Política

Crise capitalista?

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Wladimir Pomar – A crise de dis­se­mi­nação do co­ro­na­virus, ou Covid 19, pa­rece estar se trans­for­mando, em vá­rios países, de crise bi­o­ló­gica em crise também econô­mica, so­cial e po­lí­tica. Ela está de­sar­ti­cu­lando o sis­tema de tra­balho e pro­dução, assim como de cir­cu­lação e dis­tri­buição de mer­ca­do­rias e rendas. E agra­vando, de forma ainda mais per­versa, a si­tu­ação das ex­tensas ca­madas po­pu­la­ci­o­nais que so­bre­vivem sem con­di­ções de tra­balho, às vezes sendo ca­rac­te­ri­zadas como um “exér­cito in­dus­trial de re­serva”, que na prá­tica é cada vez mais, e cres­cen­te­mente, um exér­cito per­ma­nente sem-sem, de ne­nhuma pers­pec­tiva de me­lho­rias.

Ou seja, no caso do Brasil, o Covid 19 des­nuda e agrava, com in­tensa ra­pidez, uma si­tu­ação que o ne­o­li­be­ra­lismo iria pi­orar a médio prazo, com suas po­lí­ticas de pri­va­ti­zação e de trans­for­mação do Es­tado num or­ga­nismo de ser­ventia ex­clu­siva da bur­guesia en­di­nhei­rada. A crise bi­o­ló­gica co­loca o Es­tado bra­si­leiro sob ho­lo­fote, en­ten­dido so­ci­al­mente como um ins­tru­mento que, numa si­tu­ação emer­gen­cial como essa, deve servir a toda a so­ci­e­dade, em es­pe­cial aos des­va­lidos e aos mais po­bres. E isso de­ses­tru­tura toda a po­lí­tica econô­mica, so­cial e po­lí­tica pro­je­tada pelo bol­so­na­rismo e seu Posto Ipi­ranga.

Nessas con­di­ções, não é por acaso que, a exemplo de Trump, Boris Johnson e al­guns ou­tros ne­o­li­be­rais de co­turno in­ter­na­ci­onal, os agentes go­ver­na­men­tais bra­si­leiros de di­fe­rentes pastas e es­ca­lões, tendo à frente o Posto Ipi­ranga e seu pre­si­dente, do­mi­nados pelas ideias ne­o­li­be­rais de su­pre­macia eficaz da pro­pri­e­dade pri­vada e do su­posto papel se­cun­dário, ine­fi­ci­ente e per­du­lário do Es­tado, te­nham en­trado em pa­ra­fuso e ado­tado po­si­ci­o­na­mentos que se chocam não só com se­tores ci­en­tí­ficos de todo o mundo e do Brasil, mas prin­ci­pal­mente com as de­mandas ci­en­tí­ficas, so­ciais e também econô­micas da crise.

Eles ainda se negam a res­sus­citar o papel de­ci­sivo do Es­tado como or­ga­nismo capaz de or­ga­nizar o sal­va­mento dos in­fec­tados, evitar a dis­se­mi­nação da do­ença com me­didas de iso­la­mento e, mais do que tudo, in­jetar re­cursos pú­blicos para ga­rantir a so­bre­vi­vência bi­o­ló­gica e econô­mico-fi­nan­ceira das di­fe­rentes ca­te­go­rias de tra­ba­lha­dores e des­va­lidos. O trá­gico re­sul­tado dessa in­sen­satez tem sido o enorme custo de vidas e, também, de re­cursos fi­nan­ceiros, nos países e re­giões onde a re­cu­pe­ração do papel de­ci­sivo do Es­tado só ocorreu após o nú­mero de in­fec­tados e mortos ter se tor­nado ca­la­mi­dade, com des­taque para a Itália, Es­panha e Es­tados Unidos.

Além disso, a de­mora na mo­bi­li­zação do Es­tado para en­frentar a crise da pan­demia bi­o­ló­gica con­tri­buiu não para evitar a crise econô­mica e so­cial, mas para agravar todas ainda mais, in­cluindo a pa­ra­li­sação e/ou se­mi­pa­ra­li­sação das ati­vi­dades pro­du­tivas, dos pro­cessos de oferta e de­manda, de sus­ten­tação e dis­tri­buição da renda e da pró­pria so­bre­vi­vência hu­mana. As pre­vi­sões de mortes em al­guns países re­pre­sentam ver­da­deiras ca­tás­trofes hu­manas.

