Serge Halimi e Pierre Rimbert – Resgate de um fenômeno político dramático: o avanço da ultradireita, após a crise de 2008. Pobreza da maiorias. Rios de dinheiro aos bancos. Arrogância dos liberais. Paralisia da esquerda. Os ingredientes que criaram o monstro e como vencê-lo
Budapeste, 23 de maio de 2018. Vestindo uma jaqueta um pouco grande para ele e uma camisa roxa, Steve Bannon dirigiu-se a uma audiência de húngaros proeminentes: “O pavio que iluminou a revolução Trump começou em 15 de setembro às nove da manhã [em 2008, quando] o Lehman Brothers foi levado à falência”. Bannon, ex-estrategista-chefe de Donald Trump, também havia sido banqueiro de investimentos no Goldman Sachs e sabia que a crise havia atingido a Hungria com força: “As elites se libertaram, socializaram totalmente o risco. O cidadão comum conseguiu um socorro como esse”? Embora muitas de suas atividades políticas atuais tenham sido pagas por fundos de hedge, ele ataca um “socialismo para os ricos” que provocou “uma revolta realmente populista” em todo o mundo. “Em 2010, Viktor Orbán foi votado de volta ao poder na Hungria”: Orbán foi “Trump antes de Trump”.
Uma década após a tempestade financeira de 2008, o colapso econômico global e a crise da dívida pública europeia desapareceram dos terminais da Bloomberg que monitoram os sinais vitais do capitalismo. Mas suas ondas de choque amplificaram duas grandes revoltas políticas.
A primeira foi a perturbação da ordem internacional neoliberal do pós-Guerra Fria, fundada na OTAN, nas instituições financeiras ocidentais e na liberalização do comércio global. Mesmo que o vento leste ainda não tenha prevalecido sobre o oeste, como Mao prometeu, uma reconfiguração geopolítica está em andamento: quase 30 anos após a queda do Muro de Berlim, a influência do capitalismo de Estado chinês está crescendo. O futuro da economia socialista de mercado da China, impulsionado pela prosperidade de uma classe média crescente, está ligado à globalização do comércio, que danificou as bases de manufatura da maioria dos países ocidentais. Isso inclui os EUA, que Trump prometeu salvar de tal “carnificina” em seu discurso de posse.
Os choques e tremores secundários de 2008 também perturbaram a ordem política, que considerava a democracia de mercado o ponto final da história. A arrogância de tecnocratas de fala mansa em Nova York ou Bruxelas, que impuseram medidas impopulares em nome do conhecimento técnico e da modernidade, abriu caminho para políticos explosivos e conservadores. Em Washington, Varsóvia e Budapeste, Trump, Jaroslaw Kaczyński e Orbán afirmam ser tão capitalistas quanto Barack Obama, Angela Merkel, Justin Trudeau e Emmanuel Macron, mas sua marca de capitalismo é difundida por uma cultura diferente: ela é “iliberal”, nacional e autoritária, e defende os valores do interior sobre a metrópole.
Uma linha falha agora divide a classe política e é dramatizada e ampliada pela mídia, reduzindo o leque de opções políticas a dois irmãos em guerra. A direita recém-chegada ao poder em muitos países compartilha, com seus antecessores, a intenção de enriquecer os ricos. Mas procura fazê-lo explorando o sentimento que o neoliberalismo e a social-democracia inspiram na maior parte da classe trabalhadora, que é nojo misturado com raiva.
Desafios à velha ordem
A resposta à crise de 2008 expôs e eliminou a possibilidade de ignorar coisas que contradizem a pragmática santificação do “bom governo”, oriunda de políticos de centro-direita e centro-esquerda desde o colapso da URSS. Nem a globalização, nem a democracia, nem o liberalismo, emergiram da crise ilesos.
