Política

“Na reorganização do neoliberalismo, a extrema-direita apresentou um projeto. E as esquerdas?”

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Gabriel Brito – Jair Bol­so­naro as­sumiu a pre­si­dência da Re­pú­blica e seus pri­meiros dias de man­dato deixam claro que sua agenda po­lí­tica é uma ra­di­ca­li­zação da­quela exe­cu­tada por Temer. Na pri­meira en­tre­vista de 2019, o Cor­reio da Ci­da­dania con­versou com o so­ció­logo do tra­balho Ri­cardo An­tunes, que acaba de pu­blicar O pri­vi­légio da ser­vidão – o novo pro­le­ta­riado de ser­viços na era di­gital (Edi­tora Boi­tempo), e faz uma dura aná­lise do atual es­tágio po­lí­tico e ide­o­ló­gico sobre os se­tores que de­ve­riam fazer o con­tra­ponto ao pro­jeto de uma di­reita de evi­dentes traços au­to­ri­tá­rios e ex­clu­dentes.

Na con­versa, An­tunes aponta para o ca­minho de des­truição total do mundo do tra­balho ofer­tado pelo novo go­verno, o que mal foi dis­far­çado em sua cam­panha elei­toral. E cons­tata que apesar da forte vo­tação o PT já não tem con­di­ções de li­derar as lutas so­ciais no Brasil. “O par­tido terá de ab­dicar de qual­quer he­ge­mo­nismo nas es­querdas. Po­derá ser um par­tido de centro-es­querda par­la­mentar, capaz de votar contra pro­jetos que ata­quem di­reitos do mundo do tra­balho e se­tores vul­ne­rá­veis da po­pu­lação. Mas nem com isso de­vemos ter ilu­sões. Que nin­guém es­pere que o par­la­mento seja a bar­reira contra a tra­gédia anun­ciada de Bol­so­naro”.

Tal como aponta em seu livro, An­tunes afirma rei­te­ra­da­mente as novas fa­cetas dos mo­vi­mentos que se opõem ao ca­pi­ta­lismo e suas po­lí­ticas econô­micas, re­or­ga­ni­zadas em es­cala global. “Pre­ci­samos de or­ga­ni­zação so­cial e po­lí­tica autô­noma, de base e classe, for­mada com es­pí­rito an­ti­ca­pi­ta­lista, coisa que o PT no poder ajudou a obli­terar. As es­querdas so­ciais pre­cisam jogar sua energia na com­bi­nação das lutas de re­sis­tência em todos os es­paços pos­sí­veis com a busca de um pro­jeto autô­nomo de eman­ci­pação so­cial e po­lí­tica. O ca­len­dário das opo­si­ções não pode mais ser o ca­len­dário das elei­ções”.

Sobre este re­or­de­na­mento mun­dial, o so­ció­logo ex­plica: “es­tamos num pe­ríodo de tripé de­vas­tador: he­ge­monia pro­fun­da­mente des­tru­tiva do ca­pital fi­nan­ceiro, uma prag­má­tica ne­o­li­beral que não tem mais ne­nhum li­mite e uma re­es­tru­tu­ração pro­du­tiva do ca­pital que por sinal é per­ma­nente. O mundo in­for­ma­ci­onal-di­gital sob co­mando do ca­pital fi­nan­ceiro sabe que não pode eli­minar o tra­balho de­fi­ni­ti­va­mente. Mas sabe que pode de­pau­perá-lo e só re­mu­nerar quando um tra­balho for re­a­li­zado, sem des­canso, fé­rias, fim de se­mana, nada. Por isso chamo tais tra­ba­lha­dores e tra­ba­lha­doras de novos pro­le­tá­rios da era di­gital”.

No en­tanto, é en­fá­tico em afirmar que tal mo­delo de ca­pi­ta­lismo ine­vi­ta­vel­mente pro­du­zirá uma grande massa de re­be­lados, dado o re­bai­xa­mento das con­di­ções de vida e enorme con­cen­tração de renda que ga­ran­tirá a seus donos.

A en­tre­vista com­pleta pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que es­perar do go­verno de Jair Bol­so­naro e seu perfil de ex­trema-di­reita, re­fle­tido, para além da his­tri­ô­nica fi­gura pre­si­den­cial, na equipe de tra­balho? O que es­perar para o chão so­cial bra­si­leiro em 2019?

Ri­cardo An­tunes: O que pode ser dito de ime­diato é que en­tramos num tempo de com­pleta im­pre­vi­si­bi­li­dade. Sa­bemos que Bol­so­naro surfa num mo­mento de as­censão da ex­trema-di­reita. Não fa­lamos da di­reita ne­o­li­beral tra­di­ci­onal, do­mi­nante em es­pe­cial nos países de ca­pi­ta­lismo avan­çado de forma quase in­ques­ti­o­nável, com suas va­ri­antes ne­o­li­beral pura ou so­cial-li­beral, como no fundo são os so­ci­a­listas eu­ro­peus.

