Roberto Leher – O governo Bolsonaro, em conformidade com recentes atos pelo fim da quarentena (e, também, pelo fechamento do Congresso e do STF e em prol de um novo AI-5)[1] liderados por milícias e forças afins, e empresários de diferentes naipes, pretende dar mais um grande passo para alcançar esse objetivo, determinando a retomada das aulas da educação básica.
Em confronto com a decisão do STF que reconhece competência concorrente de estados, Distrito Federal e União no combate à Covid-19, resguardando, contudo, a autonomia dos estados, DF e municípios[2], o presidente e seu ministro da Educação, desde o início de abril, recrudesceram as investidas em favor da volta às aulas por meio de pronunciamentos diversos.
Tal posicionamento contraria abertamente a OMS[3] e a UNESCO[4], está em confronto com a ciência mundial[5] e com a experiência de mais de 170 países, reunindo 1,6 bilhão de estudantes (91% da população mundial de estudantes). Contraria, também, o estado de calamidade pública nacional, governadores e prefeitos, assim com entidades que reúnem os secretários estaduais (CONSED) e municipais (UNDIME) de educação. Mesmo agências abertamente pró-capital, como o Banco Mundial[6], defendem a permanência da suspensão das aulas, conforme o quadro sanitário, a despeito de sua conhecida posição em prol de corporações que atuam na EaD.
O presente artigo argumenta que o presidente fala (e quer agir) como um fascista[7], ainda que o país não esteja inserido em um fascismo clássico. E, como tal, Bolsonaro, em suas balbuciantes falas, se atribui um poder supremo, acima de tudo e de todos, autodeclarando-se irmanado com deus.
Com base em teorias conspiratórias e nas piores expressões de certo senso comum, o presidente se arvora o poder de controlar a verdade, mesmo quando obviamente negada por fortes consensos científicos. Como será visto adiante, decreta que o vírus é benigno nas crianças e jovens e, por isso, os estudantes não irão propagá-lo em suas escolas, casas e em suas interações com as pessoas em seus bairros, meios de transporte etc.
Um outro traço do fascismo, o darwinismo social[8], igualmente é reivindicado, tanto na fala de Bolsonaro como na de Weintraub. Em caso de contradição entre as declarações feitas anteriormente, ou de provas irrefutáveis de que a fala presidencial é descabida, não há problema, pois o cinismo (pretensamente) resguarda a autoridade do chefe.
As consequências do fim da quarentena têm sido quantificadas pelos próprios bolsonaristas, variando de 5 a 7 mil para o rudimentar proprietário de uma rede de venda de hambúrguer, à 40 mil na perspectiva do ministro Weintraub; as do próprio Bolsonaro são difíceis de mensurar, mas, em virtude das condições de vida da maioria, a ordem de grandeza, conforme o estudo do Imperial College citado, poderia alcançar a escala de milhão.
O que é necessário fixar, politicamente, é que, na tradição fascista, a desumanização de grupos sociais é um sólido pressuposto. A desumanização pode compreender os “inimigos internos” (ativistas ambientais, militantes de movimentos sociais, feministas, LGBTQI , esquerda em geral), e grupos sociais que podem ser descartados, idosos, pobres, nordestinos, negros, indígenas, favelados.
Sua política é carregada de darwinismo social, por conseguinte, de banalização das mortes que poderiam ser evitadas. Trata-se de uma política em que a morte não é um efeito colateral da retomada de atividades econômicas nas quais se concentram grande parte de seus apoiadores. Antes, é uma política de morte direcionada aos ditos fracos (os tais inimigos internos) que podem sucumbir. Em entrevista (20/03/20), Bolsonaro sintetizou: “vão morrer alguns. Sim, vão morrer (…). Mas não podemos deixar esse clima todo que está aí. Prejudica a economia”[9].
Volta às aulas e a política de morte
No contexto da nomeação do novo ministro da Saúde, Bolsonaro apresentou seu bestialógico que espera ver aplicado por um ministro que, para se qualificar, vinha se esmerando em mostrar perfeita sintonia com o darwinismo social presidencial: em vídeo, criticou a compra de respiradouros em grande quantidade, pois, se adiante houver um tratamento, o gestor fez um enorme investimento desnecessário[10]. Mostrando coerência, afirmou, anteriormente, ser adepto de escolhas “racionais” sobre quem deve morrer em caso de escassez de recursos[11].