Primeiro, revelou-se que a internacionalização da economia mundial não é boa para todos os países e nem para a maioria dos assalariados no Ocidente. A eleição de Trump entronizou um novo presidente dos EUA, que há muito estava convencido de que a globalização, longe de beneficiar os EUA, acelerou seu declínio e garantiu a ascensão de seus concorrentes estratégicos. Com Trump, a proposta “America First” venceu o slogan “ganha-ganha” dos defensores da liberalização do comércio. Em uma manifestação em 4 de agosto, em Ohio, um estado industrial em que Trump conquistou uma vantagem de oito pontos sobre Hillary Clinton, ele falou sobre o enorme (e crescente) déficit comercial dos EUA: “US$ 817 bilhões por ano … culpe a China. Eles não podem acreditar que se safaram. Nós realmente reconstruímos a China, e é hora de reconstruirmos nosso próprio país agora, ok? Somente Ohio perdeu mais de 200 mil empregos na indústria desde que a China entrou na OMC. A Organização Mundial do Comércio é um desastre total. Por décadas, nossos políticos permitiram que outros países roubassem nossos empregos, saqueassem nossa riqueza e nossa economia”.
No início do século XX, o protecionismo impulsionou a ascensão industrial dos EUA e de muitos outros países. As tarifas de importação encheram os cofres públicos, uma vez que não havia imposto de renda antes da I Guerra Mundial. Em Ohio, Trump invocou William McKinley, presidente republicano (1897-1901) que mais tarde seria assassinado por um anarquista: “Ele entendeu a importância crucial das tarifas na manutenção de um país muito forte”. A Casa Branca agora recorre a tarifas sem hesitar e sem se preocupar com a OMC. Cada semana traz novas sanções contra outros Estados que Trump alvejou, incluindo aliados: Turquia, Rússia, Irã, UE, Canadá, China. Ao invocar a “segurança nacional”, ele pode dispensar a aprovação do Congresso, cujos membros permanecem apegados ao livre comércio, assim como os lobistas que financiam suas campanhas.
Empregos se vão
A opinião pública dos EUA é menos dividida sobre a China; mas aqui o consenso é claramente hostil, e não apenas por razões comerciais. A China é vista como o maior rival estratégico dos EUA. Desperta desconfiança por causa de sua força (sua economia é oito vezes maior que a da Rússia) e suas ambições expansionistas na Ásia, e porque seu modelo político autoritário desafia os EUA. O cientista político Francis Fukuyama, embora afirmando que sua teoria de 1989 sobre o triunfo irreversível e universal do capitalismo neoliberal ainda é válida, tem uma ressalva: “A China é de longe o maior desafio à narrativa do ‘fim da história’, uma vez que foi capaz de se modernizar economicamente enquanto mantinha uma ditadura … Se, no decorrer dos próximos anos, seu crescimento continuar e se mantiver como a maior potência econômica do mundo, admitirei que minha teoria foi definitivamente refutada”1. Por fim, Trump e seus adversários políticos dos EUA compartilham um terreno comum em pelo menos um ponto: ele acha que a ordem neoliberal internacional custa muito caro aos EUA, enquanto seus inimigos acreditam que o sucesso da China ameaça derrubá-la.
Um pequeno passo separa a geopolítica da política. A globalização destruiu empregos e corroeu os salários ocidentais; nos últimos 10 anos, a massa salarial dos EUA caiu de 64% do PIB para 58%, uma perda média anual de US$ 7.500 por trabalhador2.
Os trabalhadores dos EUA guinaram politicamente à direita nos últimos anos, precisamente nas regiões industriais devastadas pela concorrência chinesa. Essa mudança pode ser atribuída a fatores culturais (sexismo, racismo, cultura de armas, hostilidade ao aborto e casamento gay). Mas isso seria ignorar uma explicação econômica pelo menos igualmente convincente: o número de condados dos EUA onde mais de 25% dos trabalhadores depende do setor manufatureiro entrou em colapso entre 1992 e 2016, passando de 862 para 323; e a cota de votos entre democratas e republicanos mudou drasticamente. Os votos eram divididos quase igualmente entre os partidos – cerca de 400 municípios cada – há 25 anos; em 2016, 306 dos condados industriais restantes votaram em Trump e apenas 17 em Hillary Clinton3. A adesão à China na OMC, apoiada pelo democrata Bill Clinton, deveria acelerar a transformação da China em uma sociedade capitalista liberal. Em vez disso, deixou os trabalhadores norte-americanos enojados com a globalização, o liberalismo e os democratas.
