Política

O bolsonarismo e o proibicionismo se retroalimentam

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Júlio Delmanto – O governo alimenta e sustenta o proibicionismo, que alimenta e sustenta o governo, seus integrantes e sua base social. Cabe a nós, que prezamos a vida, e não o dinheiro e a morte, defender e aprofundar o legado dos avanços conquistados, independentemente de quem esteja no poder.

No que diz respeito às políticas sobre drogas, o governo do presidente Jair Bolsonaro, agora iniciando seu segundo semestre de medo e delírio em Brasília, tem aprofundado uma tendência já existente há alguns anos em nosso país: um imenso descompasso entre os avanços sociais, científicos e culturais e as políticas e iniciativas institucionais sobre o tema.

Se o antiproibicionismo – a defesa pública e organizada da mudança nas políticas de guerra às drogas – tem suas origens no Brasil no início dos anos 1980, sua consolidação se dá na virada da primeira para a segunda década dos anos 2000, com o surgimento e a ampliação da Marcha da Maconha, hoje um dos principais movimentos sociais do país. Inicialmente minúscula, desorganizada, estigmatizada, ignorada (inclusive pela esquerda) e mesmo proibida, a Marcha hoje mobiliza centenas de milhares de pessoas em dezenas de cidades do país, em atos de desobediência civil organizada. As manifestações que eram antes pequenos grupos, predominantemente brancos, masculinos e estudantis, hoje são gigantescas e diversificadas, com muita gente negra, jovem, periférica, LGBT – divergente – desobedecendo à lei injusta de forma pública e conjunta.

Esses avanços não aconteceram do nada. Foram fruto de muito trabalho, criatividade e dedicação dos ativistas, mas também de mudanças na conjuntura do debate de drogas no Brasil e no mundo. Com o proibicionismo completando seu primeiro século de resultados desastrosos, muitos países já reavaliaram suas posições e políticas sobre drogas. Pesquisas científicas com substâncias demonizadas e as teorias e iniciativas práticas do campo da redução de danos ganharam muito espaço internacionalmente, assim como cada vez mais figuras públicas “saíram do armário” em defesa do fim da guerra às drogas, mudando um pouco a percepção estigmatizada e não diversificada que se tinha dos usuários de drogas. Afinal, somos todos usuários de drogas, lícitas ou ilícitas, e não é isso que define o caráter e o valor de ninguém: cada vez mais pessoas têm percebido isso.

Junto com essas transformações mais sociais ou culturais houve também importantes medidas antiproibicionistas em diversos países, sobretudo em relação à maconha. Uruguai e Canadá já legalizaram todos os usos e a venda da planta, cercando o continente pelo Norte e pelo Sul, e mesmo nos Estados Unidos, principal idealizador e difusor global das políticas proibicionistas no começo do século XX, em 32 dos cinquenta estados se permite a maconha para fins terapêuticos, e em dez deles a Cannabis é legal para todos os fins. A legalização da maconha e o fim da guerra foram promessas da campanha presidencial vencedora do último pleito no México, e também se aproximam de virar lei na Jamaica, onde a realidade já ultrapassou a proibição há muito tempo. Outros países americanos, como Chile e Colômbia, têm avançado consideravelmente no campo da maconha para fins medicinais: em escala global, esse debate é ainda mais fértil e tem atraído o interesse não só de muita gente que tem problema de saúde e pode ter seu sofrimento diminuído, como também de empresas e investidores. Cogumelos, coca, LSD, MDMA, diversas outras plantas e substâncias têm tido sua legalidade rediscutida e seus efeitos terapêuticos estudados cientificamente.

No Brasil é possível observar essa mudança e esse avanço não só com o crescimento da Marcha da Maconha, mas também se olharmos para a visível e progressiva abertura que tem ocorrido nesse debate nos últimos anos. Uma série de novos atores e atrizes se somou ao – ou no mínimo se aproximaram do – antiproibicionismo: artistas, intelectuais, pesquisadores, políticos, partidos de esquerda e mesmo de direita, movimentos sociais, ONGs, órgãos de comunicação, médicos, advogados, religiosos, pessoas afetadas pelo sistema carcerário, pacientes ou familiares de pacientes que usam maconha, moradores de periferia… Muita gente repensou sua posição, influenciados e influenciando esse novo entendimento social sobre uso de drogas que tem se consolidado, mesmo que ainda estejamos num país majoritariamente conservador.

Hoje em dia é cada vez mais difícil encontrar alguém que defenda que o consumo de álcool é menos potencialmente danoso que o de maconha, ou que uma criança merece ter centenas de convulsões diárias por seu remédio ser proveniente de uma planta proibida, ou mesmo que “combater” maconha e cocaína tem ajudado em alguma coisa na violência e na corrupção, e a avalanche de informações propiciada e difundida pelas redes sociais só tem tornado essa bola de neve mais irreversível. Anteriormente proibido, o debate sobre drogas hoje é feito livremente em cada vez mais lugares, e o caso das associações de pacientes que distribuem e mesmo produzem sua própria maconha para uso terapêutico é um exemplo fantástico de como será – e de como já é! – um contexto não proibicionista e inclusive não mercadológico de circulação de drogas.

