Beatriz Gomes Cornachin – Mesmo que existam diferenças entre progressos e retrocessos, faz alguns anos que os relatórios apontam algo entre setecentos milhões e um bilhão de famintos no mundo. Contudo, além dos números que se modificam anualmente, as causas da fome também se modificam a cada novo relatório. Se em 2017 o principal ator responsável pelo cenário de crescimento da fome eram os conflitos, em 2018 eram as mudanças climáticas. Já em 2019, a FAO aponta como causa as desacelerações ou contrações econômicas. Por isso, inclusive, o relatório tem como subtítulo “Salvaguarda contra desacelerações e contrações econômicas.”
Dentre as informações que recebemos ano após ano, os números atualizados de desnutridos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) encontram-se em uma gama de coisas que parecem nunca mudar: a existência da fome.
Mesmo que existam diferenças entre progressos e retrocessos, faz alguns anos que os relatórios apontam algo entre setecentos milhões e um bilhão de famintos no mundo. Contudo, além dos números que se modificam anualmente, as causas da fome também se modificam a cada novo relatório. Se em 2017 o principal ator responsável pelo cenário de crescimento da fome eram os conflitos, em 2018 eram as mudanças climáticas. Já em 2019, a FAO aponta como causa as desacelerações ou contrações econômicas. Por isso, inclusive, o relatório tem como subtítulo “Salvaguarda contra desacelerações e contrações econômicas.”
Nesse sentido, o documento aponta os perigos das economias que são dependentes do mercado de commodities primárias, seja para exportar ou para importar. Apesar de ser um avanço na abordagem da alimentação, os processos econômicos e históricos que levaram os países a tornarem-se dependentes da importação ou exportação de commodities não é abordado no documento de forma contundente. Mas, ainda assim, é finalizado com algumas recomendações aos países que apresentam cenários de fome: desenvolver políticas anticíclicas e investir sabiamente durante o crescimento econômico.
Além disso, para a compreensão da fome é fundamental não reduzir ou naturalizar tal problemática à efeitos climáticos catastróficos ou quaisquer determinismos geográficos. “Porém, o determinismo geográfico deve estar cada vez mais distante dessa análise, sendo prejudicial a atribuição à tal problemática única e exclusivamente pois inviabiliza ou dificulta a percepção multidimensional.”1
Desnutrição
De acordo o documento “O Estado da Segurança e Nutrição Alimentar no mundo: 2019”, estima-se que o número de pessoas desnutridas no mundo seja de 820 milhões, isto é, uma a cada nove pessoas no mundo sofre de desnutrição. Além disso, ao menos 2 bilhões de pessoas experimentam algum tipo de insegurança alimentar.
Para conseguir os dados, a FAO utiliza o indicador Prevalence of undernourishment (Prevalência de desnutrição, em inglês). Tal indicador compara à grosso modo as quantidades de calorias que um país dispõe, a partir de grãos e outros gêneros alimentícios, com o perfil etário da população. No caso da população infantil, a porcentagem de crianças de até cinco anos abaixo do peso também se configura como indicativo para determinar a prevalência de desnutrição.
Desde 2017, a FAO também utiliza outro indicador chamado Food Insecurity Experience Scale (Escala de Experiência de Insegurança Alimentar – FIES), que verifica a partir de uma metodologia mais detalhada o tipo de insegurança alimentar que determinado grupo apresenta.
A partir dessa escala, o número de 2 bilhões de pessoas foi apresentado no relatório, sendo que 700 milhões de pessoas estão em insegurança alimentar severa. Isso significa que ficam sem comida ao ponto de ficarem dias sem se alimentar. As outras 1,3 bilhões de pessoas passam por insegurança alimentar moderada, o que significa que há incertezas quanto à obtenção de comida e são forçadas a comprometer a qualidade, quantidade ou ambos em seu consumo diário.
O direito humano à alimentação é (ou deveria ser) assegurado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, ratificada em 1948:
“Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes de sua vontade”. (Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948).