Pouco antes do colapso do Lehman Brothers, o ex-presidente do Federal Reserve dos EUA, Alan Greenspan, explicou: “[Temos] sorte de que, graças à globalização, as decisões políticas nos EUA tenham sido amplamente substituídas pelas forças do mercado global. Segurança nacional à parte, dificilmente faz diferença quem será o próximo presidente4”. Seria difícil encontrar suporte para essa visão agora.
Na Europa Oriental, onde a expansão econômica ainda depende das exportações, qualquer questionamento da globalização deixa de fora o comércio. Mas os “homens fortes” no poder condenam a imposição de valores ocidentais pela União Européia, porque acham que essas idéias são fracas e decadentes para incentivar a imigração, a homossexualidade, o ateísmo, o feminismo, o ambientalismo e a dissolução da família. Esses homens fortes também desafiam o caráter democrático do capitalismo neoliberal, e não sem razão. Porque quando se trata de igualdade de direitos políticos e cívicos, a questão de saber se as mesmas regras se aplicam a todos foi novamente esclarecida após 2008. “Não houve processos contra ninguém nos níveis mais altos do sistema financeiro”, escreveu John Lanchester. “Compare isso com o escândalo de poupanças e empréstimos da década de 1980, no qual 1.100 foram processados5“. Como os prisioneiros franceses costumavam zombar, roube um ovo e vá para a prisão; roube um boi e vá ao Palais Bourbon.
O povo pode escolher, mas o capital decide. Líderes neoliberais de direita e esquerda, ao não cumprirem suas promessas eleitorais, tornaram credíveis as suspeitas que se seguem a quase todas as eleições. Obama, eleito para encerrar as políticas conservadoras de seus antecessores, reduziu déficits públicos, reduziu os orçamentos de assistência social e, em vez de impor a Previdência Social, insistiu que os americanos comprassem seguro médico de um cartel privado. Na França, Nicolas Sarkozy aumentou a idade da aposentadoria em dois anos, apesar de haver promitido não modificá-la; da mesma maneira, François Hollande, do Partido Socialista aprovou um pacto de estabilidade da UE, que prometera renegociar. No Reino Unido, Nick Clegg levou seus parlamentares Liberais Democratas a um governo de coalizão com os conservadores e, como vice-primeiro-ministro, aceitou o triplo das taxas de universidade que ele havia prometido abolir.
Vitória do “mundo livre”
Alguns partidos comunistas da Europa Ocidental sugeriram na década de 1970 que, se fossem levados ao poder, seria uma jornada de mão única, uma vez que o projeto de construção do socialismo, uma vez iniciado, não poderia estar sujeito aos caprichos do eleitorado. A vitória do “mundo livre” sobre a “hidra soviética” adaptou esse princípio, mas com mais astúcia: o direito ao voto não foi retirado, mas agora vem com a obrigação de confirmar as preferências das classes dominantes, sob pena de ter que se refazer o processo eleitoral. O jornalista francês Jack Dion resumiu: “Em 1992, os dinamarqueses votaram contra o Tratado de Maastricht; eles foram forçados a voltar às urnas. Em 2001, os irlandeses votaram contra o Tratado de Nice; eles foram forçados a voltar às urnas. Em 2005, franceses e holandeses votaram contra o Tratado Constitucional Europeu (ECT); ele foi imposto sob o nome de Tratado de Lisboa. Em 2008, os irlandeses votaram contra o Tratado de Lisboa; eles tiveram que votar novamente. Em 2015, 61,3% dos gregos votaram contra o plano de redução de gastos de Bruxelas, plano que lhes foi imposto mesmo assim”6.
Naquele ano, o ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, dirigindo-se a um governo de esquerda recentemente eleito em Atenas que estava constrangido a impor mais tratamento de choque neoliberal aos gregos, resumiu seu respeito pelo circo democrático: “As eleições não devem permitir uma mudança na política econômica7 Pierre Moscovici, Comissário da UE para Assuntos Econômicos e Financeiros, admitiu recentemente: “Apenas 23 pessoas e seus suplentes tomam – ou não tomam – decisões fundamentais para milhões de outras pessoas, gregos, neste caso, com base em critérios extraordinariamente técnicos, decisões que estão isentas de qualquer controle democrático. O Eurogrupo [formado por ministros das Finanças da zona do euro] não presta contas a nenhum governo, parlamento e, certamente, não ao Parlamento Europeu”8.