Imerso nessa necropolítica, em 24/03 o presidente argumentou: “O que se passa no mundo mostra que o grupo de risco e%u001 de pessoas acima de 60 anos. Então, por que fechar escolas?”, questionou o presidente. “Raros são os casos fatais, de pessoas sãs, com menos de 40 anos de idade”[12]. Em 16 de abril, retoma o mesmo argumento em defesa da pronta reabertura das escolas. “Bolsonaro alegou que as crianças podem voltar à sala de aula porque ‘não tem notícia de alguém abaixo de 10 anos de idade que foi a óbito’ por coronavírus. “Tem que enfrentar a chuva, pô. Tem que enfrentar o vírus. Não adiante se acovardar, ficar dentro de casa. Nós sabemos que a vida é uma só”[13]. Não importa o fato objetivo de que, segundo balanço do Ministério da Saúde, um quarto dos mortos está fora dos grupos de risco[14] e que já há registro de duas mortes de crianças abaixo de 1 ano de idade e uma morte na faixa etária entre 1 e 5 anos. Entre o fato e fala presidencial, evidentemente, os seus apoiadores, necessitando de um pai patrão, ecoam cinicamente a inverdade.
A proposição de Bolsonaro, embora não signifique reabertura imediata das escolas, pelo fato de que o STF o proibiu de se imiscuir na autonomia dos entes federativos, anuncia consequências catastróficas. Na esfera Federal o ministro da Educação, objetivando forçar a volta às aulas e a realização do ENEM, a despeito do agravamento da Covid-19 no país, afirma que as universidades federais “que estão dando aulas receberão mais recursos e serão premiadas”[15], em flagrante ilegalidade por afrontar os princípios que regem a administração pública, a segurança sanitária e o preceito da autonomia universitária.
As crianças podem ser portadoras do vírus e, por isso, transmiti-lo, em cadeia, a outras pessoas. E a probabilidade de isso ocorrer é altíssima, visto a vulnerabilidade econômica da grande massa de trabalhadores: são cerca de 70 milhões que estão pleiteando a ajuda emergencial aprovada pelo Congresso Nacional de R$ 600,00, justo as que vivem, majoritariamente, em péssimas condições de moradia. O déficit de moradias ultrapassa 7,7 milhões. Outros 3,2 milhões de habitações são divididas por famílias distintas que ocupam o mesmo teto, 950 mil habitações estão em estado de completa precariedade e outras 320 mil estão em situação de extremo adensamento. No Grande Rio, “a Casa Fluminense estimou em 300 mil o total de domicílios com mais de três pessoas por cômodo”.[16]
Embora no Brasil os estudos sobre o perfil racial e econômico ainda estejam em fase preliminar, nos EUA, por exemplo, estudo do departamento de saúde da cidade de Nova Iorque, mostra que residentes negros e hispânicos têm duas vezes mais chances de morrer da doença do que os moradores brancos da cidade. Em Chicago, os negros são cinco vezes mais propensos a morrer de Covid-19 do que brancos[17].
No Brasil, em virtude: das condições sanitárias, uma em cada quatro moradias sequer possui água encanada; da situação de aglomeração de residências em favelas e do grande compartilhamento de espaços residenciais; do precário sistema de transporte e, mais amplamente, da vulnerabilidade econômica, em decorrência da ausência de políticas distributivas de grande escala, é previsível uma catástrofe humanitária, caso a volta às aulas seja precipitada como quer o presidente da República.
Como é notório, o seu ministro da Educação é parte da claque que o aplaude: se não estivesse no ministério estaria em frente do palácio do Planalto. “Não tem porque deixar tanto tempo parado. Eu acho um absurdo”. (SIC!) (…) “Provavelmente vão morrer muito menos do que 40 mil brasileiros de coronavírus. Quarenta mil é o número de pessoas que morrem, todos os anos, em acidente de trânsito no Brasil, sendo que as pessoas que pegam coronavírus são mais idosas e, em termos de acidente de carro, a média é próxima aos 30 anos”, declarou em 16/04[18]. Mais claro em sua filiação ao darwinismo social, impossível.
