José Martins – Meio da tarde de terça-feira (19). Formidável cena em movimento estampada na tela do twiter da @ Mission_Verdad : soldados do exército boliviano (divisão de infantaria) se unem ao movimento de nações originárias em resistência que marcham desde Oruru rumo a La Paz. E cantam : povo e soldados, juntos na luta!
Algumas horas depois chega nova notícia de que aquela coluna de povo e soldados foi metralhada a partir de helicópteros… não se sabe mais detalhes…
A possibilidade de guerra civil na Bolívia é real. Essa tendência a grandes rebeliões e à guerra civil é um fenômeno que ocorre em diferentes continentes e nações do mundo. Por enquanto, ainda se concentra e se manifesta de maneira mais clara nos Estados nacionais mais frágeis da periferia do mercado mundial.
Na América do Sul, em particular, onde diversos Estados nacionais apresentam a perspectiva real de derretimento institucional. Um derretimento político e social que, nos últimos anos havia sido desatado apenas e isoladamente na Venezuela.
Entretanto, se no decorrer destes anos passados o Estado venezuelano se enfraqueceu a cada dia, o seu governo manteve-se relativamente forte.
Até o fechamento desta edição, a burguesia militarizada e unida em torno do governo Maduro ainda resistia galhardamente à catástrofe econômica e aos pesados ataques imperialistas de Washington que não param de aumentar.
Agora, o jogo mudou. Acontece que, em pouco mais de um mês, os mesmos fundamentos da desagregação do Estado venezuelano agora incendeiam também seus bem comportados vizinhos liberais da região andina. Com novas situações políticas e sociais internas em seus vizinhos sul-americanos, a resistência do atual governo venezuelano terá que ser redobrada.
A ingovernabilidade burguesa na região andina aumentou nas últimas semanas. Continua aumentando. Generalizando. As labaredas se propagaram velozmente. Outubro começou com a dissolução do Congresso peruano pelo presidente Martín Vizcarra, seguida de uma tentativa frustrada do próprio Congresso de destituir Vizcarra.
Dias depois, no Equador, o presidente Lenín Moreno declarou estado de exceção, chegando a mudar a sede do governo de Quito para a litorânea Guayaquil depois de sucessivas manifestações lideradas por nações originárias e de uma greve geral dos trabalhadores que parou o país.
Logo foi a vez do Chile, cujo presidente, Sebastián Piñera, chegou a afirmar no início das manifestações que o país estava “em guerra”. E não é que estava? Piñera, sem querer, acertou. O vaticínio de Piñera está muito próximo de se realizar na forma altamente criativa de uma verdadeira guerra civil.
Em seguida, na última semana, uma crise aparentemente espontânea deflagrada após as eleições na Bolívia, culminou na deposição do presidente Evo Morales.
A Bolívia é agora um país sem governo. O que mantém a inacreditável “presidente autoproclamada” da Bolívia dentro do palácio são bandos militarizados – diretamente e localmente assessorados pelas “forças especiais” do Homeland Security ( Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos) – executando em todo o país chacinas sobre o povo desarmado. Ainda desarmado.
Finalmente, chega a notícia de que milhares de manifestantes marcham na Colômbia em greve geral contra governo de Iván Duque.
Sindicatos, grupos de estudantes, indígenas e ambientalistas colombianos marcharam nesta quinta (21), na capital e nas principais cidades do país, em uma greve geral para rechaçar medidas como uma reforma trabalhista e outra previdenciária que estão sendo propostas pelo governo do presidente Iván Duque.
Dezenas de milhares de pessoas foram às ruas, e houve registros de enfrentamentos com a polícia em Bogotá, Manizales e Cali, onde foi decretado toque de recolher.
Segundo as primeiras estimativas do governo colombiano, por volta das 16h desta quinta, havia cerca de duzentos e sete mil pessoas nos atos por todo o país. Os números oficiais somavam quarenta e dois civis e quarenta e sete policiais feridos, além de dez pessoas presas.
Fecha-se, assim, o arco andino de rebeliões e possíveis guerras civis. Resta ainda engrossar o cordão dos indiciados por crime lesa-pátria nos países do chamado “Mercosul” – Argentina, Paraguai, Uruguai e… Brasil. Logo deverão se apresentar, também, e ficar à disposição do julgamento de multidões populares insurgentes.
Diante dessa realidade, o mais importante a saber é o que há em comum entre essas diversas crises políticas e sociais que vêm eclodindo recentemente na América do Sul e em outras partes do mundo.
Embora os gatilhos mais pontuais e imediatos que detonaram essas recentes explosões sociais em diferentes regiões do mundo sejam mais ou menos específicos de cada país (coisas banais como aumento das passagens de transporte urbano, de combustíveis, taxa sobre whatsapp, etc.) isso não elimina o fato de que essas surpreendentes explosões operam sobre condições de fundo comuns a todos esses países.
Bem distante das inócuas explicações oficiais e da mídia imperialista, que tentam elucidar o problema, o que veremos mais abaixo, o fato é que os observadores mais atentos da realidade econômica global já podiam, desde o começo de 2011, pelo menos, diagnosticar grandes mudanças na ordem mundial.