Esse desdém pela soberania popular, que seria autoritária e ‘iliberal’ à sua maneira, impulsiona um dos argumentos de campanha mais poderosos de políticos conservadores de ambos os lados do Atlântico. Trump e Orbán, juntamente com Kaczyński na Polônia e Matteo Salvini na Itália, levam em consideração o fim da democracia, ao contrário dos partidos de centro-esquerda e centro-direita que tentam reanimá-la sem se permitir os meios para fazê-lo. O primeiro grupo concorda com o princípio da votação majoritária, mas rejeita o resto: contrapõe o autoritarismo tecnocrático de Washington, Bruxelas e Wall Street com um estilo desavergonhado de autoritarismo nacionalista e apresenta isso como uma vitória para o povo.
A terceira contradição presente no discurso dominante dos anos anteriores, revelada pela crise, diz respeito ao papel econômico do Estado: ele pode fazer qualquer coisa, mas não para todos. Raramente esse princípio foi tão claramente demonstrado como na década passada. A sobrevivência de todo o sistema dependia dos bancos e, para salvá-los, as operações que antes haviam sido decretadas impensáveis eram realizadas em ambos os lados do Atlântico e sem oposição, sem restrições: houve maciças medidas de quantitative easing [“estímulo” econômico por meio de impressão de moeda, transferida aos grandes investidores], com nacionalizações, tratados internacionais desrespeitados e medidas especiais de políticos agindo arbitrariamente. Esse intervencionismo em larga escala revelou Estados fortes, capazes de mobilizar seu poder em um domínio do qual eles pareciam ter se retirado9.
Mas se os Estados são fortes, é principalmente para garantir uma estrutura estável para o capital. Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu (2003-11), era inflexível na obsessão de cortar os gastos sociais da Europa para reduzir os déficits públicos ao limite de 3% do PIB, mas admitiu que os compromissos financeiros assumidos pelos chefes de Estado para salvar o sistema bancário em 2008 representaram, em menos de um ano, “27% do PIB na Europa e nos EUA”10. Ao mesmo tempo, haviam criado inúmeros desempregados, milhões de desalojados por perderem suas casas, milhares de doentes jogados em hospitais com suprimentos médicos inadequados, como na Grécia. Nenhum deles teve a sorte de constituir um “risco sistêmico”. Como escreveu recentemente o historiador Adam Tooze, “a zona do euro, por meio de escolhas políticas deliberadas, levou dezenas de milhões de seus cidadãos às profundezas de uma depressão do estilo dos anos 30. Foi um dos piores desastres econômicos autoinfligidos já registrados”11.
Uma linha de arame farpado
O descrédito da classe política e a reabilitação do poder do Estado inevitavelmente abriram o caminho para um novo estilo de governo. Quando perguntado em 2010 se estava preocupado em chegar ao poder em meio à turbulência financeira global, Orbán sorriu: “Não, eu gosto do caos. Porque eu posso construir uma nova ordem a partir deste caos. Uma ordem que eu queira”12. Como Trump, os líderes conservadores da Europa Central foram capazes de consolidar a legitimidade popular de um Estado forte a serviço dos ricos. Mas, em vez de garantir direitos sociais para todos, que seriam incompatíveis com as demandas dos ricos, as autoridades públicas se afirmam fechando as fronteiras aos migrantes e se declarando garantidores da identidade cultural de cada nação. Na opinião deles, as linhas de arame farpado ao longo das fronteiras marcam o retorno do Estado.
Essa estratégia, que utiliza a demanda popular por proteção do Estado para seus próprios fins, parece estar funcionando por enquanto. As causas da crise financeira de 2008 não foram reparadas, enquanto a vida política na Itália, Hungria, Baviera e outros lugares é assombrada pela questão dos refugiados. Parte da esquerda ocidental, radical ou moderada, se alimenta das prioridades dos campos universitários dos EUA, adora desafiar a direita sobre esse assunto e faz isso há 30 anos13.
