Luiz Eça – A China e a Rússia são os grandes adversários dos EUA, mas de quem Donald Trump tem mais raiva é do Irã. Imagine que esses atrevidos aiatolás têm a ousadia de desafiar a hegemonia norte-americana no Oriente Médio e ainda ameaçar os fraternais amigos de Israel!
Muito em função da “desabusada intervenção” do Irã, o governo Assad já ganhou a Guerra da Síria, derrotando os rebeldes, armados e treinados por um consórcio EUA-Arábia Saudita-Catar; as digitais iranianas estão na resistência dos houthis, na guerra do Iêmen, contra os constantes e arrasadores bombardeios sauditas, que usam bombas made in USA; com apoio do Irã, o Hizbollah dá trabalho a Israel e se tornou o partido mais votado nas últimas eleições do Líbano; as milícias xiitas iraquianas foram fundamentais na derrota do Estado Isâmico (EI); por fim, Teerã disputava com Washington a posição de aliado preferencial do governo de Bagdá.
Em suma, um comportamento totalmente impróprio para um mero país asiático de segunda classe.
A ponta de lança da inaceitável presença do Irã em outros países é a Quds Force, setor dos Guardas Revolucionários Islâmicos, dedicada à inteligência e operações não-convencionais, sob a chefia do general Qassem Suleimani.
Nele e no Irã o presidente norte-americano aplicou o princípio famoso de Joseph Goebbels, o ministro de propaganda do nazismo: “se você contar uma grande mentira e a repetir sem cessar, as pessoas acabarão por acreditar nela”.
Goebbels ensina
Trump mandou bala, com toda a fúria do seu gargantuesco orgulho. A acusação falsa de que o Irã seria o maior promotor do terrorismo do mundo foi divulgada pelo presidente muitas e muitas vezes repetida e multiplicada por seus numerosos seguidores na TV, rádio, jornais, revistas, comícios, reuniões cívicas etc.
Enquanto isso, para dar um ar de veracidade, a Casa Branca, em abril de 2019, colocou a Guarda Revolucionária, a Quds Force e seu comandante, o general Suleimani, na lista negra dos grupos terroristas.
A oportunidade para checar a eficiência do nada ético ensinamento de Goebbels surgiu por volta do ano novo.
No meio de um conflito com o Irã, The Donald resolveu cortar as barbas dos aiatolás, dar-lhes uma lição que os deixaria tão enfurecidos quanto aterrorizados.
E assim nada menos do que Suleimani, o mais prestigiado militar iraniano, foi assassinado por mísseis disparados por ordem do morador da Casa Branca.
Trump deu suas justificações: os EUA agiram em autodefesa, pois o general estaria em vias de lançar atentados contra embaixadas do país, atividade que lhe era costumeira, causando sempre danos materiais e matando numerosos our boys. Isso foi incansavelmente repetido por The Donald e multiplicado por seus parças, em todos os meios de comunicação, para fazer a cabeça dos norte-americanos.
Nos dias seguintes, quando questionada pela imprensa, intelectuais e congressistas do Partido Democrático, a armação começou a ruir.
De acordo com a Carta das Nações Unidas, subscrita pelos EUA, a alegada autodefesa só poderia ser invocada caso o ataque estivesse na iminência de ser lançado, o que não teria acontecido pois não havia provas de que o general estaria perto de explodir embaixadas de Tio Sam.
Parece que Trump não havia combinado com seus ecos, pois Esper, o Secretário de Defesa, o contradisse, informando que a Inteligência Nacional não lhe relatara qualquer estripulia terrorista programada para explodir logo.
Claro, se existisse, os rapazes da inteligência não teriam por que esconder do Secretário da Defesa, seu superior.
Sem perder a empáfia, o presidente republicano declarou: “isso não importa, devido a seu horrível passado”, o chefe do Quds merecia ser detonado, afinal, centenas de soldados e civis norte-americanos teriam sido mortos por ele (Al Jazeera, 14-01-2020).
Não foi preciso citar provas, estatísticas ou fontes, os norte-americanos em massa aceitaram esse argumento. Na propaganda, a repetição faz milagres. Especialmente quando é feita em toda parte, por anos a fio. No caso do Irã e suas extensões, a Quds Force e o general Suleimani, a eficácia do plano de comunicação trumpniano foi favorecida pela pouca simpatia dos estadunidenses médios por aqueles estranhos sujeitos, barbudos e fanáticos xiitas islâmicos, que não festejam nem o Natal, nem o Dia das Mães.
E deu certo, a maioria absoluta do povo acreditou na mensagem presidencial. Até mesmo Elizabeth Warren, uma das líderes da esquerda do Partido Democrata, caiu nessa jogada talvez inspirada no marketing nazista. Para ela, o general Suleimani era um sanguinolento assassino de pacíficos cidadãos ianques. Sem dúvida alguma.
