Patricia Fachin – Entrevista especial com José Geraldo de Sousa Junior.
É natural que, com as mudanças das sociedades nos tempos, o Direito precise ser transformado. No entanto, como observa o jurista José Geraldo de Sousa Junior, há um núcleo duro que não pode ser mudado. Ou seja, sob o argumento de ampliar o combate à criminalidade – e a novos crimes – não se pode suprimir direitos fundamentais. Para ele, é esse o ponto central da fala do Papa Francisco no XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, realizado em Roma. “Seu discurso abre um debate ao qual não nos podemos furtar: vale a pena abrir mão dos direitos e das garantias fundamentais em nome do combate à criminalidade moderna e à criminalidade organizada?”, questiona. E responde: “é preciso recuperar a real dimensão da tutela penal, o que implica, necessariamente, a restauração dos valores constitucionais capazes de assegurar a eficácia dos bens e direitos fundamentais e o núcleo irredutível de dignidade sem o que nem se realiza a Democracia, a Paz e a Justiça”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor ainda traz ao debate a realidade brasileira, em tempos de propostas de um novo Código Penal. E ele ainda observa que, nesses tempos, há uma nova ordem constitucional em que “o Poder Judiciário se vê, assim como toda a institucionalidade estatal e a sociedade, diante de desafios históricos para a reconstrução da sua função social”. “De notar, portanto, o tamanho do problema no qual nos situamos nesta complexa relação política entre o desenho institucional da justiça, a democracia e os direitos humanos no Brasil”, acrescenta.
Para José Geraldo, o melhor caminho para se pensar em reformas legais verdadeiramente democráticas, especialmente no caso do Direito Penal, é aquele em que se amplifica o debate com a sociedade. “Uma melhor estratégia para o sistema penal brasileiro deve necessariamente passar por profundos debates com a sociedade civil organizada, com a Ordem dos Advogados do Brasil, com o Ministério Público, com a Defensoria Pública, com os diversos órgãos de representação da Magistratura e com a Academia, até que seja finalmente debatido no âmbito do Congresso Nacional, em comunhão de ideias e espaço equânime para deliberação de problemas, expectativas, anseios e frustrações”, reitera.
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
Confira entrevista.
IHU On-Line – Como interpreta o discurso do papa Francisco no XX Congresso Mundial da Associação Internacional de Direito Penal, realizado em Roma, de 13 a 16 de novembro, sobre o tema “Justiça criminal e negócios corporativos”?
José Geraldo de Sousa Junior – O tema não tem sido extravagante nos pronunciamentos e nas atitudes do Papa Francisco. Há pouco, aludindo ao tema da Justiça e a postura que deve caracterizar a conduta de juízes, o Papa, em mensagem na sua rede de intenções de oração, exortou a magistratura a que, “frente à essa exposição e ao risco de ruptura do papel do judiciário”, devam os juízes ser “isentos de favoritismos e de pressões que possam contaminar as decisões que devem tomar”.
Os juízes, ele disse, numa afirmação do princípio da imparcialidade que é o requisito fundamental da judicatura, “devem seguir o exemplo de Jesus, que nunca negocia a verdade”. Verdade que, ao final, prevalecerá, ele acentuou em carta enviada a Lula, enquanto o ex-presidente esteve preso em Curitiba. Nessa linha de exortação, pontificou: “Rezemos para que todos aqueles que administram a justiça operem com integridade e para que a injustiça que atravessa o mundo não tenha a última palavra“.
Como se fosse uma carapuça, suas mensagens vestem perfeitamente a estrutura de administração do aparato do sistema de justiça e de ativismo do judiciário brasileiro — José Geraldo de Sousa Jr
IHU On-Line – Quais as inspirações do discurso para refletirmos sobre o direito penal à luz da realidade brasileira?
José Geraldo de Sousa Junior – Não por coincidência, muitos interpretaram que é a realidade brasileira que tem motivado o Papa em suas mensagens sobre juízes, o Direito Penal e a Justiça. Afinal, como se fosse uma carapuça, suas mensagens vestem perfeitamente a estrutura de administração do aparato do sistema de justiça e de ativismo do judiciário brasileiro. Mas, se isso ocorre é porque entre nós, de algum modo, se constata a condição a que o Papa infere desde suas proclamações mais gerais nas quais ele percebe instalar-se as assimetrias que abalam o sistema.
Em seu discurso aos juristas, no encontro de penalistas, o pontífice incide diretamente no tema para acentuar o estado atual do direito penal: “Há várias décadas, o direito penal incorporou – especialmente a partir de contribuições de outras disciplinas – diferentes conhecimentos sobre algumas problemáticas relacionadas ao exercício da função sancionadora. Eu me referi a alguns deles no encontro precedente. No entanto, apesar dessa abertura epistemológica, o direito penal não conseguiu se livrar das ameaças que, em nossos dias, pairam sobre as democracias e a plena vigência do Estado de Direito. Por outro lado, o direito penal muitas vezes descuida dos dados da realidade e, dessa maneira, assume a aparência de um conhecimento meramente especulativo”, configurados em dois aspectos relevantes do contexto atual: a idolatria do mercado e os riscos do idealismo penal.