Por outro lado, a ex­pe­ri­ência da China e de al­guns ou­tros países está mos­trando que é pos­sível su­perar os de­sar­ranjos econô­micos e so­ciais da crise pan­dê­mica através de me­didas es­ta­tais. Elas devem, por um lado, sus­tentar a renda da po­pu­lação, em es­pe­cial dos que só pos­suem como pro­pri­e­dade a pró­pria força de tra­balho e, por outro, re­ar­ti­cular pro­gres­si­va­mente as ca­deias pro­du­tivas e a vida econô­mica, de modo a evitar pos­sí­veis fugas de ca­pi­tais. Fugas que, no caso do Brasil, sig­ni­ficam in­ten­si­ficar o já da­noso pro­cesso de de­sin­dus­tri­a­li­zação.

É pos­sível que al­guns países ca­pi­ta­listas, cujos go­ver­nantes se man­te­nham fiéis ao ne­o­li­be­ra­lismo, se vejam en­vol­vidos em pro­cessos de de­sar­ranjos econô­micos ainda mais sis­tê­micos, tendo em conta a maior ou menor de­pen­dência, seja de mer­cados in­ter­na­ci­o­nais para a sua pro­dução (a exemplo do setor de agro­ne­gócio do Brasil), seja da de­pen­dência de sua es­tru­tura econô­mica e seu mer­cado in­terno ao for­ne­ci­mento ex­terno. O que, em con­junto, pode e deve de­sen­ca­dear pres­sões po­lí­ticas por mu­danças di­fe­rentes das ne­o­li­be­rais, a exemplo dos pro­je­tados pro­cessos de pri­va­ti­zação de em­presas es­ta­tais.

Na ver­dade, a ex­pe­ri­ência do com­bate aos efeitos per­versos da crise do Covid-19, no mundo e no Brasil, mostra que a pre­sença de em­presas es­ta­tais fortes re­pre­senta um fator de se­gu­rança para o Es­tado de­sem­pe­nhar o papel de­ci­sivo e evitar que o ataque bi­o­ló­gico seja não só uma ca­la­mi­dade viral, mas também uma ca­la­mi­dade econô­mica e so­cial. Por outro lado, há quem acre­dite que o ca­pi­ta­lismo não mais será igual ao que teria sido co­nhe­cido desde o final da Se­gunda Guerra Mun­dial. Ele pa­re­ceria des­ti­nado a ter que re­tomar as me­didas de Ro­o­se­velt du­rante a crise norte-ame­ri­cana dos anos 1930, de­mons­trando que essas pes­soas pa­recem ig­norar que o ca­pi­ta­lismo, desde então, so­freu im­por­tantes mo­di­fi­ca­ções his­tó­ricas e não é mais o que era na­queles anos.

Desde 1950-1960, o ca­pi­ta­lismo dos países de­sen­vol­vidos co­meçou a aban­donar a po­lí­tica de im­pedir in­ves­ti­mentos de suas em­presas em países atra­sados. Vá­rias delas deram os pri­meiros passos para in­vestir e ex­trair mais-valia da força de tra­balho mais ba­rata dos países in­dus­tri­al­mente atra­sados e, com isso, manter ele­vadas suas taxas de lu­cros, ame­a­çadas de queda pelo au­mento de sua pro­du­ti­vi­dade nas na­ções sede. Na­quela oca­sião, o Brasil foi um dos países es­co­lhidos para re­ceber tais in­ves­ti­mentos, que re­sul­taram em seu pri­meiro grande salto in­dus­tri­a­li­zante.

Desde então, dos anos se­guintes, os in­ves­ti­mentos ca­pi­ta­listas em países com mão de obra mais ba­rata se ex­pan­diram de tal modo que con­so­li­daram o ca­pi­ta­lismo como um sis­tema glo­ba­li­zado, ao mesmo tempo em que suas crises fi­nan­ceiras, como as dos anos 1980, 1998 e 2008 foram uma forte de­mons­tração de que seu sis­tema de ge­ração e cen­tra­li­zação de lu­cros, além de não con­se­guir evitar suas crises de de­sen­vol­vi­mento, as torna cada vez mais des­tru­tivas.

Por­tanto, supor que a crise do Covid-19 fará o ca­pi­ta­lismo voltar aos re­cursos dos anos 1930, re­ju­ve­nes­cendo-se para re­tomar seu ca­minho de de­sen­vol­vi­mento, é o mesmo que acre­ditar em sua eter­ni­dade. O ca­pi­ta­lismo tende a con­ti­nuar se de­sen­vol­vendo ci­en­tí­fica e tec­no­lo­gi­ca­mente nos países cen­trais, em­pur­rando a maior parte dos que são apenas pro­pri­e­tá­rios de força de tra­balho para o de­sem­prego tec­no­ló­gico e para a im­pos­si­bi­li­dade de con­ti­nuar sendo com­pra­dores das mer­ca­do­rias pro­du­zidas pelo sis­tema. Essa já é a re­a­li­dade cres­cente dos Es­tados Unidos e de al­guns países da Eu­ropa.

