Sociedade

O Coringa que habita em cada um de nós

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Armando Januário – Em um país dominado pelo ódio disseminado desde 2013 por meios de comunicação e onde a pobreza aumenta nos últimos anos, comportamentos agressivos comprovam que Joker é uma metáfora para nossos dias.

Em menos de uma semana, assisti Joker (Coringa) duas vezes. Nesse período, vivi situações que considero ligadas ao filme. Sinto necessidade de descrevê-las, e, a partir de uma análise, refletir sobre nossa sociedade.

Fui a uma pequena loja trocar a pilha do meu velho relógio de bolso, estilo século XIX, e perguntei por um dos funcionários, por quem tenho estima. Informado pelo colega dele acerca do seu estado de saúde – ele vem enfrentando o alcoolismo – mencionei como a psicologia é útil em ajudar pessoas com essa drogadição. Sem que eu percebesse, o funcionário adentrou o espaço da loja e me disse, visivelmente alcoolizado: “você é psicólogo p… nenhuma!” [sic]

Saindo da sessão na qual assisti a película pela segunda vez, andava pela calçada e vi um lindo filhote da raça pitbull e uma jovem, que andava de bicicleta, enquanto segurava o cão pela coleira. Apaixonado por animais, acariciei o filhotinho. A garota, aparentemente apressada, gratuitamente agressiva, gritou em minha direção: “retardado!” [sic]

Coringa mostra pessoas habitando em uma cidade onde tudo vai mal: infestações de ratos, cortes nos serviços sociais e de saúde, desemprego. Em um ambiente altamente estressante, qualquer gesto positivo de afeto é reprimido, levando Gotham City à barbárie. Arthur Fleck, um palhaço com graves transtornos mentais, se torna o símbolo maior dessa ruptura social. Ele passa a existir quando nega a existência dos outros, cometendo assassinatos. Entretanto, não são apenas crimes contra a vida humana. Ao matar, Fleck, na verdade, tenta extinguir as posições sociais e afetivas das suas vítimas: sua mãe, o suposto pai, a namorada presente em suas alucinações visuais, o ex-colega de trabalho que colaborou para a sua demissão… são essas posições que ele extingue, tentando, de fato, fazer sentido para si mesmo, a partir do silenciamento do significado dos outros, que, de alguma forma, compunham sua vida.

A breve análise sobre o comportamento do Coringa pode levar a reflexão que as situações vivenciadas por mim – minha profissão e afetividade foram negadas por pessoas que sequer me conhecem – estão sendo experienciadas por milhões de pessoas no mundo, especialmente em centros urbanos marcados por elevada desigualdade social: conforme Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Salvador, no segundo trimestre desse ano, foi a capital do desemprego.

Em um país dominado pelo ódio disseminado desde 2013 por meios de comunicação e onde a pobreza aumenta nos últimos anos, comportamentos agressivos, como aqueles dos quais fui alvo, comprovam que Joker é uma metáfora para nossos dias. E qualquer indivíduo insuspeito, pode ser o protagonista desse filme, verdadeiro alerta para nossos tempos!

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