IHU On-Line – Em sua crítica à maximização do lucro por si só, que gera excluídos no presente e compromete as gerações futuras, o papa convida os juristas a se perguntarem o que podem fazer com seus conhecimentos para combater esse fenômeno. Que contribuições o Direito pode trazer para combater esse fenômeno?
José Geraldo de Sousa Junior – Participei recentemente de uma roda de conversa para discutir os resultados de uma pesquisa sobre o Supremo Tribunal Federal promovida pela organização Terra de Direitos, sob coordenação do professor Antonio Sergio Escrivão Filho. O resultado foi a seguir publicado e sobre o texto editado acabei fazendo uma resenha para a minha Coluna Lido para Você . Do que se cuidou, no fecho dessa pesquisa, disse eu na minha recensão, foi conferir a ocorrência de uma expansão política do judiciário em face de sua interação com o sistema político e a sociedade civil. E de modo mais preciso, a necessidade de considerar nesse processo, não bastar compreender a ideologia que compromete a ação individual de juízes sem entender o fluxo de interação ideológica entre tribunais e academia, mídia, grupos sociais organizados e outras instituições políticas.
Em seu discurso aos juristas, no encontro de penalistas, o pontífice incide diretamente no tema para acentuar o estado atual do direito penal: a idolatria do mercado e os riscos do idealismo penal — José Geraldo de Sousa Jr
Não é difícil estimar o potencial curto-circuito, quando se constata a súbita sobrecarga política sobre uma estrutura destreinada a participar democraticamente da deliberação sobre conflitos de elevada intensidade política, econômica e social, na medida da fórmula que alia expansão política e blindagem institucional e em oposição à sua abertura democrática ao diálogo nos termos da participação e controle social. De certo modo, eu já havia antecipado essa sobrecarga, ao examinar esse tema a partir de uma questão política que me havia sido formulada por um Sindicato de servidores do judiciário como tema de um de seus congressos: é possível uma sociedade democrática com um poder judiciário conservador?
Minha resposta, à altura, trilhou a mesma senda que Escrivão Filho percorre agora em seu estudo (Que Judiciário na Democracia?, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008): A resposta, obviamente, é não. Não é possível uma democratização plena da sociedade se uma de suas instituições essenciais se conserva como modelo instrumental resistente porque ele se tornará obstáculo à própria mudança. Esta é sem dúvida a questão candente hoje, em nosso país, quando se coloca em causa o problema de sua democratização e se identifica no judiciário a recalcitrância que é social e teórica para a realização de mudanças sociais, conferindo à regulamentação jurídica das novas instituições o seu máximo potencial de realização das promessas constitucionais de reinvenção democrática.
Neutralidade do sistema
Para Escrivão Filho, voltando ao texto de sua pesquisa, ao contrário da disposição de fomentar noções de autonomia e independência concebidas como princípios políticos próprios da função judicial diretamente referentes à garantia da sociedade contra a arbitrariedade do Estado, as alianças então construídas sobretudo durante a mediação constituinte (1988), ao invés de forjar requisitos de neutralização do sistema – reconhecimento ontológico da condição política da justiça – deixou que esse se visse permeado pela ideologia da neutralidade – enredando-o em injunções a serviço da reprodução das tradições de uma cultura institucional acostumada e orientada à manutenção do status quo.
Na nova ordem constitucional, o poder judiciário se vê, assim como toda a institucionalidade estatal e a sociedade, diante de desafios históricos para a reconstrução da sua função social. De notar, portanto, o tamanho do problema no qual nos situamos nesta complexa relação política entre o desenho institucional da justiça, a democracia e os direitos humanos no Brasil: se por um lado atingimos um estágio político e social, no qual se vislumbra confiar ao Poder Judiciário a função de solucionar ou intermediar conflitos sociais de alta intensidade política, como a efetivação ou proteção contra a violação de direitos humanos, de outro é justamente essa hipótese que desperta o alerta e sérias preocupações acerca da legitimidade e capacidade institucional do Poder Judiciário para lidar com tamanho alargamento político das suas funções.
Não é possível uma democratização plena da sociedade se uma de suas instituições essenciais se conserva como modelo instrumental resistente porque ele se tornará obstáculo à própria mudança — José Geraldo de Sousa Jr
IHU On-Line – No pronunciamento, o papa mencionou o “uso arbitrário da prisão preventiva”, cujo número de detentos sem condenação já ultrapassa 50% da população carcerária. Quais são as causas dessa realidade, as dificuldades do direito brasileiro acerca desse ponto especificamente e que propostas jurídicas poderiam sugerir saídas para esse quadro?