Ou seja, ao mesmo tempo em que cria as con­di­ções ci­en­ti­ficas e tec­no­ló­gicas de atender a todas as de­mandas so­ciais com a ele­vação cres­cente de sua pro­du­ti­vi­dade, o ca­pi­ta­lismo não só gera novas e mais des­tru­tivas crises fi­nan­ceiras e econô­micas como impõe a ca­madas cres­centes de suas so­ci­e­dades a im­pos­si­bi­li­dade de vender sua força de tra­balho e obter re­cursos para ter acesso às mer­ca­do­rias pro­du­zidas pelo sis­tema e ne­ces­sá­rias à con­ti­nui­dade de sua vida. A crise do Covid-19 apenas co­loca mais evi­dente tal con­tra­dição, mas talvez não seja a crise que le­vará os tra­ba­lha­dores a re­sol­verem sua con­tra­dição prin­cipal com o ca­pi­ta­lismo.

O que pre­cisa ser re­sol­vido no mo­mento con­siste em fazer com que o Es­tado pro­vi­dencie, além dos so­corros mé­dicos in­dis­pen­sá­veis aos ata­cados pelo co­ro­na­vírus, o for­ne­ci­mento de re­cursos fi­nan­ceiros aos que se tor­naram im­pe­didos de con­ti­nuar tra­ba­lhando porque isso po­deria re­pre­sentar uma ameaça à sua vida e à vida dos de­mais. Por outro lado, essa crise também pode levar muitas ca­madas tra­ba­lha­doras a des­co­brirem que o ca­pi­ta­lismo, in­de­pen­den­te­mente de crises bi­o­ló­gicas, tende a con­ti­nuar avan­çando nas con­quistas téc­nicas. E que estas, te­o­ri­ca­mente ca­pazes de pro­mover o aten­di­mento de todas as ne­ces­si­dades so­ciais, na prá­tica não o fazem. Numa con­tra­dição brutal, também pro­duzem cada vez mais de­sem­pre­gados e, por­tanto, in­ca­pazes de ad­quirir os bens abun­dan­te­mente pro­du­zidos.

Ou seja, o ca­pi­ta­lismo está cada vez mais di­fe­rente do que era nos anos 1930 e 1940, quando pre­ci­sava com­prar muita força de tra­balho as­sa­la­riada para operar seu ca­pital cons­tante (má­quinas e equi­pa­mentos) e pro­duzir mer­ca­do­rias que, em geral, vendia para as di­versas ca­te­go­rias de tra­ba­lha­dores. O ca­pi­ta­lismo avan­çado de agora pre­cisa com­prar cada vez menos força de tra­balho as­sa­la­riado e, con­tra­di­to­ri­a­mente, tem uma ca­pa­ci­dade de pro­duzir muito mais mer­ca­do­rias.

Suas má­quinas tra­ba­lham cada vez mais sob o co­mando de má­quinas-robôs, que não com­pram as mer­ca­do­rias pro­du­zidas, en­quanto a força de tra­balho não em­pre­gada cresce e vê sua ca­pa­ci­dade de compra ser bru­tal­mente re­du­zida, cri­ando uma con­tra­dição in­so­lúvel para a so­bre­vi­vência do pró­prio ca­pi­ta­lismo. Isso porque, para so­lu­ci­onar tal con­tra­dição, em es­pe­cial nos países tec­no­lo­gi­ca­mente de­sen­vol­vidos, a pro­pri­e­dade pri­vada ca­pi­ta­lista terá que ser trans­for­mada em pro­pri­e­dade do con­junto da po­pu­lação.

Não é por acaso, assim, que até no ba­lu­arte ca­pi­ta­lista dos Es­tados Unidos tenha sur­gido uma cor­rente po­lí­tica so­ci­a­lista. E que, em al­guns países, até há pouco tec­no­lo­gi­ca­mente atra­sados, te­nham sur­gido ex­pe­ri­ên­cias de tran­sição em que con­vivem e dis­putam mis­turas de em­presas es­ta­tais e em­presas pri­vadas que tendem a criar as con­di­ções tec­no­ló­gicas para om­brear-se com os países ca­pi­ta­listas avan­çados e, mais cedo ou mais tarde, su­perar a exis­tência das em­presas ca­pi­ta­listas e do mer­cado.

A crise bi­o­ló­gica atual, es­pa­lhada por todo mundo, talvez pro­duza essa re­flexão em mi­lhões de tra­ba­lha­dores, já que o ne­o­li­be­ra­lismo e muitas das de­mais cor­rentes de pen­sa­mento ca­pi­ta­lista estão se mos­trando in­ca­pazes de pro­por­ci­onar po­lí­ticas que, pelo menos, pro­tejam a vida hu­mana com se­gu­rança na even­tu­a­li­dade de pan­de­mias que, de vez em quando, surgem na his­tória para testar a ca­pa­ci­dade de so­bre­vi­vência e evo­lução dos seres hu­manos.

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