Denise Carreira e Roberto Catelli – Para especialistas, os 100 dias de governo é marcado por afronta aos marcos de direitos humanos, desprezo pela ciência e ataque explícito às universidades brasileiras.
Não é tarefa fácil avaliar os primeiros cem dias do governo de Jair Bolsonaro no campo da educação. A dificuldade, entretanto, não se relaciona com a complexidade das propostas educacionais formuladas, mas com a ausência de qualquer direcionamento para a política educacional que busque concretizar os marcos legais e enfrentar os desafios estruturais da educação brasileira.
Com relação ao Plano Nacional de Educação (PNE), lei 13.005 aprovada em 2014 – que representou um esforço suprapartidário e estabeleceu metas para os próximos dez anos para que o Brasil avance na garantia do direito à educação de qualidade – a situação é de total abandono.
A substituição do Ministro Ricardo Vélez por Abraham Weintraub não indica a mudança dessa rota: muito pelo contrário, mostra que ela poderá ser aprofundada pelo atual governo. Além de reafirmar o discurso ultraconservador do seu antecessor – em especial, o compromisso com a descabida “guerra cultural contra o marxismo e à ideologia de gênero” nas escolas – Weintraub é vinculado ao grupo ultraliberal do governo Bolsonaro que defende mais cortes de recursos das políticas sociais e o fim das vinculações constitucionais para saúde e educação pública.
As vinculações constitucionais estabelecem o patamar mínimo de recursos que municípios, estados e União devem investir em educação e saúde públicas. A proposta de desvinculação total dos recursos dessas áreas – proposta pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes – associada aos efeitos perversos do corte de recursos gerados pela Emenda Constitucional (2016) do governo Temer, colocará em colapso o frágil financiamento educacional, precarizando ainda mais a condição das profissionais de educação e das escolas públicas do país.
Além disso, enterrará as possibilidades da construção do novo Fundeb (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica) representar alguma esperança em um contexto de drásticas medidas econômicas de austeridade, denunciadas internacionalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Apesar das inúmeras confusões, das polêmicas públicas e das disputas internas no Ministério entre grupos ultraconservadores (entre militares e olavistas, por exemplo), é necessário não menosprezar o governo Bolsonaro: há um movimento em curso na gestão educacional comprometido com a desconstrução ampla e profunda das políticas educacionais como direito humano.
Esse movimento vem se caracterizando por três frentes: o desmonte institucional de políticas e de órgãos educacionais, sobretudo daqueles que tratam do enfrentamento das desigualdades educacionais; a promoção de ações e programas com forte carga ideológica ultraconservadora, como as escolas militarizadas, a defesa das propostas do movimento Escola Sem Partido, da educação domiciliar, do ensino religioso confessional em escolas públicas e de mudanças curriculares de viés autoritário; e o sufocamento do financiamento educacional, garantindo as condições para o avanço dos processos de privatização da educação pública, em especial, da educação básica, atualmente provida em cerca de 80% pelo Estado.
Destaca-se também como uma característica de gestão educacional do governo Bolsonaro o profundo desprezo por diagnósticos, pela produção de informações, por pesquisas científicas, da qual o tratamento dado ao Instituto Nacional de Pesquisa Educacional (INEP) é dramaticamente revelador. Além disso, vale destacar que até o momento a gestão do MEC havia se negado sistematicamente a se reunir com as Confederações Nacionais das Trabalhadoras e Trabalhadores em Educação, representantes legítimas de milhões de profissionais que atuam nas escolas do país.
Diante da perspectiva de aprofundamento do arrocho salarial para uma categoria já tão desvalorizada e da crescente precarização das condições de trabalho nas escolas em realidades cada vez mais desiguais, o novo Ministro da Educação acena para o professorado com a solução autoritária de recrudescimento da repressão aos estudantes que entrarem em conflito com os profissionais da escola e até com a criminalização das famílias desses alunos, sugerindo uma maior presença da polícia como mediadora dos conflitos escolares, em explícito descumprimento da legislação educacional e do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente.
Cem dias: da polêmica midiática à desconstrução planejada dos avanços
O primeiro ato do governo foi a nomeação de um ministro da educação, o colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, que tinha como sua maior chancela a indicação de seu nome por Olavo de Carvalho, figura emblemática do governo Bolsonaro. Vélez não acumula currículo que atesta sua competência na área, nem experiência na política pública. A composição inicial do Ministério, incluindo suas secretarias e instituições foi nomear militares, discípulos de Olavo de Carvalho e alguns poucos nomes com alguma experiência técnica na área para compor uma equipe que só poderia causar desconfiança, dada sua pouca afinidade com a enorme tarefa que lhe era atribuída.
Um dos primeiros anúncios do novo governo foi o fechamento da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), que teve importante papel nos governos Lula e Dilma atuando em agendas conflitivas, marcadas por profundas desigualdades na garantia do direito à educação, entre elas, o enfrentamento do racismo, da LGBTfobia e a construção de políticas voltadas para comunidades quilombolas, indígenas e do campo, além daquelas voltadas para pessoas encarceradas e para adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas.