José Geraldo de Sousa Junior – De pronto, salta aos olhos que um anteprojeto que causa significativas alterações ao ordenamento jurídico pátrio (13 leis e mais de 70 dispositivos, anunciado oficialmente pela imprensa, em coletivas e entrevistas para os principais veículos de comunicação do país), sequer tenha sido acompanhado de uma exposição de motivos, para respaldar e esclarecer seu significado e justificativa. Ou mesmo projetar seus impactos orçamentários e administrativos, bem explicitar os elementos técnicos, teóricos que norteiam tamanha inovação legislativa que, caso aprovada, transformará profundamente a vida da população brasileira.
Dentre a alteração de inúmeras legislações de longas jornadas de debate, o anteprojeto em discussão procura cambiar artigos do Código Penal de 1940. Ressalte-se que a última grande reforma no presente código foi realizada pela Lei 7.209/1984, em anteprojeto de redação de Nelson Hungria, cumprindo fazer menção à Comissão Revisora do projeto, na qual juristas do peso de Hélio Tornaghi, Roberto Lyra, Aníbal Bruno e Heleno Fragoso trabalharam incessantemente em uma legislação que foi contemporânea dos estudos científicos do direito penal, legislação que passou por seminários e debates contínuos entre sociedade civil e especialistas.
Cumpre salientar que a proposta ostenta um perfil assumidamente ultrapunitivista, a partir do endurecimento da legislação penal e da diminuição das garantias processuais dos réus, soluções essas que há tempos são demonstradas pela ciência penal como de apelo popular, porém inócuas para lidar com a complexidade dos conflitos sociais, mas com grande poder para inflar o sistema carcerário brasileiro já declarado pelo Supremo Tribunal Federal como padecedor de um “estado de coisas inconstitucional”. Nesse sentido, o anteprojeto parte do pressuposto de que a lei controlará a sociedade, sem avaliar os reflexos secundários que as alterações legislativas terão no cotidiano da sociedade brasileira e no dia a dia da Justiça do país, e assim, no afã da punição desmedida, olvidando-se da misericórdia e da redenção, é dizer, do papel essencial de reinserção social das penas.
O anteprojeto parte do pressuposto de que a lei controlará a sociedade, sem avaliar os reflexos secundários que as alterações legislativas terão no cotidiano da sociedade brasileira e no dia a dia da Justiça do país — José Geraldo de Sousa Jr
Justiça X vingança
Pergunte-se: haverá justiça na sede de vingança? Acrescente-se que o anteprojeto deixa transparecer a intenção de oficializar eventuais “lacunas” legislativas, que seriam preenchidas pela interpretação um tanto discricionária de agentes estatais, à margem da legislação pátria, naquilo que cientificamente se denomina ativismo judicial. Quanto ao ponto, chama à atenção a alteração legislativa que tende a esclarecer o que é, e quando pode ser utilizada, a execução provisória da pena no Código de Processo Penal, algo que não tem qualquer disciplina no ordenamento jurídico pátrio, e tem sido aplicada por interpretação criativa dos magistrados brasileiros.
Não é distinto quando o anteprojeto procura oficializar convênios, acordos e compartilhamento de provas entre órgãos investigativos nacionais e estrangeiros, não exigindo qualquer previsão em tratado internacional assinado pelo Brasil com o ente conveniado ou qualquer formalização ou autenticação especial para o compartilhamento de tais informações.
As alterações propõem ainda a hipertrofia do Ministério Público, a partir da experiência anglo-saxônica do plea-bargaining (ao cabo de várias críticas retiradas da proposta), autorizando a proposição de acordos de não investigação ou mesmo de aplicação imediata da pena pelo Parquet aos acusados, a partir da confissão do delito pelo réu, o que ademais de fortalecer em demasia o órgão ministerial, potencializa a arbitrariedade da autoridade, uma vez que o acordo poderá (e não deverá!) ser oferecido. Não obstante, em um país de imensa desigualdade no acesso à justiça, tal proposta poderá transformar o instrumento em acordos forçados com réus fragilizados sem a devida assistência de seu defensor, servindo para, mais uma vez, favorecer os polos mais fortes da relação jurídica penal.
Em um país de imensa desigualdade no acesso à justiça, tal proposta poderá transformar o instrumento em acordos forçados com réus fragilizados sem a devida assistência de seu defensor, servindo para, mais uma vez, favorecer os polos mais fortes da relação jurídica penal — José Geraldo de Sousa Jr
Excludente de ilicitude
Quanto às suas decantadas impropriedades técnicas de redação, o texto cria novas excludentes de punição penal, a partir de expressões subjetivas como “medo” e “surpresa”, termos pouco técnicos e permeados de dubiedade, que empoderam a já hipertrofiada autoridade judiciária, possibilitando-a absolver ou condenar o cidadão em face da diferente experiência emocional vivenciada pelo magistrado.
Há também impertinências materiais já projetadas em sua dimensão antipovo, na forma de excludentes de ilicitude que o projeto formula e que já se expande para uma postura absolutamente repressora na ampliação de alcance das medidas de Garantia da Lei e da Ordem – GLO, mais graves ainda que as excludentes do medo, surpresa e violenta emoção. Todas servem, a bem da verdade, como instrumentos que reforcem o preconceito e a perseguição de vulneráveis e opositores a partir da rotulação e da estigmatização social de raça/cor, orientação sexual, origem social, religião e gênero.
