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Sob o céu azul da democracia

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Jorge Maia e José Martins – Na Amazônia brasileira, não é só a floresta que é queimada pelos empresários do agronegócio, dos mineradores e das madeireiras. Existem outras queimadas mais fundamentais.

Zona sul de Manaus, capital do estado do Amazonas. Madrugada de quarta-feira (30): dezessete pessoas foram assassinadas por policiais militares. A alegação foi que se tratava de uma ação para reprimir supostos grupos criminosos.

Em uma única ação, quase o número total de assassinatos cometidos até agora pelos carabineiros chilenos contra cidadãos indefesos que continuam se rebelando nas ruas de Santiago e em todo o território do Chile contra o sistema político e econômico vigente.

No anúncio pela manhã, o coronel Ayrton Norte, comandante geral da Polícia Militar no Amazonas, afirmou que um grupo de aproximadamente cinquenta pessoas estava em um caminhão-baú, a caminho de um confronto com rivais.

Disse que eram traficantes, que foram interceptados e houve troca de tiros.

Nenhum policial foi baleado, nenhum se feriu e as viaturas que atuaram na ação não têm marcas de um único tiro…

Questionado sobre o estranho fato, o coronel refutou que a PM foi recebida a tiros dentro de um beco e que marcas de munições em casas situadas no local comprovam que houve confronto com o seu batalhão.

Diz também que durante o suposto confronto no beco uma parte das vítimas teria conseguido fugir. Todos os dezessete baleados foram conduzidos ao hospital, onde foram confirmadas as mortes.

Na mesma entrevista, o comandante militar informou que, no confronto, alguns policiais tiveram escoriações pelo corpo, mas não foram baleados ou ficaram feridos gravemente.

” Os policiais tiveram que se abrigar, era um beco e os criminosos têm uma visão de tiro privilegiada, mas o tirocínio [sic] dos policiais fez com trouxéssemos esse resultado. Foi o maior confronto do Amazonas”.

Quanto ao suposto caminhão baú, citado pelo comandante da PM, a informação foi contrariada mais tarde pelo secretário da segurança pública do Amazonas, coronel Louismar Bonates. “Nós temos essa informação, mas o caminhão não foi localizado. As viaturas procuraram esse carro, mas não se tem comprovação de que era um caminhão-baú”.

Ainda não se tem informações sobre a localização do misterioso caminhão que supostamente transportara os condenados. Ou quem os transportou até o beco.

À tarde, o secretário de Segurança se pronunciou mais detalhadamente  sobre essa matança histórica. Afirmou que “a polícia não mata, a polícia intervém tecnicamente“.

Uma naturalíssima “intervenção técnica”. Sem nenhuma responsabilidade política ou social, portanto, pelo crime cometido. É assim que os empresários brasileiros agem na administração da luta de classes no país. Civilizadamente!

Matanças estilo “Carandiru”. Agora perfeitamente legalizadas. Doravante, simples procedimentos perfeitamente naturalizados, tecnificados, reconhecidos de maneira simples como “política de segurança”, “combate ao crime”, etc. Tudo dentro da lei, do Estado de direito e do céu azul ordem democrática.

Os inúmeros empreendimentos armados de “intervenções técnicas” espalhadas por todos os poros do território nacional resultaram de um longo processo civilizatório de  metamorfose da organização militar nos países da periferia do sistema imperialista.

São justamente essas atualíssimas formas democráticas e decisivamente mais eficientes de forças armadas nacionais que, antecipadamente, já se movimentam na perspectiva da inevitável guerra civil que se aproxima da totalidade da América Latina, na esteira do próximo choque periódico de superprodução do capital global.

Isso pode estar mais próximo do que se imagina. Veja-se como essa perspectiva de guerra civil no Brasil foi alimentada nas últimas semanas com novas variáveis de forte impacto sobre o cenário mais provável de insustentável governabilidade política interna.

Primo, variáveis externas. A primeira delas são as explosões de revoltas políticas e sociais em todo o mundo – de Hong Kong ao Chile, uma lista enorme de países, principalmente os frágeis Estados nacionais da periferia.

