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Um mundo afogado em capital: a queda global da taxa de juros e a nova rodada da crise estrutural do capitalismo

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Maurilio Lima Botelho – O desastre financeiro mundial está à espreita, resta saber se será antes ou depois do Banco Central dos EUA operar com juros reais negativos.

A taxa básica de juros no Brasil (Selic) foi ajustada para 5% ao no fim de outubro, atingindo o marco histórico de menor rendimento. A projeção de inflação para este ano é de 3,26%, enquanto a inflação anual acumulada em outubro foi de 2,54%.1 Deduzindo-se a inflação da taxa básica, o juro real seria de menos de 3% ano – nem todos os títulos de dívida emitidos pelo governo seguem esse percentual básico, mas mesmo assim estamos diante de um mínimo inédito em nossas terras. Nos mercados e nas indústrias, há gente elogiando a queda gradual e suave da taxa, contrastando a situação à de um passado recente em que tentativas de redução teriam sido “forçadas” pelo governo. Entretanto, quem elogia a queda dos juros se comporta como o médico que comemora a temperatura em baixa do paciente sem perceber que ele faleceu – há dois meses, por exemplo, tivemos deflação, indicação de uma situação econômica grave.

Para a lógica econômica keynesiana, esse cenário deveria estimular o investimento produtivo e afugentar o rentismo, mas a economia não parece indicar um movimento contrário ao dos juros e de retomada da atividade: a produção industrial brasileira, em setembro, acumulava queda de 1,7%. Mais investimento, para aproveitar o cenário de juros baixos, só agravaria o quadro de estagnação: mais de 25% do parque produtivo brasileiro está parado – a ociosidade tornou-se crônica. Em alguns setores, como de bens de capital (máquinas e equipamentos), há quase 40% de ociosidade. Na indústria automobilística, 3 em 10 máquinas estão paradas2. Com a situação econômica delicada na Argentina, isso deve piorar, pois trata-se do principal mercado consumidor de automóveis brasileiros. Talvez pareça fazer algum sentido o foco nos investimentos em infraestrutura de transporte e logística, tradicionalmente considerados “gargalos” na economia brasileira, mas aqui também a estagnação é elevada: os portos acumulam em média 50% de ociosidade. Ou seja, qualquer investimento novo promoveria ainda mais a capacidade ociosa e, no médio e longo prazo, reduziria empregos com a elevação da produtividade dos fatores de produção. Monetaristas e keynesianos estão imobilizados por uma realidade econômica falhada – e o problema não é apenas na “economia nacional”.

Temos um contexto inédito, no cenário global, de taxas de juros reais negativas. Já são 17 trilhões de dólares investidos em títulos de governos com rendimentos negativos ao redor do mundo – um quarto de todo mercado de dívida pública mundial. A Áustria foi um dos países pioneiros nesse sentido ao lançar 3,5 bilhões de euros, em 2017, em títulos com rendimentos a 1,7%. O detalhe é que os títulos teriam vencimento em 2117!3 Agora, uma boa parte da Europa opera com emissão de dívida soberana com rendimentos reais negativos ou em torno de 0%. O Japão segue o mesmo caminho. Recentemente, o ex-presidente do Fed, Alan Greenspan, advertiu que não seria surpresa se logo os Estados Unidos também começassem a operar com juros reais negativos em sua emissão de dívida.4

Enquanto isso não ocorre, os investidores (e os fundos soberanos) correm para o conforto dos títulos norte-americanos, mesmo que de baixíssimo rendimento: o mundo continua a financiar o endividamento sistemático dos EUA, sustenta seu déficit recorde – que deve chegar a quase 1 trilhão de dólares esse ano – e reforça o poder do dólar como última moeda hegemônica. O “ciclo virtuoso” de crescimento sob Trump deve-se mais a isso do que a qualquer efeito real de sua economia, que continua sendo uma voraz consumidora mundial de mercadorias e, mesmo com uma guerra comercial com a China, teve um déficit comercial de quase meio trilhão no primeiro semestre de 2019.