Só considerava absurdo o momento escolhido por Trump para a correta execução de um superinimigo. Estando os ânimos entre EUA e Irã exaltados como nunca, os misseis que deram cabo do chefão da Quds poderiam também provocar uma retaliação de Teerã, primeiro passo numa guerra altamente danosa para a espécie humana, principalmente a que habita o Oriente Médio.
O outro lado também joga
Ora, chamar Qassem Suleimani de terrorista era uma flagrante mentira. Tratava-se de um general do exercito iraniano, que comandando o Quds, cumpria a missão de fazer algo semelhante ao que os EUA fazem no Oriente Médio: organizar, financiar, treinar, armar e liderar grupos aliados ao seu país nos conflitos regionais.
Como se sabe, os interesses dos dois países são opostos, por isso Quds e EUA não podem deixar de também serem opostos. No entanto, raramente ambos os lados se enfrentam diretamente.
Tem sido assim em quase todos os fronts principais da região: guerras da Síria e do Iêmen, ações político-militares no Líbano, Palestina e Gaza. Em nenhuma dessas regiões o general Suleimani poderia promover mortes de norte-americanos, civis ou militares, simplesmente porque tropas da Quds e dos EUA não se estranharam de modo direto por lá.
Na guerra contra o EI, forças estadunidenses e grupos patrocinados pelo Quds, além de tropas iraquianas, lutaram lado a lado, até a derrota final dos bárbaros extremistas.
A única vez em que EUA e Quds se confrontaram com ações armadas aconteceu na guerra do Iraque. Foi quando, em 2003, o exército dos EUA, por ordem do presidente Bush, invadiu e ocupou o Iraque até 2011.
O mundo inteiro, exceto alguns raros e ferrenhos extremistas, concorda que foi uma guerra injusta, baseada em argumentos falsos.
Durante os oito anos da ocupação, o povo iraquiano não ficou na janela vendo a banda passar. Muitos se levantaram em armas, lutaram para conseguir expulsar as tropas norte-americanas do território nacional.
O Quds, liderado pelo general Suleimani, participou ativamente dessa guerra de libertação.
Nas guerras, soldados matam e morrem, é inevitável. Certamente, muitos soldados dos EUA foram mortos pelo Quds no Iraque, durante a ocupação do país. Assim, seu líder, o general Suleimani, pode ser responsabilizado.
Mas não dá para criminalizar o general iraquiano, taxando-o de terrorista-mor, por sua eficiente participação numa guerra de libertação como foi a do Iraque.
Seria o mesmo que chamar de assassino o general Washington, comandante norte-americano na guerra de independência dos EUA, quando suas forças mataram centenas de soldados ingleses do exército da ocupação (se bem que, nos tempos modernos, a Casa Branca habituou-se a condenar nos outros países as mesmas ações que pratica como sendo justas).
Foi exatamente baseado neste fato que Mike Pompeo, o secretário de Estado, trouxe uma nova interpretação dos motivos do governo de Washington para assassinar o general Suleimani.
Logo após os países europeus terem aprovado, um tanto discretamente, o assassinato, dando destaque a um apelo aos EUA e Irã por moderação, Pompeo reclamou, ficara insatisfeito com o pronunciamento desses aliados.
Alguns dias depois, ele informou que a morte do general inseria-se no objetivo de “dissuasão realista” do governo Trump. As nações adversárias teriam de entender que os EUA não são apenas capazes de impor danos a elas, matando seus líderes, mas também estão “determinados a fazer isso”.
Portanto, ao matar o general, os EUA se colocara na “maior posição de força possível face ao Irã (Reuters, 13-01-2020)”.
O dono do mundo
Nem bem ele se calou, o Reino Unido, a Alemanha e a França ficaram a um passo de liquidar o acordo nuclear com o Irã, acusando este país de violar algumas das disposições acordadas pelo grupo do chamado P6+1.
Anteriormente, The Donald já solicitara que os três signatários europeus do acordo nuclear o repudiassem, por ter o governo de Teerã passado a enriquecer mais urânio do que se comprometera a fazer.
É possível que os dirigentes da Alemanha, França e Reino Unido tenham entendido a fala de Pompeo como um recado que os incluiria. E possivelmente trataram de acalmar os dirigentes da mais poderosa força militar do mundo.
Ou, é claro, tudo não passou de mera coincidência. O fato é que foi manifestado erga omnes* que os EUA estavam dispostos a atacar quem ousasse se opor a eles. É só seus chefes decidirem. Mesmo contrariando regras do direito internacional.
http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/14023-a-repeticao-transformou-a-mentira-em-verdade
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