Exame Nacional do Ensino Médio
Weintraub concorda e ajuda o presidente em seu intento de retomar as aulas, utilizando, como se privado fosse, o Exame Nacional de Ensino Médio como instrumento dessa política de morte.
Com o agravamento da pandemia no Brasil, os secretários de educação, sindicatos, movimentos estudantis, organizações educacionais vinculadas ao capital, setores do Ministério Público, todos exortam o peculiar ministro a suspender o ENEM. Entretanto, Weintraub tem sido inflexível em sua cruzada, sustentando que os que realmente importam não serão prejudicados. A Justiça Federal de São Paulo, afinal, determinou a suspensão do exame em meados de abril[19], mas o renitente ministro, ungido pelo autoritarismo presidencial, ignorou a decisão, e voltou a sustentar que o exame acontecerá. São milhões de estudantes com suas vidas em suspenso, sendo que, os mais pauperizados, estão sendo abertamente colocados fora do processo.
O chefe da pasta refutou o argumento de que manter o calendário do exame é injusto com os estudantes que não têm acesso à internet em casa. “Nunca foi 100% justo. O objetivo do Enem é selecionar as pessoas mais qualificadas e mais inteligentes”.[20] Novamente, reitera a adesão ao darwinismo social: que sucumbam os “perdedores” menos aptos.
O arco de manifestações contra a manutenção do ENEM confirma um consenso crescente sobre a necessidade de impedir que a agenda governamental continue a ser implementada. Compreende desde a Defensoria Pública da União e a Defensoria de Direitos Humanos do Ministério Público Federal, os sindicatos de trabalhadores da educação, organizações empresariais, até editoriais de grandes jornais, como a Folha de São Paulo. Mas o conflito exige mais do que manifestações.
Retomada às aulas somente com segurança para a vida
As mesmas instituições que preconizam a suspensão das aulas na educação básica e superior reafirmam que o retorno é uma decisão que tem de ser referenciada na ciência para defender a vida. A combinação de testagem em massa, fármacos, imunização e práticas da epidemiologia definirá a forma de desativação processual da contenção. Em virtude da ausência de legitimidade do governo Federal, é necessário um comitê gestor para planejar, supervisionar e controlar a reabertura dos setores, contando com a representação das entidades científicas pertinentes, universidades, Fiocruz, Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, centrais sindicais e sindicatos de trabalhadores da educação, secretarias estaduais e municipais de saúde e de educação, congresso nacional, Procuradoria dos Direitos do Cidadão, dos povos indígenas e dos trabalhadores do campo.
O Brasil, em virtude das políticas em curso, caminha no escuro, por falta de testes e de um rigoroso sistema de monitoramento das mortes. Ainda assim, dolorosamente é seguro afirmar que ainda não está passando pelo pior momento.
Contra a política de morte, democracia econômica e política
É preciso considerar o significado da política de morte subjacente a tais ações governamentais. Ao defender a ruptura com a Constituição e todos preceitos relativos à saúde pública, Bolsonaro ultrapassa todos os limites e as instituições da República devem agir: o STF, o Congresso e Ministério Público. O que mais precisa ser feito para que estas instituições apurem e apliquem as sanções cabíveis? A democracia é incompatível com políticas de morte. E, por isso, novas eleições livres e democráticas devem ser rapidamente convocadas.
O confronto é aberto. Trata-se de um governo que subordina a vida (especialmente a dos mais vulneráveis em decorrência da desigualdade social) aos seus interesses antidemocráticos e totalitários. O conflito exige forte unidade das entidades e movimentos que defendem a educação pública, os direitos humanos e a democracia contra a permanência desse governo. Como a história da experiência do fascismo nos mostra, em algum momento o conjunto dos setores democráticos e em favor dos direitos humanos não é capaz de interromper a escalada da morte, pior, sequer de se organizar para impedir a eclosão do ovo da serpente. Existem fortes indícios de que a democracia no Brasil está diante desse dilema, por isso, a frente democrática e em prol dos direitos sociais tem de ganhar organicidade e capacidade de intervenção nos acontecimentos.
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Reabertura-das-escolas-defendida-pelo-presidente-e-seu-ministro-da-educacao-e-politica-de-morte/4/47256
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