Ainda é importante mencionar que toda legislação criada no país deve estar de acordo com posições pacificadas nas cortes superiores e, por esse sentido, a melhor técnica desaconselha que temas em dissonância com decisões recorrentes, sumuladas e por muitas décadas assentadas, sejam apresentados como nova legislação, sob pena de gerar significativo conflito nos tribunais. Insere-se, certamente, no elenco de verdadeira temeridade na contramão da salvaguarda dos direitos fundamentais constitucionalizados e dos direitos humanos internacionais, a formação de banco de doação (compulsória na prática) de perfil genético, seja pelo risco estigmatizante, seja pela abertura possível para a mercantilização decorrente de múltiplas possibilidades de acesso, lícita ou ilicitamente, aos dados desses bancos.
Encarceramento
A proposta estabelece o regime obrigatoriamente fechado em diversas situações, impondo o regime inicialmente fechado em outras e vedando as saídas temporárias aos aprisionados, o que se sabe, é vedado pela própria Constituição Federal, por violar o princípio da individualização das penas, consagrado no Art. 5º XLVI da CF, conforme também já decidido pelo STF. No mesmo caminho, propõe-se ao estabelecimento prisional federal um sistema de execução penal típico do chamado Regime Disciplinar Diferenciado. Ocorre que o RDD possui atualmente um limite temporal (360 dias), e somente deve ser aplicado em caso de falta grave durante o cumprimento da pena, não havendo qualquer dispositivo legal que autorize o tratamento distinto para as pessoas encarceradas em prisão federal, o que também poderá acarretar tumulto às cortes brasileiras e tratamento desigual para cidadãos do mesmo país.
Como mencionado, a normativa elaborada pelo Governo Federal preza pela ambiguidade, dando significativa margem à interpretação do magistrado. É possível perceber esse padrão legislativo quanto ao endurecimento do crime de resistência que passa para penas de 6 (seis) a 30 (trinta) anos quando causar risco de morte à autoridade, novamente hiperinflando o poder dos agentes do Estado, que em regra tendem a reforçar o arbítrio estatal frente ao cidadão.
Debate com a sociedade
Por esse sentido, defendemos que a elaboração de uma melhor estratégia para o sistema penal brasileiro deve necessariamente passar por profundos debates com a sociedade civil organizada, com a Ordem dos Advogados do Brasil, com o Ministério Público, com a Defensoria Pública, com os diversos órgãos de representação da Magistratura e com a Academia, até que seja finalmente debatido no âmbito do Congresso Nacional, em comunhão de ideias e espaço equânime para deliberação de problemas, expectativas, anseios e frustrações. A participação dessas entidades em longo e profundo debate se faz fundante para que qualquer alteração legislativa seja verdadeiramente democrática.
Ao contrário da temperança e razão que se espera de um operador do direito, o ordenamento proposto segue na contramão do pensamento contemporâneo das ciências penais e é um sério agravante para um país que vive relevante crise econômica e significativos índices de encarceramento. Lamenta-se, pois, que a proposta seja omissa no enfrentamento do problema do encarceramento em massa, e não avance na discussão da adoção de penas e medidas alternativas para lidar com o conflito penal.
IHU On-Line – Em seu discurso, o papa também denuncia as “omissões mais frequentes do direito penal”, referindo-se à “escassa ou pouca atenção que os crimes dos mais poderosos recebem, sobretudo a macrodelinquência das corporações”, ao tratar dos paraísos fiscais e dos crimes cometidos pelo capital financeiro global. Ele afirma que “é curioso que o recurso a paraísos fiscais, um expediente que sirva para ocultar todo tipo de crime, não seja visto como uma questão de corrupção e criminalidade organizada”. Como avalia essa crítica em particular? Como a justiça brasileira trata essa questão e, em termos jurídicos, como seria possível reverter essas omissões do direito penal?
José Geraldo de Sousa Junior – Mais de meio século vigente e o Código Penal Brasileiro tornou-se alvo de um movimento forte para a sua substituição. O projeto de um novo estatuto é fruto do trabalho concluído no ano de 1999, por uma Comissão Revisora, tendo ultimado o projeto que, conforme indicou, pretende conduzir o Brasil século XXI adentro, numa posição avançada em matéria penal. Entretanto, desde então o projeto continua em tramitação, não estando ainda apto à deliberação legislativa.
Foi nesse projeto, por exemplo, que entre outras inovações consideradas importantes, na opinião da maioria dos especialistas, se ofereceu uma tipificação do chamado crime organizado, alcançando atividades de característica mafiosa. Também cinquenta anos após a Conferência de Sutherland, lançando a tese do white collar crime, o debate chegou à nossa consideração criminológica sob o impacto de práticas de agentes em posição muito privilegiada, enfim cominadas de caráter delinquencial.