Os chefes de governo revelaram, no combate à Grande Recessão, a farsa da democracia, a força do Estado, a base altamente política da economia e o viés de classe de sua estratégia. Como resultado, sua posição tornou-se frágil, como mostra a instabilidade eleitoral que reformulou o cenário político. A maioria das eleições no Ocidente desde 2014 sugeriu que as forças tradicionais estão enfraquecendo ou se desintegrando, enquanto houve um aumento de figuras e tendências anteriormente marginais, que agora desafiam as instituições dominantes, e geralmente o fazem de lados opostos: Trump e Bernie Sanders repreendem globalização e mídia. O mesmo acontece na Europa, onde novas figuras à direita julgam o projeto europeu muito liberal em questões sociais e de imigração, enquanto novas vozes à esquerda, como o Podemos na Espanha, A França Insubmissa e o líder do Partido Trabalhista do Reino Unido, Jeremy Corbyn, criticam suas políticas de austeridade.
Uma política de inimigos
No entanto, os “homens fortes” podem contar com o apoio de parte da classe dominante, porque o objetivo deles não é pôr fim ao jogo, apenas mudar os jogadores. Orbán explicou as coisas durante um discurso significativo na Romênia, em julho de 2014: “O novo Estado que estamos construindo na Hungria é um estado iliberal, um estado não liberal.” Ao contrário do que a grande mídia costuma relatar, o objetivo de Orbán não é simplesmente substituir o multiculturalismo e a sociedade aberta pela promoção dos valores da família cristã. Ele também anunciou um plano econômico para tornar “uma nação e uma comunidade internacionalmente competitivas na grande corrida global pelas próximas décadas”. Na sua opinião, para fazer isso, “uma democracia não precisa necessariamente ser liberal. O fato de um Estado não ser liberal não o impede de ser uma democracia”. Tomando a China, a Turquia e Cingapura como seus supostos modelos, Orbán reformulou o slogan de Margaret Thatcher “Não há alternativa”, na medida em que “as sociedades que são construídas com base no princípio de organização da democracia liberal da organização estatal provavelmente serão incapazes de manter sua competitividade global nas próximas décadas14”. Este projeto apela aos líderes poloneses e tchecos e aos partidos de extrema direita na França e na Alemanha.
Os pensadores liberais, confrontados com o sucesso de seus concorrentes, perderam parte de sua arrogância e brilho. “Essa contra-revolução é impulsionada pela polarização da política doméstica, com uma política de inimigos substituindo uma política de compromisso”, escreve Michael Ignatieff, reitor da Universidade da Europa Central em Budapeste, criada pelo bilionário neoliberal George Soros. “A contra-revolução também ataca a revolução liberal e os ganhos obtidos pelas minorias. É claro que o breve momento de domínio da sociedade aberta depois de 1989 terminou agora15”. Para Ignatieff, líderes autoritários que atacam o estado de direito, a separação de poderes, a liberdade de mídia privada e os direitos das minorias estão atacando os pilares da democracia.
The Economist, a revista semanal publicada no Reino Unido pelas elites neoliberais globais, compartilha dessa opinião. Em junho de 2018, alertou para a “deterioração alarmante [da democracia] desde a crise financeira de 2007-08”, mas não atribuiu isso a enormes desigualdades de riqueza, ou à destruição de empregos industriais pelo livre comércio, ou à desconsideração dos desejos dos eleitores pelos líderes “democráticos”. Em vez disso, castigou “os homens fortes [que] subvertem a democracia”. E alegou que “juízes independentes e jornalistas barulhentos são a primeira linha de defesa da democracia”. É uma linha muito fina e frágil…
As classes dominantes aproveitaram-se por muito tempo do sistema eleitoral por causa de fatores convergentes: queda na taxa de participação da classe trabalhadora, voto tático causado pelo desgosto por “extremistas” e reivindicações dos partidos centristas de representar os interesses de ambos – classes superiores e médias. Mas os demagogos reacionários agora estão mobilizando os que antes se abstinham, a Grande Recessão tornou a vida mais difícil para a classe média e as decisões políticas dos “moderados” e do seu círculo de conselheiros inteligentes causaram, na verdade, a crise financeira do século.
