Larissa Naves de Deus e Fábio Henrique Bittes Terra – O objetivo deste artigo é apresentar uma série de efeitos que a estruturação destes dois mercados (monetário e de dívida pública) causou para a economia brasileira. Leia análise no artigo do Observatório da Economia Contemporânea.
A gestão da política macroeconômica, especialmente das políticas monetária, fiscal, cambial e da dívida pública é crucial para entender a dinâmica econômica de um país. No Brasil, o debate acerca da administração dessas políticas nos últimos anos tem contornos especiais, principalmente por conta das recorrentes necessidades de financiamento do setor público e dos altos juros básicos vigentes no País até recentemente, por muito tempo um dos mais elevados do mundo.
Embora haja pontos de contato relevantes entre as políticas monetária e a gestão da dívida, por lidarem com mercados conectados – o monetário e de dívida pública -, respectivamente, ambas possuem dinâmica própria e são conduzidas por interesses específicos, quais sejam: a busca pelo controle da liquidez visando determinar a taxa básica de juros da economia e o financiamento do déficit público e a administração de dívida.
Entretanto, houve no Brasil uma fusão dos mercados monetário e de dívida pública com a criação do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC), em 1979, de modo que se passou a ter no País um único e grande mercado de dívida pública, chamado de mercado SELIC, no qual se marca a taxa básica de juros no Brasil, a taxa Selic. Nele utilizam-se os mesmos títulos públicos, emitidos pelo Tesouro Nacional (TN), para a realização tanto da política monetária quanto para a gestão da dívida pública. Dessa forma, no mercado SELIC instrumentalizam-se operações de mercado aberto, além de se transacionarem títulos para fins fiscais, já que todas as transações que envolvem títulos públicos se dão em seu âmbito. Serem todos os títulos emitidos pelo TN ajuda a consolidar a dívida pública, o que facilita a sua administração. Porém, serem os mercados monetário e de gestão de dívida pública bastante conectados, como é o caso brasileiro desde fins dos anos 1970, e regidos por uma lógica que, como se verá adiante, remanesceu do período de alta inflação, traz uma série de consequências para a economia brasileira.
Neste particular, o objetivo deste artigo é apresentar uma série de efeitos que a estruturação destes dois mercados (monetário e de dívida pública) enquanto um só causou, ainda hoje causa, para a economia brasileira. Embora este seja um problema reconhecido, ele é pouco debatido e tem passado ao largo das discussões econômicas nos últimos anos, mesmo em meio à crise fiscal pela qual passa o País. Neste sentido, entende-se cabível trazer este debate a mídias não acadêmicas, para que ele informe os leitores interessados fora das fileiras dos departamentos de economia.
O ponto central a se destacar é a institucionalidade do mercado SELIC, criada em fins dos anos 1970 e desenvolvida ao longo do período de alta inflação, nos anos 1980. A fusão dos mercados foi materializada quando títulos pós-fixados, que objetivavam servir para fins fiscais, eliminando-se o risco de perda de capital em médio/longo prazo em meio ao processo inflacionário, acabaram servindo igualmente ao exercício da política monetária nas operações de mercado aberto. O alastramento da lógica de os títulos para fins fiscais e monetários serem negociados e usados conjuntamente veio com a intensificação do uso da chamada zeragem automática. Em vigência desde 1976, antes do Selic portanto, na zeragem automática o Banco Central do Brasil (BCB) vendia e recomprava títulos sem deixar sobras em reservas bancárias, isto é, ele necessariamente equilibra o saldo bancário ao final do dia (daí o nome, zeragem automática).
Com a inflação crescente dos anos 1980 até o início da década de 1990, a zeragem automática assumiu um papel grandioso e relevante: garantir o controle dos juros básicos do BCB e, ao mesmo tempo, o financiamento do TN em meio à alta inflação. O processo, que durou até 1996, transcorria da seguinte forma: (i) o TN repassava à carteira do BCB títulos públicos necessários para financiar diariamente o déficit público, (ii) a compra e a recompra dos títulos entre bancos e BCB, sem deixar sobra de caixa entre o começo e o saldo do final do dia, permitiam o controle dos juros básicos em meio à alta inflação; (iii) estes títulos ofertavam aos agentes um ativo financeiro sem risco de capital e de juros, pois a remuneração nominal era pós-fixada e indexada à inflação com mais algum ganho real – a chamada indexação financeira; e, (iv) as transações via reservas bancárias geravam ganhos aos bancos, tanto na intermediação entre o BCB e os agentes, quanto na aplicação de suas reservas em títulos públicos. Tudo isso girava em um dia, ou seja, em overnight e, no fundo, representou uma institucionalidade que fez com que o Brasil convivesse com um ambiente de alta inflação por um longo período, diferente das experiências internacionais. Porém, o sucesso alcançado no período da alta inflação trouxe muitos custos que se estendem à atualidade.
De partida, um primeiro problema que se pode apontar desta institucionalidade de longa duração do mercado Selic e da forma de se operacionalizarem títulos, a um só tempo para fins fiscais e monetários é que a estrutura do sistema financeiro nacional (SFN) convencionou-se e habitou-se com o perfil da circulação de títulos no tempo da zeragem automática e da alta inflação: a demanda por ativos financeiros centra-se em compor carteira com investimentos de curto prazo, com liquidez elevada, que gere rentabilidade com baixo risco.
Por ser esta a cultura guiadora do investimento financeiro no Brasil , o BCB e o TN, atendem a essa demanda, seja pelo uso extensivo das operações compromissadas não apenas como um instrumento de política monetária, mas também como um ativo demandado por fundos de investimentos, seja pela oferta de títulos públicos para fins fiscais que praticamente não possuem risco e ainda oferecem rentabilidade real certa, pois contam com indexação financeira. Em termos de agosto de 2019, 40% da dívida pública são títulos pós-fixados, indexados financeiramente à Selic pois são pós-fixados ou híbridos (indexados à inflação acrescido de algum juro fixo) para se protegeram da inflação, como o caso das Letras Financeiras do Tesouro (LFTs).