É certo que não faltaram impulsos a essa tese no panorama internacional, bastando lembrar, a propósito, a famosa exposição de Séverin-Carlos Versele, perante o Consórcio Europe de Investigações Políticas, em abril de 1976, ocasião em que formulou a sua célebre noção relativa à cifra dourada da delinquência. Naquela oportunidade Versele buscava o convencimento quanto à necessidade de se aprofundar a investigação que se refere à delinquência não convencional de caráter sociopolítico, ao mesmo tempo que se deviam elaborar programas aptos para a prevenção desse tipo de delinquência.
Na sua advertência, investigações sociológicas de criminologia e políticas criminais deveriam ter aprofundamento essencial quanto a estruturas econômicas e políticas que permitem, se não favorecem, a corrupção; filigranas do sistema penal, legislativo e judicial que fazem escapar ao controle social um número tão excessivo de fatos gravemente prejudiciais para as coletividades nacionais e para a paz e a justiça internacionais.
De toda sorte, para sustentar esse debate, a reação social como alternativa analítica rompera já com o discurso do positivismo criminológico fundado na determinação de fatores de propiciação de natureza biopsíquica que haviam naturalizado o delito e o desvio, identificando o indivíduo criminoso fora dos padrões de desenvolvimento normal como louco ou doente. Goffman descrevera pormenorizadamente o processo de estigmatização, caracterizando a sua funcionalidade e, na linha das teorias dos estereótipos, apontara-se o modo pelo qual o chamado processo de criminalização não apenas produz formas de classificação de indivíduos em agrupamentos manipuláveis, mas cria bodes expiatórios sociais e lhes atribui papel sacrificial.
Complexidades do delito
Criaram-se, assim, as bases para um novo entendimento da questão criminal, capaz de situar a sofisticada organização da criminalidade a partir, exatamente, da possibilidade, tal como acentuou Roberto Lyra Filho (Revista de Direito Penal, v. 31, 1081, p. 67), de problematização do fenômeno da incriminação como pressuposto e base de toda análise das condições de emergência do delito, assim procurado em suas raízes histórico-sociais.
Retardatário também nesse campo, o Brasil só recentemente se deu conta da complexidade dessa modalidade de delito. Em notável depoimento, o mais festejado criminalista brasileiro, que ainda se conserva nesse pódio mesmo após seu falecimento, que é, a meu ver, Evandro Lins e Silva, dá a medida desse distanciamento problematizante: “A advocacia naquela época era muito precária. O Brasil ainda era um país muito pobre. Não havia lei de economia popular, não havia crimes financeiros, crimes econômicos, de forma que a base do advogado criminal era a advocacia do júri, onde, de quando em vez, havia um crime passional, quer dizer, havia um cliente de classe média que podia remunerar modestamente o advogado… A modificação nos escritórios de advocacia criminal se deu sobretudo a partir de 1938, quando foi editada a primeira Lei de Economia Popular. Era uma lei que punia monopólios, os cartéis, os crimes de infração do tabelamento de preços, a gerência fraudulenta de empresas, a usura. Uma lei que passou a punir o burguês, o comerciante (O Salão dos Passos Perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/CPDOC, 1997, p. 108-109)”.
A recepção, pois, no projeto do novo Código Penal desse delito está longe da memória romântica de que nos fala Evandro Lins e Silva a partir do relato de sua trajetória de grande advogado criminalista. Ao contrário, está na linha de consideração de um fenômeno, como adverte Winfried Hassemer, novo e excepcional. Realmente diz Hassemer:
Los criminologos – en la medida que perciben y reconocen el fenômeno de la criminalidade organizada – coinciden que ésta es una forma de aparición de la criminalidade cualitativamente nueva. Los políticos encargados de la seguridade interna coinciden en este punto y subrayan que las amenazas, que están unidas a este yipo de criminalidade, no constituyen unicamente aumentos cuantitativos de peligros conocidos hasta la fecha, sino que alcanzan un nível de peligro social hasta el momento desconocido (Limites del Estado de Derecho para el Combate Contra la Criminalidad Organizada – tesis y razones. Brasília: Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, ano 6, n. 11 – jan./jun, 1998, p. 227).
IHU On-Line – Outro ponto para o qual o papa faz um chamado à reflexão diz respeito aos “fenômenos maciços de apropriação de recursos públicos”, que “passam despercebidos ou são minimizados como se fossem meros conflitos de interesse”, como o caso da corrupção enquanto “criminalidade organizada”. Como essa questão tem sido tratada e pode ser aperfeiçoada pelo direito penal brasileiro, uma vez que nem sempre é possível comprovar casos de corrupção ou o enriquecimento ilícito de agentes públicos? As 10 medidas contra a corrupção propostas pelo Ministério Público Federal em 2015 trazem contribuições para enfrentar esse fenômeno? Que propostas, na sua avaliação, permitiram o aperfeiçoamento do sistema jurídico para combater esses crimes?