E não é apenas no setor estatal que há a tendência negativa: a consultoria Bianco Research calculou que, em apenas oito meses deste ano, ocorreu uma ampliação de títulos corporativos com rendimentos negativos de 20 bilhões para 1 trilhão de dólares em todo mundo. Um salto gigantesco e brusco.5 Nesse momento, tudo aquilo que já foi produzido em teoria econômica perdeu o sentido: ninguém sabe mais como explicar o paradoxo de uma situação mundial em que investidores procuram, cada vez mais, converter seu capital em títulos que serão revertidos em um preço final menor do que o adiantado. O único argumento, óbvio, é o de temor diante do futuro: “incerteza econômica global”, diz uma das principais porta-vozes do mercado financeiro.6

Mas essa é uma formulação banal, mais uma descrição da situação de enfermidade capitalista do que uma explicação para o quadro clínico do moribundo mercado mundial. Sem dúvida, o horizonte se tornou tão depreciado em termos de investimento que se tornou melhor apostar em títulos seguros de rendimento zero ou com pequena perda do que arriscar tudo em apostas sem futuro na indústria ou mercados de risco – a fuga de capitais verificada na bolsa de valores de São Paulo este ano mesmo diante do “choque de capitalismo” prometido por Guedes tem origem nisso.7 Mas se esse mecanismo de fuga de investimentos produtivos para a “superestrutura financeira” já é uma lógica bem conhecida, por que agora os próprios rendimentos financeiros estão se depreciando?

A explicação está longe dos livros de economia e deveria ser buscada naquele pensador maldito do século XIX que escreveu exatamente uma crítica da economia política, pressupondo que as categorias econômicas como valor, mercadoria, dinheiro e lucro são dotadas de uma “objetividade fantasmagórica” que escapa ao controle dos agentes sociais. Talvez isso fique didaticamente explícito hoje, pois de modo crescente muitos dos operadores do mercado financeiro já não conseguem mais “especular” de modo rentável, sendo portanto mais “suportes” das forças do mercado do que propriamente “mestres do universo”.

Uma das formulações culminantes da crítica da economia política de Marx foi o da “lei tendencial de queda da taxa de lucro”: a longo prazo, a tendência do investimento capitalista é incrementar de tal maneira os meios de produção que, em termos relativos, este se torna muito maior do que o montante de capital mobilizado em força de trabalho. Entretanto, o trabalho é a única fonte de valor e, quanto maior for o volume de capital convertido em máquinas e equipamentos, menor será o grau de acréscimo de nova riqueza no sistema. Como a economia capitalista funciona sob a compulsão ao lucro e o lucro nada mais é do que uma função dessa relação entre o volume total de investimentos realizados e a quantidade de valor produzida pelo trabalho, então a tendência é uma queda secular dos lucros capitalistas. Efeitos atenuantes poderiam ser experimentados ao longo do tempo, como o barateamento das próprias máquinas e equipamentos ou o desvio de capital para setores menos intensivos em tecnologia. Mas como o mercado é um todo de vasos comunicantes os preços em queda das máquinas e equipamentos levariam à sua própria generalização, o que teria efeitos sobre o custo do trabalho e a coerção da concorrência traria os lucros novamente para baixo. No fim, apesar de todas as “contratendências”, com a “tendência ao desenvolvimento absoluto das forças produtivas”,8 acabaria imperando a queda de lucros generalizada.

Com a revolução da informática e os avanços tecnológicos da Terceira Revolução Industrial, esse cenário parecia consolidado. Não se tratava apenas de uma desproporção meramente quantitativa de investimentos em máquinas e equipamentos diante da força de trabalho humana: a própria capacidade produtiva inédita da flexibilidade microeletrônica estava dispensando trabalhadores em levas crescentes, daí o desemprego em massa em todo o mundo. Mas os ganhos em queda nos investimentos produtivos forçaram uma corrida aos mercados financeiros e foi possível compensar, temporariamente, os lucros da produção com os juros dos investimentos. Juros em alta estavam em discrepância com os lucros em declínio.