No entanto, como dito anteriormente, há um grande descompasso entre esses avanços e a institucionalidade política brasileira – como, aliás, me parece acontecer em praticamente todos os setores. Se nos últimos dez anos, aproximadamente, temos visto essas marcantes mudanças em âmbito nacional e internacional, as pouquíssimas conquistas que aconteceram nas leis e políticas nos últimos anos foram bastante tímidas. Concentraram-se sobretudo no campo da maconha terapêutica e da redução de danos, e em geral são medidas parciais, que aconteceram sem apoio dos governos, ou mesmo contra eles.

E mais: além de tímidas, essas conquistas no momento estão na mira do governo federal, que busca não só anulá-las, como também realizar novos retrocessos. A Anvisa, responsável por regulamentar o (urgente!) uso medicinal da maconha, tem sido cercada e ameaçada a todo momento pelo ministro Osmar Terra, representante maior do proibicionismo no governo; a redução de danos é vista como inimiga da abstinência e das comunidades terapêuticas, prioridades dos atuais mandatários do país; e a descriminalização da posse de drogas para consumo pessoal, que está com julgamento suspenso desde 2015 no STF, foi barrada (ou supostamente adiada) depois do vergonhoso acordo (ou “pacto”, como anunciado pelos próprios envolvidos) feito entre Bolsonaro, Rodrigo Maia e Dias Toffoli, representantes máximos de poderes que na teoria deveriam ser independentes.

Ao mesmo tempo que os pequenos avanços foram barrados, estão sendo implementados retrocessos em um cenário que parecia impossível de piorar. No dia em que completou cem dias de “gestão”, em abril, o presidente assinou o decreto da “Nova política de drogas”, que de nova tem muito pouco. Entre os pontos previstos, e polêmicos, estão o veto à redução de danos e verbas e incentivos para as comunidades terapêuticas tratarem supostos dependentes. No mês seguinte foi aprovado, em ritmo expresso por medo da possível descriminalização no STF, que acabaria adiada, um projeto de lei do então deputado e agora ministro Osmar Terra, que prevê o aumento da pena mínima para tráfico de cinco para oito anos no caso de suposto envolvimento com organizações criminosas. Uma campanha antidrogas pessimamente elaborada e mudanças no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) também foram feitas pelo governo nesse seu primeiro semestre – que já pareceu infinito.

Esses dois pontos – o estímulo, o financiamento e a não fiscalização das comunidades terapêuticas e o aumento da pena mínima para tráfico – certamente trarão impactos graves para a já gravíssima situação dos supostos dependentes, muitas vezes tratados como presos ou até mesmo trabalhadores escravizados, e do sistema carcerário, altamente seletivo, racista e corrupto. Dos cerca de 800 mil presos atualmente no país, aproximadamente 300 mil estão tendo seus direitos cerceados e vivendo em condições indignas por conta de supostas violações à lei de drogas, a enorme maioria negros, jovens e pobres – a tendência é que esse número aumente com a mudança, cenário que pioraria a níveis inimagináveis se posteriormente fosse aprovado o “pacote anticrime” proposto pelo ministro Sérgio Moro, hoje felizmente quase engavetado, junto com a reputação do ex-juiz.

Governo é o maior maximizador de danos

Esses retrocessos, no entanto, não me parecem ser a discussão central no tema das drogas na atual conjuntura, mesmo que o enfoque principal da análise aqui seja o governo federal, a política institucional. Isso porque, para mim, o maior risco atual no que diz respeito às políticas de drogas e aos direitos humanos não é nenhuma das ações citadas anteriormente: é o próprio governo, como um todo. Se o Estado brasileiro sempre foi o maior agente da guerra às drogas, do encarceramento, do genocídio etc., ele atualmente está sendo comandado de uma forma ainda mais violenta, corrupta e irresponsável.

Isso não só pelo que o grupo que está no governo defende e apregoa, mas também, e talvez principalmente, por suas origens e bases de sustentação política e econômica. Há fortes indícios de que a família Bolsonaro seja intimamente ligada às chamadas milícias do Rio de Janeiro, organizações essas que são altamente conectadas com a militarização e com a guerra às drogas. Além de venderem drogas nos territórios que controlam e terem, portanto, interesse econômico na manutenção da proibição, as milícias têm outros interesses articulados à guerra, como tráfico de armas, extorsões e controle territorial. Além disso, elas são formadas por policiais e ex-policiais, e todos sabemos como corrupção e proibição são praticamente sinônimos – se a última acabasse, diminuiriam muito os lucros provenientes da primeira. A dificuldade de elucidação do caso Marielle Franco mostra como esses grupos também estão muito conectados com a justiça e com a política.