José Geraldo de Sousa Junior – Isso se percebe no rol de medidas contra a corrupção propostas por setores juvenis do Ministério Público e suas alianças de superfície e no que se extrai do anteprojeto de lei anticrime que o Executivo Federal trouxe há pouco como resposta mítica ao quadro corrente de insegurança e de criminalidade. Tais medidas se reduzem a um recorte que ocupa mais fortemente o imaginário social, no qual há pouco espaço solidário para admitir soluções humanizadoras para a questão da criminalidade. Assim, acabam aceitando acriticamente sugestões que representem atender a expectativa sacrificial das sobras desvalidas do humano. Tratei disso nesta Coluna Lido para Você ao comentar o livro de Eduardo Lemos, O Pluralismo Jurídico na Omissão Estatal.
O Direito Achado no Cárcere, chamando a atenção, no limite, tal como digo em outro texto que, mesmo não sendo uma facção criminosa um movimento social, é fundamental afirmar: pertencendo ou não a organizações criminosas os presos, em sua condição de exclusão, conservam uma reserva inalienável de cidadania, que deve encontrar formas de reconhecimento e de exercício (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Negociar com Facção Criminosa?. In: SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e para a Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 91-92).
Natural que, imediatamente, as críticas que já se anunciavam em registros de enunciação em geral muito responsáveis, e de distintas procedências, logo se materializassem, e no meu próprio campo de atuação civil – a Comissão de Justiça e Paz – também se desse essa mobilização adversativa. Isso é o que expressa a Nota Técnica, de cuja elaboração participei como membro da Comissão, que a CJP oferecesse ao debate, como um chamado à prudência, uma convocação para um debate mais qualificado e uma indicação de valores e requisitos técnicos intransponíveis no plano de uma sociedade verdadeiramente democrática, espaço para a institucionalização de um estado verdadeiramente de Direito.
IHU On-Line – O papa também critica a guerra jurídica, o lawfare, e o uso de “falsas acusações contra líderes políticos” e a “instrumentalização” da luta contra a corrupção “a fim de combater governos indesejados, reduzir os direitos sociais, e promover um sentimento antipolítico que beneficia aqueles que aspiram a exercer um poder autoritário”. Como essa reflexão pode ser útil para refletirmos sobre a “guerra jurídica” e a instrumentalização política da justiça no Brasil?
José Geraldo de Sousa Junior – Limitados no apreço a valores e ao aprendizado do racional histórico, as gerações tecnofuncionais de operadores de Direito que chegam hoje ao lugar pragmático da mediação burocrático-instrumental do jurídico não se dão conta da exigência autorreflexiva que se impõe à inteligência propositiva de políticas legislativas e judiciais nativas do Direito Penal. Seguem a moda, o fascínio da opinião de conjuntura e ao chamado fácil de procedimentos mais afeiçoados ao espetáculo midiático que ao rigor da prudência objetiva do institucional ponderável.
O resultado são as proposições e as iniciativas que cedem aos aplausos e às expectativas impressionistas de formulações que mais respondem às opiniões que à lógica do razoável, para lembrar Recaséns Siches. Ao contrário, são parte de um arsenal de uso estratégico para a sustentação de projetos autoritários para a implantação de formas espoliativas e opressivas de apropriação da poupança socialmente acumulada. Não mais valer-se da força escancarada e repressora para reorientar a economia e o poder que define as suas diretrizes, mas golpear o institucional pelo uso artificial e formal do jurídico, contra a democracia e a constituição. A questão posta pelo Papa descreve essa nova “arte de guerra”, que tem no “lawfare” a sua mais sofisticada ilustração.
Algo que estamos assistindo agora em nosso próprio País, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de seus enunciados, como por ocasião do afastamento da Presidenta da República, numa aplicação de retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material; na seletividade de decisões envolvendo lideranças de oposição político-partidária; na tipificação criminal do protesto social; na judicialização da política; tudo levando à configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado de Exceção Democrática, que se vale da lei e da Constituição para esvaziá-las de suas melhores promessas (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Estado Democrático da Direita, in BUENO, Roberto, org., Democracia: da Crise à Ruptura. Jogos de armar: reflexões para a ação. São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, pp. 407-424).
São as lutas que preparam o terreno para afirmar modos de vida e é essa percepção que está na raiz do conceito que o projeto social implantado pelo movimento de redemocratização — José Geraldo de Sousa Jr
IHU On-Line – O papa também menciona os crimes ambientais e fala em “ecocídios”. Como é possível avançar nessa questão juridicamente?
José Geraldo de Sousa Junior – Alinhado a uma política neoliberal, logo no início de seu mandato, o atual presidente da República fez pronunciamentos de que em seu governo haveria flexibilização das regras da mineração e do licenciamento ambiental, inclusive com possibilidade de exploração de minério dentro de terras indígenas. No primeiro dia de seu mandato, a competência da Funai para demarcação de terras indígenas foi retirada, que passou a ser do Ministério da Agricultura, chefiado por uma ruralista. A agenda regressiva nesse aspecto prossegue com medidas agressivas que vão da criminalização do protesto à propositura de excludentes de culpabilidade para ações letais de repressão contra movimentos reivindicatórios ou ações de realização direta das promessas constitucionais, como, por exemplo, fazer a reforma agrária.