A amargura dos defensores da “sociedade aberta” é agravada pelo desencanto com a utopia prometida pelas novas tecnologias. A classe dominante Vale do Silício, ligada ao Partido Democrata e até recentemente celebrada como os profeta de uma civilização liberal-libertária, construiu uma máquina de vigilância e controle social tão poderosa que o governo chinês a está copiando. A esperança de uma ágora global alimentada por conectividade para todos está em colapso. A tal ponto que alguns dos que antes confiavam no credo estão muito descontentes: “A tecnologia, através das manipulações que permite, através de notícias falsas, mas ainda mais porque transmite emoção ao invés de razão, fortalece ainda mais os cínicos e os ditadores’ ‘, protestou um colunista16.
Neste ano, o trigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim provavelmente será uma celebração um tanto sombria para os defensores do “mundo livre”. Fukuyama reconheceu o seguinte: “Muito da virada à democracia liberal nos primeiros dias, após a queda do Muro de Berlim, na verdade foi impulsionada por um tipo de elite educada e muito pró-ocidental.” Mas os menos instruídos “não compraram de fato o liberalismo, a idéia de que você poderia realmente ter uma sociedade multirracial e multiétnica, onde todos esses valores comunais tradicionais teriam que dar lugar ao casamento gay, aos imigrantes e todas essas coisas”17. Quem Fukuyama culpa por essa falha em responder ao treinamento da minoria esclarecida? Os jovens indolentes da classe média, que, ele teme, “contentam-se em sentar em casa e se felicitar por sua mente aberta e sua ausência de fanatismo … Eles só se mobilizam contra o inimigo sentando-se no terraço de um café com um mojito em suas mãos”18.
Não se pode mudar o quadro
Isso não será suficiente e nem inundará a mídia ou as redes sociais com comentários indignados, para o benefício de amigos igualmente indignados com coisas semelhantes. Obama sabe disso, e, em 17 de julho, na África do Sul, fez um discurso com uma análise detalhada, talvez das mais lúcidas das últimas décadas. Mas ele não pôde deixar de assumir a ideia fixa da esquerda neoliberal desde que adotou o modelo capitalista – uma ideia assim resumida pelo ex-primeiro-ministro italiano de centro-esquerda Paolo Gentiloni, quando a leu para Trump em janeiro de 2018 em Davos: “Você pode corrigir o quadro, mas você não pode alterá-lo”.
Obama admitiu que houve erros e ganância na globalização, o que enfraqueceu o poder dos sindicatos: Tornou-se mais fácil para o capital evitar as leis tributárias e os regulamentos dos estados-nações; ele [capital] pode simplesmente mover bilhões, trilhões de dólares com o toque de uma tecla de computador. Sua única resposta para um desafio tão assustador foi o “capitalismo inclusivo”, iluminado pela moralidade humanista dos capitalistas.
Obama não negou que a crise de 2008 e as más respostas a ela, presumivelmente incluindo a sua, encorajaram a disseminação de “uma política de medo e ressentimento e contenção”, “política de homens fortes” e a popularidade do que ele chamou de “modelo de controle autoritário da China combinado com capitalismo mercantilista, como preferível à bagunça da democracia”. Mas ele atribuiu a responsabilidade principal por esses distúrbios aos populistas, que haviam se apoderado de inseguranças e ameaçado o mundo com um retorno a uma mais velha, mais perigosa e mais brutal maneira de fazer negócios”. Essa atribuição livrou a barra das elites sociais e intelectuais, próximas a Obama, que criaram as condições da crise e freqüentemente se beneficiaram dela.