Observava-se que, até ali, as sucessivas recuperações cíclicas da econômica global no período pós-guerra (1945) invariavelmente arrastavam quase todas as economias do mercado mundial para um novo período de expansão da produção industrial.
Com diferentes intensidades, isso ocorrera sistematicamente até o último ciclo periódico de 2003-2008. Mas, agora, no novo período de expansão, aquele sentido do movimento havia mudado. A economia crítica talvez tenha sido a primeira a anunciar alto e bom som que aquela dinâmica capitalista observada nos ciclos econômicos do pós-guerra não deveria se repetir no novo ciclo de expansão iniciado no 2º trimestre de 2009.
Anunciava-se ,então, que as economias dominadas da periferia seriam atingidas duramente. A economia política dos trabalhadores permitia à observação criteriosa do processo em curso prever, com todas as letras, que a poderosa recuperação na produção industrial que já ocorria nas economias dominantes, no grupo das sete maiores economias do mundo (G-7), não seria acompanhada, desta vez, por uma sincronizada expansão na periferia do sistema.
Assim, naqueles anos de 2011 e 2012, contrariando frontalmente a euforia de grandes instituições imperialistas globais, como FMI, Banco Mundial, OCDE, etc., que anunciavam urbi et orbi que o novo motor do crescimento mundial seriam o BRICS e outras importantes economias da periferia, a análise critica da economia antecipava com toda a ousadia possível que ocorreria exatamente o contrário, que os BRICS e a periferia se encaminhariam lentamente para a estagnação e crise.
Observava-se, também, que este travamento da produção na periferia não seria um transtorno apenas transitório e que poderia, portanto, ser revertido de uma maneira ou de outra pouco mais à frente. Na verdade, o problema deste travamento das economias dominadas da periferia – atingindo diretamente as mais industrializadas dos BRICS, México, Argentina, Turquia, etc. – ia mais além deste ciclo periódico que, neste final de 2019, ainda dá seus últimos suspiros nos EUA.
Essa substância comum de todas as rebeliões e tendência à guerra civil que se alastram atualmente de Hong Kong à Bolívia, do Irã ao Haiti, etc., tem como causa principal a insuperável desestruturação do processo de globalização, tensionado até seus limites máximos de superprodução global de capital no ultimo período de crise de 2008/2009.
Muito importante para as perspectivas de desdobramento das rebeliões sociais na América do Sul e alhures: o travamento da produção na periferia, é de aparência mais conjuntural, quer dizer, persistiria apenas no desenvolvimento do atual ciclo. Já a segunda grande mudança desestruturante da globalização é de caráter mais geral. Foi desencadeada pelo pesado choque de 2008/2009, deve permanecer por longo prazo e já modifica o próprio mercado mundial e o comércio internacional com guerras comerciais, protecionismos e outros atos beligerantes da era Trump.
Desta forma, o perfeito conhecimento desta segunda mudança – que consiste no fim do processo de globalização tal como se conhecia até o último período de crise – é a chave para se entender a primeira, quer dizer, o travamento e os atuais limites da industrialização periférica. Em particular, na totalidade da América do Sul.
Portanto, é exatamente essa mudança estrutural do modus operandi do desenvolvimento desigual e combinado do sistema imperialista global que é a substância comum das atuais explosões políticas e sociais na América do Sul e outras partes do mundo.
Note-se que aquelas observações de 2011/2012 foram feitas quando ainda se desenrolava o impreciso “boom das commodities”, entendido pela economia vulgar e pela mídia imperialista como um período em que as economias dominadas da periferia nadavam em preços elevados e crescentes volumes de exportações de produtos primários, minerais e agrícolas. Ainda não havia crise na periferia.
Só agora, neste final de 2019, depois do leite derramado, que os capitalistas e seus economistas procuram encontrar o que há em comum nas crises sociais que explodem na América do Sul. Para se salvar, precisam pensar em possíveis cenários e perspectivas da sua ingovernabilidade que só aumenta.
E encontram a crise da economia no fundo de tudo. Não poderia ser diferente. A economia, e particularmente a crise econômica, sempre acaba determinando a política. Só que, devido a seu limitadíssimo instrumental teórico de considerar apenas o caráter mercantil de uma economia abstrata, como uma circulação simples solta no ar, os ideólogos e comentaristas da mídia oficial acabam concluindo que o que há de comum entre as crises políticas sul-americanas é um singelíssimo “fim do superciclo das commodities”.
Existe alguma explicação mais popular, mais enganosa e mais comumente aceita pela opinião pública do que esta bobagem de que a atual crise política dos países dominados da América do Sul é causada pelo “fim do boom das commodities”? Mesmo os bem intencionados economistas de esquerda também repetem esse mantra da economia vulgar para não esclarecer nada sobre os infortúnios econômicos da periferia.