Ressalta-se ainda, neste contexto, a possibilidade de os bancos, ao terem as operações compromissadas como um ativo, utilizarem-se delas ainda hoje como fundo de aplicação de recursos que captam do público ou como destino para as sobras de reservas. Em consequência, um dos problemas atuais da institucionalidade do SELIC é ele ajudar na vigência das altas taxas de juros cobradas do público pelos bancos e instituições financeiras no Brasil, uma vez que suas próprias reservas encontram meio fácil de serem remuneradas sem risco, com bom retorno e com alta liquidez. Mais especificamente, os cálculos risco versus rentabilidade dos bancos partem de ativos com risco baixo, liquidez com boa remuneração, quais sejam, os títulos públicos imediatamente acessíveis no SELIC. Em consequência, qualquer spread é marcado à ponta tomadora quando da concessão de crédito livre ao público partindo-se de um nível que qualquer outro agente na economia é incapaz de competir: o preço pago pelo BCB para ser ponta receptora de recursos quando ele faz controle da liquidez, a taxa Selic, que é, em última instância, o custo de captação de reservas dos bancos junto ao BCB.
Não obstante, a gestão das políticas monetária e de dívida pública carregam altos custos. Na política monetária, com a perda do efeito riqueza como canal de transmissão, por conta da pós-fixação dos títulos públicos componentes da dívida mobiliária (inclusive nos usados nas operações compromissadas), a taxa de juros básica do BCB precisa permanecer em patamares elevados para ter eficácia no controle inflacionário. Porém, como esta taxa é a mínima que remunerará outros ativos no País, inclusive do rendimento dos títulos públicos para fins fiscais, gera-se assim, uma contaminação da política monetária na gestão da dívida pública, cuja volatilidade da taxa Selic, quando ocorre, impregna-se nos juros dos títulos da política fiscal e, dada a elevada taxa básica historicamente praticada, tem-se um alto custo para o financiamento do governo. Como se não bastasse o alto e volátil custo do financiamento da dívida pública, cria-se um ciclo vicioso: cobram-se altos prêmios pela falta de credibilidade de um governo que emite dívida de curto prazo e, com a continuidade desse perfil de dívida, o custo dela aumenta.
Esta estrutura financeira coloca outro problema: as dificuldades em se estabelecer um mercado de capitais eficiente no País. Tendo como base a taxa Selic, que emana do mercado SELIC carregando os problemas acima discriminados, o custo do investimento produtivo no Brasil torna-se alto, em termos tanto de custo efetivo de financiamento, sobretudo pós-Taxa de Longo Prazo (TLP), quanto de custo de oportunidade. A existência de ativos indexados à Selic (e ao seu correlato privado, a taxa do interbancário) impõe um elevado custo de oportunidade para emissão de títulos privados prefixados. Daí uma das razões para seus mercados serem atrofiados. Isso contribui na explicação das baixas taxas de investimento na economia brasileira desde início dos anos 1990, coincidentes com altas taxas de juros praticadas, mesmo diante de inflação baixa.
Porém, há um problema ainda mais grave. Apesar de se reconhecerem todas as dificuldades impostas à economia brasileira pelo modo de funcionamento do SELIC, que baliza toda a estrutura financeira do País, entende-se ser difícil uma mudança de seu modus operandi no curto prazo. Funcionando há mais de quarenta anos, e com o que a sociedade brasileira já se acostumou (diz-se sociedade brasileira, pois, mesmo aplicadores em caderneta de poupança, por exemplo, detêm pós-fixação, rentabilidade de curto prazo e liquidez imediata), a institucionalidade do mercado SELIC é algo estrutural e, pela própria natureza de mercados de dívida pública, benchmark para os mercados de dívida privada, espraia-se por toda a estrutura do sistema financeiro nacional. Logo, qualquer alteração ou solução que venha a ser proposta deve levar em conta a reestruturação da forma pela qual o sistema financeiro funciona há anos no Brasil, o que envolve os comportamentos de famílias, empresas produtivas e financeiras, do governo e até mesmo de agentes estrangeiros que aplicam no Brasil. Logo, mudanças devem ser pensadas para surtirem efeito em longo prazo. Elas só não podem deixar de existir.
Por fim, 2019 é um ano emblemático para a Selic, que se encontra em seu menor patamar da história atualmente, 5,5% ao ano, nível em muito dado pelas condições conjunturais da economia brasileira, que se encontra estagnada, com grande ociosidade de oferta e com moroso aumento na concessão de crédito. Certamente este nível de juros abre espaço para mudanças na estrutura do sistema financeiro nacional, pois a Selic baixa estimula a ida para renda variável, o que abre espaço para o lançamento de instrumentos privados de dívida, mesmo diante do baixo crescimento econômico. Ademais, em toda a série de reformas que se vem propondo atualmente, como a previdenciária e a tributária, deveria se abrir mais espaço para uma relevante reforma a ser feita no mercado monetário, com a troca das operações compromissadas por depósitos diretos no BCB, o que reduziria a dívida pública em aproximadamente 20% do PIB, volume atual existente de compromissadas. Talvez fosse este um primeiro esforço para se ter mais claros os contornos do que é problema monetário e do que é questão efetivamente fiscal na condução da política macroeconômica brasileira, algo hoje bastante turvado, como descrito ao longo deste artigo.
https://diplomatique.org.br/o-mercado-da-divida-publica-no-brasil/
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