definidas por Marcuse há 60 anos: ela é um fato econômico e um fato sociocultural total, que (des)vincula o cotidiano da ciência. Daí o problema: como absorver a tecnologia não em sua formulação negativa… (para os trabalhadores é claro) ou positiva (para os empresários que aumentarão seus lucros com ela, sendo ou não sustentável para a natureza e a sociedade), mas em sua dialética negativa. Isto é, soma-se arte e fruição para converter a tecnologia em instância ou locus de libertação do tempo de trabalho, do labor e base para uma autentica vida boa (em seu lugar trata-se de perseguir as classes perigosas como uma enorme imposição mediante o aparelhamento das polícias com armamentos cada vez mais caros).
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