São direções, atitudes e pronunciamentos que se põem a contracorrente das motivações distributivistas que, mesmo no mais exacerbado utilitarismo, cuidaram de imprimir à economia um sentido político, que a insere no campo do que já foi chamado de teoria dos sentimentos morais (Adam Smith). E isso é inaceitável porque escancara um curso que busca imprimir em nosso País, aprofundando desigualdades que sacrificam o nosso povo, projetos de acumulação e de desenvolvimento entreguistas e excludentes, distanciando-se da aproximação mediada pela economia política e pela filosofia, e mais propriamente por teorias da justiça, que em países avançados, capitalistas e não capitalistas, segue uma linha civilizatória que mais se afasta das opções que mercantilizam a vida, em sua dimensão mais complexa, subjugada ao que denomina o Papa como “ecocídio”.
No que tem sido chamado de processo de desdemocratização e de desconstitucionalização que avassala o país desde 2016, como consequência de um golpe político que criou as condições para o reagrupamento dos interesses econômicos neoliberais, é preciso resistir e defender o projeto democrático-constitucional que organizou o social para vencer e superar as desigualdades. Tudo menos o conformismo, que acentua a naturalização de condições que, longe de decorrer de um destino, está, certamente, ao alcance da capacidade humana e política de definir ações transformadoras da realidade: os fenômenos sociais são, antes e acima de tudo, produtos da prática humana, estando, pois, aptos a assumirem contornos singulares conforme a época, a sociedade e a cultura, abrindo-se a essas mudanças.
Boas sementes
Por isso, retomando a ideia de semente e as perguntas da autora citada“¿cómo cultivar buenas semillas?” e “¿Cuáles son las semillas que debemos plantar?”, formuladas pela socióloga Catherine Walsh, dissemos eu e minha colega Renata Carolina Corrêa Vieira, em Democracia e Bem-Viver: Semear Vida onde só há Morte, que são as lutas que preparam o terreno para afirmar modos de vida e é essa percepção que está na raiz do conceito que o projeto social implantado pelo movimento de redemocratização, com a Constituição de 1988, fecundou. Vale dizer, conferir ao meio ambiente a condição de bem comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, da atual e das futuras gerações e salvaguardar, no interesse intergeracional, incluindo o modo de produção e de reprodução da existência social dos povos tradicionais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, nossa referência de passado e nossa aliança ética de futuro.
Isso representa uma chamada para que se reponha na esteira da defesa da Constituição e da Democracia, exigências acerca das reformas estruturais pelas quais passa o debate hoje, vale dizer, a nota social que se vai perdendo e que acaba por retirar a dimensão ético-política que deve presidir a sua orientação. Cuida-se, pois, de definir políticas públicas, inclusive no que concerne à reforma do Estado e dos serviços públicos, que sejam obedientes a valores. Na medida de seu potencial transformador das instituições e dos perfis de desempenho, esses valores é que vão permitir organizar, na sociedade e no Estado, padrões de cooperação, solidariedade e participação, por meio dos quais, à lógica excludente e alienante que se sustenta no primado da acumulação monopolista, se oponha, como prioridade de ação, da sociedade e do governo, a lógica democrática que se sustenta no primado de uma equitativa distribuição, enquanto se oriente para projeções que garantam o direito à vida plena, bem vivida, vida decente.
IHU On-Line – Segundo o papa, “entre a pena e o crime existe uma assimetria e que a realização de um mal não justifica a imposição de outro mal como resposta. Trata-se de fazer justiça à vítima, não de justiçar o agressor”. Concorda com essa compreensão? Como o Direito penal pode permitir que se faça justiça à vítima em todos esses casos que o próprio papa critica?
José Geraldo de Sousa Junior – O papa prossegue a inteligência hermenêutica que ele vem desenvolvendo em vários documentos. Na Misericordiae Vultus (Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, 2015), destaca o núcleo essencial da realização da Justiça, de cujo afastamento vem o risco de descumprimento a sua própria promessa obscurecendo o valor profundo que a justiça possui (n. 20).
A sua inspiração é a de preservar o núcleo irredutível da dignidade de quem se veja exposto na engrenagem desse tremendo aparato subjugando-se no excesso formal: “Diante da visão duma justiça como mera observância da lei, que julga dividindo as pessoas em justos e pecadores, Jesus procura mostrar o grande dom da misericórdia que busca os pecadores para lhes oferecer o perdão e a salvação. Compreende-se que Jesus, por causa desta sua visão tão libertadora e fonte de renovação, tenha sido rejeitado pelos fariseus e os doutores da lei. Estes, para ser fiéis à lei, limitavam-se a colocar pesos sobre os ombros das pessoas, anulando, porém, a misericórdia do Pai. O apelo à observância da lei não pode obstaculizar a atenção às necessidades que afetam a dignidade das pessoas” (MV, 20).