Contudo, sabe-se que a questão alimentar nunca foi resolvida a ponto de conseguirmos declarar como humanidade que estamos livres da fome. Claro que houve períodos de declínio de tal flagelo, mas, desde 2015, após um desses períodos de progressos na mitigação da desnutrição, os números vêm crescendo ano após ano.
Ainda segundo o relatório de 2019 da FAO, a incidência geográfica da fome em 2018 foi maior no continente africano (19,9%), seguido pela Ásia (11,3%), América Latina e Caribe (6,5%) e Oceania (6,2%). Contudo, apesar da Europa e América do Norte não apresentarem números expressivos, não significa que estejam livres da problemática alimentar manifestada por meio da obesidade. A partir da evolução do conceito de alimentação e nutrição adequadas, fica perceptível que alimentos com elevados índices calóricos podem ser mais acessíveis financeiramente, contudo, não contém nutrientes e vitaminas necessários e fundamentais, podendo desencadear carências também.1
Vale mencionar que além dos indicadores elaborados pela FAO, também existe o Integrated Food Securtity Phase Classification (IPC), que utiliza indicadores de diversas plataformas para formular dados detalhados, sejam nacionais ou regionais. Além disso, o IPC exibe alertas de avanço nas fases de insegurança alimentar.
Abordagens
É evidente que informações não faltam para abordar a questão alimentar. A utilização de certo darwinismo social, utilizando a desnutrição como mecanismo de “seleção dos mais adaptáveis” foi realidade para justificar os cenários de pessoas famintas. O malthusianismo colocava a fome (assim como epidemias, catástrofes e guerras) como um mecanismo de equilíbrio do planeta.
Simbolizando o despertar ocidental acerca da fome, nas palavras de Jean Ziegler2, Josué de Castro desnudou uma infinidade de tabus sobre a questão alimentar, trazendo à luz, inclusive a fome oculta.
Mesmo sendo berço de Josué, é possível afirmar que o Brasil se encontra livre dos vícios malthusianos? Sim ou não, a realidade é que a partir de 2000 temos objetivos elaborados e adotados pelos países membros da Organização das Nações Unidas (ONU), nos quais a erradicação da fome consta. Inicialmente, dentro dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) como primeiro objetivo juntamente com a necessidade de erradicar a extrema pobreza. E, desde 2015, dentro dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), como segundo objetivo.
Investimento em política alimentar
Nosso país, desde Josué de Castro, Betinho, Zilda Armns, Fome Zero e Bolsa Família, pode oferecer alguns exemplos para a comunidade internacional no combate à fome. Conseguimos não apenas reduzir pela metade o número de desnutridos do país – uma das metas do primeiro objetivo dos ODM –, assim como conseguimos chegar à menos de 2,5%, possibilitando, portanto, o feito da saída do mapa mundial da fome, elaborado pela FAO.
Claramente, não objetivo com isso empobrecer o debate necessário e fundamental sobre a questão alimentar no país ou afirmar que “ninguém passa fome no Brasil”. A problemática ainda precisa evidenciar muitos fatores, tal qual a produção e acesso dos alimentos. Contudo, é evidente como tais progressos, alcançados principalmente após a virada do século, significaram investimento em política alimentar.
Infelizmente, nos últimos anos, estamos presenciando descasos em diferentes níveis governamentais quanto ao tratamento de uma algo fundamental, que é a segurança alimentar e nutricional. Esses descasos são manifestados de diferentes formas, tanto em discursos quanto no esfacelamento de políticas públicas da área.
Desde a polêmica da “farinata” em 2017, proposta do então prefeito e hoje governador do estado de São Paulo, João Dória (PSDB) até a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), a política alimentar tem sido ameaçada. Durante o ano de 2019 inúmeras escolas tiveram problemas com o fornecimento da alimentação escolar durante o período letivo.
No caso da “farinata”, após forte repercussão e pressão de entidades da sociedade civil, o atual governador desistiu de adotar o alimento granulado à base de restos de arroz, batatas e tomates próximos do vencimento para distribuir como merenda nas escolas e deu indícios de retomar a compra de alimentos orgânicos.