No Chile, a algumas milhas da fronteira brasileira, são muitos os sinais de situação de guerra civil e pulsão pela revolução. É o primeiro país que nesta onda de rebeliões mundiais mostra nas ruas das suas grandes cidades encorajadores ingredientes históricos deste processo de ruptura da ordem e do regime que sempre acontece no limiar das grandes crises econômicas globais.

A América do Sul entrou nas últimas semanas em processo de desintegração absoluta. A Venezuela não está mais sozinha. Agora, seu presidente Nicolás Maduro – vilipendiado durante anos pelas forças mais reacionárias do imperialismo no continente – é obrigado a aceitar a desagradável companhia dos seus colegas liberal-democratas da Cordilheira dos Andes para afundarem juntos na grande catástrofe econômica e social da ordem capitalista global.

Embora sua caudilhesca burguesia procure negar, a Argentina também é andina. Principalmente agora. E o mais importante: neste momento em que se revela para o mundo o retumbante fracasso do projeto econômico e político do festejado liberal-democrata Maurício Macri – garoto de estimação dos cavaleiros do apocalipse de Washington e adjacências – a Argentina da pátria financeira cerra fileiras com os demais colegas andinos que agora se projetam para o abismo da ingovernabilidade.

Antes mesmo destes fracassos burgueses e insurgências na América do Sul, Washington já começara a mudar, pelo menos taticamente, sua forma de intervenção em conflitos de importantes regiões do mundo, como Oriente Médio (Irã, Síria, Turquia, Iraque, etc.) e na Ásia (Coréia do Norte, Afeganistão, Índia, etc.).

Mas mudou também na América do Sul. Principalmente agora, depois da fracassada tática de enfrentamento da questão venezuelana e a consequente entrada no espaço territorial do país de Maduro de novos atores geopolíticos globais: a Rússia de Putin, com forças militares; e a China, dos oceânicos fundos soberanos, com grandes investimentos econômicos e operações comerciais.

O principal indicador destas mudanças de tática geopolítica de Washington foi a demissão de Mr. John Bolton, conselheiro nacional de segurança de Donald Trump, em 10 de setembro passado. O abominável Bolton era um pesado falcão de direita no Departamento de Estado e órgãos de “operações especiais” do governo estadunidense.

Essa demissão do principal ideólogo no governo Trump de intervenção militar direta nas relações internacionais é muito importante para a situação política interna brasileira. Bolton era, simplesmente, o grande mentor e ponto de apoio do novo governo brasileiro de milicianos dentro da Casa Branca.

Bolton visitou o Brasil em novembro do ano passado. Encontrou-se com o então presidente eleito Jair Bolsonaro na casa dele, no Rio de Janeiro. Neste encontro foram discutidos assuntos muito amplos como o comércio entre os dois países, a situação da Venezuela, relações comerciais com a China e, principalmente, a segurança imperialista continental e no Brasil.

Na ocasião, Bolton elogiou a eleição de Bolsonaro e disse que “o fato era um sinal altamente positivo para a América Latina”. Em fevereiro deste ano, o sinistro burocrata também se encontrou com o ministro de Relações Exteriores brasileiro, Ernesto Araújo, em Washington.

Tudo isso mudou. Com as recentes mudanças de intervenção de Washington em diversas áreas sensíveis da arena geopolítica global a tática política para a América do Sul também muda.

Agora, não mais apenas devido ao fracasso da política do falcão John Bolton na Venezuela e sua patética marionete Juan Guaidó, “presidente autoproclamado da Venezuela”.

Muda principalmente quando outras não tão patéticas, mas importantes marionetes de Washington também caem como um castelo de cartas de baralho: Macri, da Argentina; Moreno, do Equador; Piñera, do Chile; etc.

E como fica, então, nesta nova situação, o presidente do Brasil, a mais patética e esdruxula das marionetes de Washington? A mais patética e esdruxula não apenas na América do Sul, mas em todo o mundo e em todas as galáxias? Já são claros os sinais que já começou a perder o apoio incondicional de Trump na atual forma de Washington se posicionar na América do Sul.

Agora Boçalnaro só pode contar primordialmente com apoios políticos internos para não cair do cavalo. Como participar servilmente no acórdão das forças democráticas, como se verá abaixo.