A questão central posta pelo papa em seu discurso abre um debate ao qual não nos podemos furtar: vale a pena abrir mão dos direitos e das garantias fundamentais em nome do combate à criminalidade moderna e à criminalidade organizada? — José Geraldo de Sousa Jr
IHU On-Line – Na mesma linha, o papa sugere que “devemos ir em direção a uma justiça penal restaurativa” e diz que “o desafio atual para todo advogado penal é conter a irracionalidade punitiva”. Como compreende essa proposta, quais são seus limites e vantagens em relação a uma concepção de direito punitivista para tratar os crimes que o próprio papa denuncia?
José Geraldo de Sousa Junior – Penso que um tanto desse apelo ao midiático se reduziu ao que se tem chamado de ideologia do punitivismo e que esteve no cerne do conjunto de medidas de combate à corrupção – erigida em metonímia da categoria criminalidade – reunidas no PL 4850/16 – (Estabelece Medidas Contra Corrupção, que tomou na Comissão Especial da Câmara instalada para o examinar o Número: 1017/16 24/08/2016-16).
Convidado pela Presidência da Comissão e pela Relatoria da proposta a expor no plenário minha posição sobre o assunto (conferir o inteiro teor do depoimento conforme as notas taquigráficas da sessão, arquivadas no Departamento de Taquigrafia e acessíveis pela WEB, e também, em Jornal Estado de Direito, minha Coluna Lido para Você, especialmente, sobre o livro de Graziela Palhares Torreão Braz), comecei por lembrar, por exemplo, que a crítica ao punitivismo é uma leitura de um sentido civilizatório, cujo roteiro, sustenta Evandro Lins e Silva, revela a história do Direito Penal como a história da contínua mobilização na direção da abolição da pena de prisão.
Num texto de Evandro (De Beccaria a Filippo Gramatica. Uma visão global da história da pena. Edição do autor, 1991), ele traz para nossa atenção uma leitura do então ministro Francisco de Assis Toledo, ex-integrante do Superior Tribunal de Justiça, que presidiu a Comissão Especial para reforma do Código Penal, segundo o qual em grave equívoco incorrem, frequentemente, a opinião pública, os responsáveis pela administração e o próprio legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais, mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o problema da criminalidade crescente. Essa concepção do direito penal é falsa porque o toma como espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias. Não percebem os que pretendem combater o crime com a só edição de leis que desconsideram o fenômeno criminal como efeito de muitas causas e penetram em um círculo vicioso invencível, no qual a própria lei penal passa, frequentemente, a operar ou como fator criminógeno ou como intolerável meio de opressão.
No depoimento que prestei junto à Comissão Especial da Câmara (PL 4850/16), lembrei, a propósito da advertência do Ministro Toledo, uma outra atitude militante nessa direção: O Prof. Moro, por exemplo — refiro-me ao Prof. Aldo Moro, primeiro ministro italiano líder da social-democracia cristã na Itália e grande penalista, que se notabilizou, ele próprio, depois, vítima da exacerbação política e sacrificado por um sequestro (Brigadas Vermelhas) seguido de assassinato político (Roma, 1978) —, mas que tinha uma leitura humanista e foi o grande corifeu do debate da descriminalização, da despenalização, sob a perspectiva de que os sistemas penais exacerbados colocam em risco aquilo que não se resolve só com a lei, mas precisa ser construído com base em processos de formação consistente do compromisso de cidadania que educa o povo.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
José Geraldo de Sousa Junior – Conforme tenho acentuado em diferentes oportunidades, ressalvadas todas as observações em contrário, uma homenagem mesmo cortês à estrutura teórica, política e ética do nosso sistema penal, não arreda compromisso com o direito de defesa, o princípio de presunção de inocência, a salvaguarda inarredável do habeas corpus e o equilíbrio da função jurisdicional e a dignidade política e ética do Direito Penal.
Sem me apegar às indicações da corrente à qual me filio que vê o direito como enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade (Direito Achado na Rua) e sem entrar no debate que envolve os limites da cultura legal, da formação dos operadores de Direito que não conseguem visualizar o jurídico para além das leis, fio-me no magistério do Papa Francisco, conforme a Bula Misericordiae Vultus, e a sua convocatória expressa para que aprendamos a ver o Direito para além das leis, procurando, na dignidade da política, englobá-la e superá-la num evento superior de libertação das estruturas iníquas que dissolvem e alienam dos sujeitos o humano que histórica e socialmente os constitui (MV n. 20).
A questão central posta pelo papa em seu discurso abre um debate ao qual não nos podemos furtar: vale a pena abrir mão dos direitos e das garantias fundamentais em nome do combate à criminalidade moderna e à criminalidade organizada? A minha resposta é taxativa, no sentido de que é preciso recuperar a real dimensão da tutela penal, o que implica, necessariamente, a restauração dos valores constitucionais capazes de assegurar a eficácia dos bens e direitos fundamentais e o núcleo irredutível de dignidade sem o que nem se realiza a Democracia, a Paz e a Justiça.
http://www.ihu.unisinos.br/594778-direitos-e-garantias-fundamentais-nao-podem-suprimidos-em-nome-do-combate-a-criminalidade-entrevista-especial-com-jose-geraldo-de-sousa-junior
Deixe uma resposta