Dentre as diversas problemáticas que se colocam sobre a questão da “ração humana”, uma delas estava no fato de não haver segurança quanto à qualidade dos alimentos processados e também nos poucos indícios acerca da efetividade do valor nutritivo dessa composição.
Consea
O conselho foi constituído em 2003 e era fundamental para a aplicação da Política Nacional de Segurança alimentar e Nutricional, a partir da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional.
Nas palavras de Lívia Guimarães e Sidney da Silva “a atuação do Consea nesse espaço de concertação entre os formuladores e sociedade civil foi fundamental para assegurar que a alimentação lograsse o patamar de direito social. Estas e outras conquistas se conectam intimamente aos compromissos assumidos em 2003, pelo governo federal, com relação ao combate à fome e à miséria e a promoção da SAN enquanto política de Estado”
O atual governo desestruturou a Lei Orgânica mencionada acima e diferentes atores da sociedade civil se organizaram para mobilizar a população e evitar maiores retrocessos, assim como evidenciar a importância do Consea. Tal mobilização resultou na pressão para o retorno do texto da Lei anterior às modificações, o que foi admitido no Congresso.
Contudo, como consta em site do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, o item que restabelecia o Consea foi vetado pelo atual Presidente da República. A partir disso, toda a organização prevista para a formulação do 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional precisou ser revista, atrasando a agenda alimentar no país. “Na ausência do Consea foi interrompido o processo de organização e comprometidas as condições de realização da 6ª Conferência Nacional, que já havia sido convocada pelo conselho, com previsão de realização em novembro de 2019. A definição de prioridades para o 3º Plano Nacional de SAN (2020-2024) estava entre seus objetivos. As decisões arbitrárias do atual governo não deixam dúvidas quanto a intenção de brutal desmantelamento da política e do sistema nacional de SAN”, de acordo com o Fórum.
Ninguém passa fome no Brasil?
Além das ameaças à política de segurança alimentar e nutricional, assim como a possibilidade de substituir merendas por “rações humanas”, o discurso de que “ninguém passa fome no Brasil” evidencia total desconhecimento da evolução do campo alimentar no país, tanto academicamente quanto politicamente. Para os que presidem o país de origem de Josué de Castro, é necessário dizer de qual fome se trata. Caso contrário, a fome oculta que se faz visível é a mesma que se apresentou no período ditatorial e exilou Josué, resultando em sua morte no exílio: fome de matar de fome.
Além disso, se esse quadro prosseguir, diferente do que ocorreu enquanto vigência dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, período no qual o Brasil, além de atingir as metas, colaborou para resultados significativos na região da América Latina e Caribe, o que pode ocorrer é o inverso durante a vigência dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Claro que devemos questionar e apontar as intenções e contradições dentro do sistema ONU que está sujeito à própria lógica internacional do sistema capitalista, como as ajudas alimentares internacionais e o próprio debate acerca da segurança x soberania alimentar. O que não significa ignorá-las, pois é à sombra do menosprezo que os impactos ocorrem.
Portanto, democratizar o acesso ao alimento é também democratizar o acesso ao conhecimento sobre a questão alimentar. Nesse sentido, não seria mais oportuno, dizer que a Conferência Nacional, Popular, Autônoma: Por Direitos, Democracia e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional está marcada para ocorrer durante o primeiro semestre de 2020 e vem como uma resposta de resistência frente ao que tem ocorrido nos últimos anos.
Para que a fome não tenha uma saúde de ferro, como na música da banda Nação Zumbi, faz-se necessário resgatar o Brasil de combate à fome e não esse que vem se apresentando: o de naturalização da mesma.
Referências:
1 – CORNACHIN. Beatriz. Fome e neoliberalismo no Haiti: impacto da liberalização do comércio de arroz sobre a soberania alimentar do país a partir dos anos 1980. São Bernardo do Campo: Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do ABC, 2019. (Dissertação de Mestrado).
2 – Jean Ziegler
https://diplomatique.org.br/um-resgate-necessario-o-brasil-de-combate-a-fome/
Muito bom mesmo, ciência de verdade!!!