Tais análises têm muitas vantagens para os grupos que as fazem. Invocar a ameaça da ditadura faz as pessoas acreditarem que a democracia atualmente prevalece, mesmo que precise de alguns ajustes. Mais fundamentalmente, a ideia de Obama (e a idêntica de Macron) de que “duas visões muito diferentes do futuro da humanidade competem pelos corações e mentes dos cidadãos de todo o mundo” torna possível encobrir o que essas visões têm em comum, que é a modo de produção e propriedade, ou, para usar as próprias palavras de Obama, “a influência econômica desproporcional daqueles que estão no topo”. Segundo este critério, não há nada que distingua Macron de Trump, como demonstrado pelo desejo comum de reduzir os impostos sobre as receitas de investimentos após a posse.
A insistência em reduzir a vida política em um futuro próximo aos confrontos entre “democracia” e “populismo”; “abertura” e “nacionalismo”, não trará alívio para a parte crescente da classe trabalhadora que está desiludida com uma democracia que a abandonou e uma esquerda que, em todos os lugares, se transformou no partido político da classe média educada. Dez anos após a crise financeira, qualquer luta bem-sucedida contra uma “maneira brutal de fazer negócios” exige algo diferente. Para começar, precisa que se desenvolva uma força política capaz de combater simultaneamente os “tecnocratas esclarecidos” e os “bilionários ressentidos19”, para que não desempenhe um papel de apoio a nenhum dos blocos atuais, que, em seus caminhos separados, são um perigo para a humanidade.
1 Francis Fukuyama, ‘Retour sur “La Fin de l’histoire?”, Commentaire, nº 161, Paris, primavera de 2018.
2 William Galston, ‘Wage stagnation is everyone’s problem’, The Wall Street Journal, NovaYork, 14/8/2018. Sobre a destruição de postos de trabalho, veja, de Daron Acemoğlu et al, ‘Import competition and the great US employment sag of the 2000s’, Journal of Labor Economics, vol 34, no S1, Chicago, Janeiro de 2016.
3 Bob Davis e Dante Chinni, ‘America’s factory towns, once solidly blue, are now a GOP haven’, e Bob Davis e Jon Hilsenrath, ‘How the China shock, deep and swift, spurred the rise of Trump’, The Wall Street Journal, 19/7/2018 e 11/8/2016.
4 Citado em Adam Tooze, Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World, Penguin, Nova York, 2018.
5 John Lanchester, ‘After the fall’, London Review of Books, vol 40, nº13, 5/7/ 2018.
6 Jack Dion, ‘Les marchés contre les peuples’, Marianne, Paris, 1º/6/2018.
7 Yanis Varoufakis, Adults in the Room: My Battle With Europe’s Deep Establishment, Bodley Head, Londres, 2017.
8 Pierre Moscovici, Dans ce clair-obscur surgissent les monstres: Choses vues au cœur du pouvoir, Plon, Paris, 2018.
9 Ver, de Frédéric Lordon, ‘Welcome to the USA’, Le Monde Diplomatique, edição em inglês, Outurbo de 2008.
10 Jean-Claude Trichet: “Nous sommes encore dans une situation dangereuse”, Le Monde, 14/9/2013.
11 Adam Tooze, Crashed, op cit.
12 Drew Hinshaw e Marcus Walker, ‘In Orban’s Hungary, a glimpse of Europe’s demise’, The Wall Street Journal, 9/8/2018.
13 Ver, de Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, ‘La nouvelle vulgate planétaire’, Le Monde diplomatique, Maio de 2000.
14 “Prime minister Viktor Orbá’s epeech at th 25th Bályányos Summer Free University andtudents Camp”, 30/7/2014, 2010-2015.miniszterelnok.hu/.
15 Michael Ignatieff and Stefan Roch (eds),Rethinking Open Society: New Adversaries and New Opportunities, CEU Press, Budapest, 2018.
16 Eric Le Boucher, ‘Le salut par l’éthique, la démocratie, l’Europe’, L’Opinion, Paris, 9/7/2018.
17 Citado in Michael Steinberger, ‘George Soros bet big on liberal democracy. Now he fears he is losing’, The New York Times Magazine, 17/7/2018.
18 “Francis Fukuyama: ‘Il y a un risque de défaite de la démocratie’” Le Figaro Magazine, Paris, 6/4/2018.
19 Thomas Frank, ‘Four more years’, Harper’s Magazine, Abril 2018.
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