Além da família do presidente, desses seus filhos esquisitos e dos milicianos, há no governo e em torno dele uma série de outros grupos e interesses que querem e precisam que a proibição e a guerra continuem. A mais óbvia é a indústria oficial das armas e também seus comerciantes extraoficiais, como o PM Ronnie Lessa, suspeito de ser o assassino material de Marielle e que teve 117 fuzis apreendidos na casa de um amigo. Antes de se mudar para um presídio no Rio Grande do Norte, Lessa morava no mesmo condomínio do presidente Bolsonaro. Para os traficantes e para as empresas produtoras de armas, a questão é a mesma: quanto mais guerra, mais vendas, para todos os lados do conflito. Não é coincidência nenhuma que uma das primeiras medidas desse governo tenha sido desregulamentar a venda de armas, o que causou imediato boom das ações das empresas produtoras de armas nas Bolsas de Valores. A maconha, que nunca matou ninguém, é proibida em nome da vida. Já as armas…

Quem também tem fortíssimos interesses econômicos na proibição é o lobby das comunidades terapêuticas, já qualificado por alguns pesquisadores como uma possível “indústria da internação”. Ligadas aos setores religiosos em geral privilegiados pelo atual governo, essas instituições foram fortalecidas desde os governos petistas e recebem constantes e inúmeras denúncias de violações aos direitos humanos e à reforma antimanicomial. A enorme maioria delas não oferece profissionais qualificados, projetos de tratamento e muitas vezes nem mesmo liberdade aos internos; há casos comprovados de tortura, castigos físicos e mortes. A fiscalização historicamente é muito pequena, quando existe, e, com a “nova” política de drogas, a tendência é que a disputa pelos recursos agora mais abundantes se intensifique – consequentemente aumentará também a demanda por internar pessoas. Sabemos quem pagará a conta. Na dúvida, podemos assistir ao filme Bicho de sete cabeças, infelizmente ainda atual em muitos aspectos.

Milicianos, indústria das armas e da segurança, traficantes de armas, religiosos gestores de comunidades terapêuticas, policiais e militares (39 kg!) corruptos: esses setores sustentam tanto o governo quanto a proibição, por motivos sobretudo econômicos. Há ainda os interesses morais, os “empresários morais” de que falava Howard Becker. Nesse caso, a convergência entre o chamado “bolsonarismo” e o proibicionismo é absoluta: a liberdade ao corpo, em qualquer de seus aspectos, causa horror aos evangélicos mais fundamentalistas, terraplanistas, olavistas, golpistas, militares, xenófobos, youtubers de extrema direita, incels, misóginos e outras vertentes malucas que formam o chamado “núcleo ideológico” do governo. Desde sua presença em cultos e celebrações até a promessa de nomear um ministro evangélico para o STF, Bolsonaro tem demonstrado priorizar o eleitorado religioso conservador, para o qual a pauta das drogas, e dos costumes em geral, tem grande importância.

Assim, não há surpresa nenhuma no fato de o governo estar privilegiando a guerra e a militarização no que diz respeito às políticas de drogas. Estranho seria se fosse diferente. Como diz um amigo meu, gatos não voam. O governo alimenta e sustenta o proibicionismo, que alimenta e sustenta o governo, seus integrantes e sua base social. Cabe a nós, que prezamos a vida, e não o dinheiro e a morte, defender e aprofundar o legado dos avanços conquistados, independentemente de quem esteja no poder. Afinal, esses avanços foram conseguidos não graças a nenhum governo, e sim à base de muita luta, feita desde baixo. Os efeitos dessa luta, dessa desobediência, dessa legalização cotidiana que se espalha há muitos anos, são sentidos em qualquer quebrada ou canto da cidade. Mesmo que simples canetadas não possam destruí-los ou revertê-los assim tão facilmente, é bom ficarmos muito atentos, até porque, como foi dito, os avanços foram pequenos – o fim do antiproibicionismo é a busca da liberdade (e o meio também!).

Num momento em que qualquer tipo de mudança progressista em matéria de políticas públicas é algo impensável, acho importante valorizar esse outro lado, do que já foi conquistado e dificilmente será revertido. O caminho para a mudança passa por aí, por aprofundar essa aposta na transformação desde baixo, que garantirá que a mudança na lei seja efetiva, seja inevitável. E não só, pois a busca da mudança de mentalidade é um trabalho cotidiano e social para além das leis – que já vem sendo feito e precisa ser protegido, preservado e ampliado. A proibição não é total, não funciona plenamente nem geográfica nem temporalmente. Em muitos ambientes, contextos e momentos já vivemos a legalização, o antiproibicionismo, com a violência e o autoritarismo passando longe de nossas decisões e práticas. É preciso aprofundar isso e acabar com essa guerra que afeta tanta gente em benefício de tão poucos. A ganância e a violência deles são muito grandes: só não são maiores do que a necessidade de superá-las.

https://diplomatique.org.br/o-bolsonarismo-e-o-proibicionismo-se-retroalimentam/

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