Esta é uma visão distorcida e absurdamente parcial do regime de produção e de circulação especificamente capitalista. Só na era do Mercantilismo pré-Adam Smith que o comércio exterior ainda protagonizava a principal função na dinâmica de economias nacionais relativamente frágeis em termos capitalistas, como as colonialistas Espanha, Portugal, Holanda e França, em menor medida.
Essa visão vulgar e distorcida da economia capitalista também se esquece, de forma flagrante, que nesta quadratura do ciclo apenas as economias dominadas da periferia sofrem de um claro processo de estagnação ou, no mínimo, de forte desaceleração da produção industrial, como no caso da China, enquanto as economias dominantes continuam expandindo, acumulando, e com reduzidas taxas de desemprego.
Eles também se esquecem que a característica mais importante do atual período de expansão global, iniciado no 2º trimestre de 2009, é um crônico processo deflacionário global, principalmente nas principais economias do mundo do G-7.
Essa deflação global atua até no Brasil, onde os economistas pararam de falar que era um grande sucesso das suas idiotas políticas fiscais de ajuste, e agora começam até a se preocupar com ela. Uma coisa que os domina. O problema é que eles não têm nenhuma explicação plausível sobre este fenômeno de impermeável compreensão pela economia vulgar e seus anacrônicos neomercantilistas. Deflação não é coisa para amador.
Portanto, a queda dos preços das commodities no presente período de expansão não é isolada no comércio internacional, mas faz parte deste movimento deflacionário global. Não é uma exclusividade das economias periféricas.
Assim, se esses economistas do sistema tivessem um mínimo de curiosidade sobre o que realmente se passa no próprio comércio exterior internacional das economias dominantes, poderiam verificar que, no decorrer do ciclo, os preços de exportação ou de importação de grandes setores industriais dos EUA, Zona do Euro, Japão e economias montadoras industriais da Ásia, caíram tanto ou mais que os preços internacionais das commodities exportadas pela periferia.
De todo modo, essa superficialidade do diagnóstico da economia vulgar tem grande utilidade política para salvar a pele das classes proprietárias e parasitas em geral que dirigem estes miseráveis países dominados da ordem imperialista.
Primeiro, porque, segundo este falso diagnóstico os capitalistas e demais parasitas do sistema não podem ser acusados de responsabilidade pela crise que levou às rebeliões sociais que tomam conta da América do Sul e alhures. Afinal, dizem eles, “ o superciclo das commodities é variável exógena [quer dizer, originada de fora do país] e está fora de controle de qualquer presidente sul-americano, não há nada que qualquer presidente da região possa fazer para afetar preços de commodities…”.
Segundo, porque a crise atual das economias periféricas, que para eles se originaria unicamente no comércio externo, seria uma monótona repetição de todas as outras ocorridas no passado na América do Sul e, assim, naturalmente, “a crise atual, com grandes instabilidades políticas, passará quando se iniciar um novo ciclo exógeno de bonança”.
No entanto, não oferecem nenhuma indicação de quando se iniciará o tão providencial “novo ciclo exógeno de bonança”. Muito menos quais serão as promessas (apenas promessas) dos presidentes da América do Sul para as famílias dos trabalhadores totalmente desprovidos de emprego e qualquer reserva para continuar esperando, com toda paciência do mundo, a chegada de alguma milagrosa variável econômica exógena, seja da China, seja lá do espaço sideral.
Também não dizem, e nem seria necessário dizer, todo mundo está vendo, quantas criminosas “intervenções técnicas” e chacinas serão executadas pelos seus governos de parasitas sobre os trabalhadores que ousarem desrespeitar o toque de recolher que deve permanecer em vigência até a chegada do salvador novo boom de commodities.
Nota bene:
Conclusões estratégicas cruciais. A tendência dos fundamentos econômicos reais comuns nas rebeliões sociais de diferentes países da América do Sul, tal como delineados acima, determinarão o rumo destas rebeliões em dois principais momentos.
No primeiro momento, no cenário mais provável de agravamento da estagnação econômica já instalada a longa data. É devido a este fenômeno que não se pode imaginar qualquer tipo de recuperação das economias da América do Sul. Principalmente nas duas maiores, Brasil e Argentina, que concentram as maiores populações, os maiores territórios e as maiores produções industriais do continente. Este cenário materializa o palco da possível (apenas possível) passagem das rebeliões atuais para guerras civis em alguns países do continente, extrapolando os Andes e penetrando nos países do Mercosul.
O segundo momento será de passagem da atual estagnação para a depressão econômica profunda e catastrófica, com rápida aceleração do desemprego da força de trabalho, falência e fechamento de grandes e médias empresas indústrias, comerciais, etc. Este segundo momento será detonado pela explosão do próximo choque econômico global, muitas vezes mais potente que o último (2008/2009). E será o palco da generalização das guerras civis e de possível (apenas possível) passagem de cada uma delas para a revolução proletária.
A forma, profundidade e magnitude de todos esses movimentos ou cenários serão confirmados unicamente, como sempre ocorreu no passado, pelos resultados da guerra de classes sociais em decisivas batalhas de fogo entre os partidários da revolução proletária internacional, de um lado, e, do outro, os partidários da conservação da civilização e do capital.
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