Os empresários e demais classes dominantes brasileiras estão assustados com tudo isso. Tanto com os infortúnios de seus vizinhos democratas- liberais acuados pelo povo nas ruas e nas urnas como, também, face da mesma moeda, com as movimentações de pedras por Washington no tabuleiro da ordem imperial.

Os donos do maior país do mundo ao sul do equador já devem ter entendido este último recado geopolítico, muito mais sutil que as rebeliões. Pelo menos já devem ter sido avisadas por mensageiros de seus patrões de Washington.

Mas os problemas externos se ligam imediatamente com os internos. Os empresários brasileiros estão assustados também com o que se passa na economia interna. Ou o que não se passa, o que não acontece. A retomada que não acontece.

Observam dentro do seu país o mesmo limiar da catástrofe econômica que assola os países de seus colegas de classe na América do Sul e alhures.

A economia brasileira sofre do mesmo processo corrosivo das demais economias dominadas no mercado mundial. Sua forma de aparecimento aqui é a inabalável estagnação da produção e do crônico aumento formal e informal do desemprego de quase 40 milhões de trabalhadores.

Os últimos relatórios do IBGE sobre a produção industrial e o desemprego da força de trabalho confirmam esse corrosivo (e irreversível) processo na base material do Estado brasileiro. Isso pode derrubar qualquer vagabundo que esteja de plantão no poder.

Por isso, para tentar salvar seu pescoço, as classes dominantes brasileiras têm duas tarefas urgentes e imediatas: libertar Lula da Silva e descartar Messias Boçalnaro. Ou pelo menos enquadrar mais rigidamente este último. As duas tarefas são muito difíceis. Mas absolutamente necessárias.

Acontece que só restam às classes dominantes brasileiras dois cenários para sua relativa governabilidade: o primeiro, que elas já começam a costurar, é o “cenário argentino”.

Quer dizer, tentarão fazer uma mexida geral no recente quadro de protagonistas e forças políticas da sociedade civil e do Congresso. Um grande “acordão” das forças democráticas de direita e de esquerda e jogar com a ilusão das eleições em 2022.

Neste cenário, a iminente rebelião das massas poderia, supõem, ser abafada com a ilusão de eleições livres e democráticas. Como ocorrido, pelo menos por enquanto, na Argentina.

É para completar este “cenário argentino” que é mais que necessária para as classes dominantes brasileiras a imediata libertação de Lula, a “Cristina Kirchner” brasileira.

E negociar dentro do “acordão” já em pleno andamento com Boçalnaro e outras forças liberal-democráticas a participação do ainda prisioneiro ex-presidente no processo eleitoral: candidato ou não, vice, etc.

O segundo cenário com que os capitalistas se defrontam no Brasil é o mais complicado. E o mais criativo. É o “cenário de choque”. Depende de dois explosivos acontecimentos nos próximos trimestres e, muito importante, não depende da atuação política das classes dominantes internas.

Primeiro, a explosão econômica do choque global, iniciando-se com o afundamento da economia chinesa e espraiando-se por Berlim, Londres e, finalmente, Nova York.

Nada é inevitável no curto e médio prazo. Mas essa explosão econômica do choque global é possível, e, também, bastante provável.

Segundo acontecimento que tornaria o “cenário de choque” o mais provável, em lugar do “cenário argentino” do acordão das forças democráticas de direita e esquerda e abafamento da rebelião e lutas populares contra o regime: o não inevitável, mas também possível, e bastante provável, aprofundamento das rebeliões e enfrentamentos sociais na periferia mundial, particularmente nas fronteiras brasileiras da América do Sul. O “efeito contágio” seria inevitável.

É no ritmo e no balanço destes dois cenários principais da política brasileira que a miséria não parará de crescer; e que para abafá-las as forças democráticas nacionais e imperialistas do “acordão” pela democracia multiplicarão as “intervenções técnicas” e intensificarão sua repressão armada sobre a população trabalhadora.

A forma como vai se desenvolver nos próximos semestres e anos as lutas e guerras de classes no mundo determinará a continuidade desta naturalização do governo dos mortos no Brasil; ou, no sentido absolutamente oposto, sua abolição radical através de um decisivo processo revolucionário do proletariado internacional em ação real dentro do país.

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