Contudo, um dos pilares da crítica de Marx ao capitalismo é exatamente a decomposição de todas categorias econômicas a partir da figura do valor – assim como o lucro depende da produção excedente de valor para sua existência, o juro não tem vida autônoma e é mera dedução dos lucros da produção. É verdade que a formação de capital fictício poderia, principalmente numa economia sem lastro monetário (o fim do padrão dólar-ouro a partir de 1970), ampliar os ganhos especulativos e fazer parecer que o milagre da multiplicação de dinheiro, independente da produção de mercadorias, havia sido obtido. Entretanto, também a pretensa autonomia dos mercados financeiros com sua “acumulação monetária” (Marx) tem de se valer com a coação da concorrência: capital excedente em demasia buscando as “mercadorias financeiras” deve levar, a partir de determinado ponto, a uma queda geral dos juros. Mesmo que dissociadas pela ruptura básica entre dinheiro e mercadoria com o fim de Bretton Woods – resultado já da própria queda da taxa de lucro –,9 a produção e as finanças são carne-da-mesma-carne, funções sociais institucionalizadas da forma econômica geral do capital, portanto, devem sofrer sempre com suas leis internas e seus limites.

É o que vemos em todo o mundo nesse momento e que deve se encaminhar também para o “centro hegemônico”. A tendência secular da queda da taxa de lucros chegou a um patamar tão coercitivo que os próprios juros foram forçados a um mínimo pela massa histórica de capital monetária disponível globalmente. Não se pode afirmar mais que a “causa de rendimentos negativos em todo o mundo é excesso de capital sem oportunidades de investimento produtivo”10 – isso foi a base da “hipertrofia financeira” que começou há pelo menos 35 anos. O que se trata agora é um excedente de capital tão monstruoso (alimentado por injeções sistemáticas dos bancos centrais com a “flexibilização monetária”) que temos cada vez menos rentabilidade até mesmo nos investimentos especulativos. A “superacumulação absoluta de capital” (Marx) atingiu tal nível que a massa de capital fictício circulando é esmagadoramente gigantesca diante dos mecanismos de rentabilidade oferecidos. A queda da taxa de lucros, num mundo afogado em capital, aparece cada vez mais também sob a forma de uma queda geral da taxa de juros. O desarranjo histórico entre uma taxa e outra parece agora liquidado e as duas seguem a mesma tendência de queda. O desastre financeiro mundial está à espreita, resta saber se será antes ou depois do Banco Central dos EUA operar com juros reais negativos.

NOTAS

1 Daniela Amorim, “Inflação de outubro é a menor para o mês desde 1998”, Estadão, 7 nov. 2019.
2 “Maioria dos setores da indústria opera com ociosidade acima da média”, RBA, 22 abr. 2019.
3 Joy Wiltermuth, “That near–$17 trillion pile of negative-yielding global debt? It’s a cash cow for some bond investors”, MarketWatch, 22 ago. 2019.
4 “Greenspan não descarta juro negativo nos EUA”, Valor, 15 ago. 2019.
5 Joy Wiltermouth, “That near–$17 trillion pile of negative-yielding global debt? It’s a cash cow for some bond investors”, MarketWatch, 22 ago. 2019.
6 Maggie Fitzgerald, “Amount of global debt with negative yields balloons to $15 trillion”, CNBC, 7 ago. 2019.
7 Juliana Machado e Ana Carolina Neira, “Saída mensal de capital externo na bolsa é recorde”, Valor, 04 set. 2019.
8 Karl Marx. O capital: crítica da economia política, Livro III: o processo global da produção capitalista. São Paulo, Boitempo, 1986, p. 289.
9 Maurilio Lima Botelho. “Rumo ao desconhecido: endividamento mundial, crise monetária e colapso capitalista”, Blog da Boitempo, 23 jul. 2019.
10 FS Staff, “Jim Bianco Says Negative Rates Could Lead to Disaster”, Financial Sense, 19 ago. 2019.

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