A SECADI era a secretaria na qual estavam postos os debates sobre a igualdade de gênero e se abrigava o Programa Brasil Alfabetizado (PBA) que chegou a atender 1,5 milhões de pessoas analfabetas e buscou alavancar a educação de jovens e adultos no país. Tudo isto foi desmontado no dia 2 de janeiro, quando ainda muitos dos novos gestores do MEC sequer haviam sido indicados.
Além da SECADI, o novo governo extinguiu também a Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino (SASE), responsável por prestar assistência técnica e dar apoio aos municípios no que se refere ao monitoramento e avaliação do processo de implementação dos planos de educação.
No lugar da estrutura anterior do MEC, foram instituídas cinco secretarias que sugeriram possíveis rumos que o governo parecia navegar. Em substituição à SECADI, surgiu a Secretaria de Alfabetização e a Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação. A primeira resgatou a proposta de uso do superado método fônico para alfabetização, julgando que os métodos construtivistas ou com foco no letramento seriam “doutrinadores”. Visão destacada em fala do secretário Carlos Nadalim, divulgada em vídeo na internet no qual afirma considerar que tais métodos têm uma “preocupação exagerada com a construção de uma sociedade igualitária, democrática e pluralista, em formar leitores críticos, engajados e conscientes”.
Ou seja, condenando a doutrinação política, a Secretaria estabelece um critério ideológico para definir um método de alfabetização ignorando o fato que o processo de alfabetização, como bem explicou Magda Soares em entrevista, não depende apenas de um bom método. Segundo ela: “O grande equívoco na área de Alfabetização é que, historicamente, sempre se considerou que alfabetização era uma questão de método” (Nova Escola, 10/1/2019). Mais do que isso, a Secretaria de Alfabetização se propõe a redefinir um plano de alfabetização, mas não conseguiu sequer estabelecer as diferenças entre a alfabetização de crianças e adultos.
Vale mencionar ainda a criação da Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares, que busca estimular a militarização das escolas para ampliar a qualidade e segurança da educação. Essa parece ser quase a única proposta para tratar da questão da qualidade.
Entretanto, é necessário saber se o MEC vai implementar escolas civis-militares nos mesmos padrões das escolas federais com este perfil, pois nas escolas militares federais há carreira diferenciada para os professores, exame de ingresso e condições particulares de realizar o trabalho pedagógico. Não é de se admirar que obtenham melhores notas nas avaliações nacionais: além de serem extremamente seletivas na escolha dos estudantes com o melhor desempenho nos exames de ingresso, o suposto sucesso não está em ser militar, mas de oferecer condições materiais mais adequadas para que o trabalho pedagógico seja realizado.
Passados dois meses de governo, no mês de março, ocorreram quinze demissões do alto escalão do Ministério, incluindo o Secretário Executivo e o presidente do INEP. As demissões ocorreram em meio a disputas internas que opunham olavistas a militares e entravam em conflito com o próprio ministro. Disputas internas de poder que pouco se relacionam com os desafios educacionais do país.
Mas para além desses conflitos, que roubam a cena pública, segue a desconstrução organizada das conquistas educacionais das últimas décadas: no final de março, articulada com a área econômica do governo Bolsonaro, o Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão de assessoramento do MEC, revogou o parecer que estabelecia as bases do Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e do Custo Aluno Qualidade (CAQ).
Previsto legalmente, mas nunca regulamentado, o Custo Aluno Qualidade é um mecanismo que representa quanto o Brasil deve investir para dar um salto na educação pública. Com a revogação do parecer do CNE, documento normativo fruto da pressão da sociedade civil e que tem como base estudo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o governo fragiliza ainda mais o Plano Nacional de Educação e sinaliza novos ataques ao financiamento da educação pública.
Nessa perspectiva, temas como a reforma do Ensino Médio, a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a formação de professores, o Programa Nacional do Livro Didático ficaram fora da agenda, enquanto os novos líderes do ministério alardeavam contra o marxismo cultural, o globalismo cultural e a ideologia de gênero, em um discurso ideológico que oculta a realidade, que faz uso de problemas que nem mesmo existem na realidade educacional para fazer valer uma ação política que só tem como finalidade ocupar o poder, manter a lógica eleitoral de combate ao inimigo e desconstruir as conquistas educacionais da sociedade brasileira das últimas décadas.
Diante deste terrível quadro – e da afronta deste governo aos marcos de direitos humanos, do desprezo pela ciência e do ataque explícito às universidades brasileiras – parece não tão absurdo o risco de que o MEC possa rever os materiais didáticos na perspectiva de que afirmem que a terra é plana, que excluam a teoria da evolução das espécies, que considerem o nazismo uma ideologia da esquerda e que o golpe de 1964 não existiu e deve ser comemorado no Brasil como um episódio redentor da Nação.
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