O Bol­so­naro surfa nesta onda, que, à di­fe­rença do ne­o­li­be­ra­lismo, tem uma cons­trução menos glo­ba­lista e mais na­ci­onal. O Trump é fun­dador deste pro­jeto. Mas uma coisa é ter um pro­jeto de re­po­sição dos EUA no mundo global, outra coisa é o papel do Brasil. As di­fe­renças são fun­dantes: um é o centro, o im­pério do ca­pi­ta­lismo, o outro é um país da pe­ri­feria, im­por­tante, mas um país que de­pende do co­mércio com a China, os EUA, a Eu­ropa, a Ar­gen­tina. Isso torna tal go­verno im­pre­vi­sível.

Po­li­ti­ca­mente, pa­rece não haver dú­vida de que será ex­tre­ma­mente con­ser­vador, pro­to­fas­cista e que em seu ideário po­demos ca­rac­te­rizar como pro­fun­da­mente an­ti­po­pular, an­tis­so­cial, an­ti­classe tra­ba­lha­dora. Bol­so­naro deixou claro que vai avançar na in­for­ma­li­dade do mundo do tra­balho. Seu pro­jeto de car­teira de tra­balho verde ama­rela é ul­tra­or­to­doxo no sen­tido ne­o­li­beral.

Por­tanto, para o co­ti­diano das pes­soas só po­demos es­perar o pior pos­sível. Mas ele deixou isso claro em sua cam­panha elei­toral, anun­ciou o des­monte com­pleto da classe tra­ba­lha­dora, coisa que Temer em seus dois anos já fez am­pla­mente, com a Re­forma Tra­ba­lhista, a lei da ter­cei­ri­zação total e a per­missão da ter­cei­ri­zação ampla e quase ir­res­trita no setor pú­blico.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que es­perar dessa com­bi­nação de li­be­ra­lismo econô­mico ex­tre­mado e um go­verno de traços pro­to­fas­cistas?

Ri­cardo An­tunes: O go­verno, para além de seu “mito”, já mostra em seus pri­meiros passos ser ei­vado de ten­sões e con­tra­di­ções em seu in­te­rior. Traz uma po­lí­tica or­to­doxa capaz de fazer a Mar­garet That­cher re­virar-se em seu tú­mulo. De um lado traz uma li­de­rança que surfou em cima de uma onda ul­tra­con­ser­va­dora e de um enorme de­sen­canto da po­pu­lação com a fa­lência do pro­jeto de con­ci­li­ação de classes do PT.

Teve um “líder” que soube se uti­lizar das cam­pa­nhas an­ti­cor­rupção pra con­verter o PT no ini­migo cen­tral do país como se este fosse o cri­ador da cor­rupção e que par­ti­cipou de apenas um de­bate te­le­vi­sivo, logo no co­meço da cam­panha. E mesmo quando es­tava em con­di­ções de apa­recer nos de­bates não o fez, fa­zendo sua va­cui­dade po­lí­tica não aflorar com a in­ten­si­dade que já aflora, como na sua in­ca­pa­ci­dade de in­dicar al­guma equação para ques­tões de eco­nomia, saúde, edu­cação…

O vazio do seu ideário é com­pen­sado pelo ódio às es­querdas, aos mo­vi­mentos po­pu­lares, aos LGBTs, aos in­dí­genas, às mu­lheres, aos ne­gros… O ele­mento com­pli­cador é a cunha mi­litar muito forte dentro do go­verno. O vice, ao que pa­rece, foi uma im­po­sição das forças ar­madas, um sinal de ser pre­ciso al­guém de con­fi­ança para dar co­me­di­mento e mesmo um con­tra­ponto ao tom in­tem­pes­tivo ao “líder” vi­to­rioso nas urnas.

É o ne­o­li­be­ra­lismo le­vado ao li­mite, com mais pri­va­ti­zação, mais con­cen­tração de renda, mais en­ri­que­ci­mento das bur­gue­sias, mais em­po­bre­ci­mento das classes tra­ba­lha­doras, mais in­for­ma­li­dade do tra­balho, coisa que Bol­so­naro in­siste em de­fender…

Dessa forma, a com­bi­nação co­lo­cada pela per­gunta apenas nos faz an­tever a mul­ti­pli­cação das pos­si­bi­li­dades e tons do de­sastre econô­mico, so­cial e po­lí­tico.

Cor­reio da Ci­da­dania: Já fa­lamos em ou­tras en­tre­vistas sobre a di­fi­cul­dade de re­co­locar o PT como grande li­de­rança das lutas so­ciais e da classe tra­ba­lha­dora de­pois de seus go­vernos e op­ções po­lí­ticas e econô­micas. Mas também se trata da maior força de opo­sição, par­tido que mais elegeu de­pu­tados. Como você ima­gina a volta do PT à opo­sição, com todo seu des­gaste entre se­tores po­pu­lares e também nas alas pro­gres­sistas da so­ci­e­dade? 

Ri­cardo An­tunes: O pro­jeto de con­ci­li­ação de classes do PT faliu. A me­dida do Bol­so­naro de fe­char o Mi­nis­tério do Tra­balho é mais do que em­ble­má­tica. O Mi­nis­tério do Tra­balho foi criado em 1930 por Ge­túlio para ser um or­ga­nismo a ser­viço da con­ci­li­ação de classe. Ao ex­tingui-lo, Bol­so­naro mostra que não vem fazer a con­ci­li­ação de classes, mas dar con­ti­nui­dade à con­trar­re­vo­lução pre­ven­tiva ini­ciada por Temer, que agora entra em pe­ríodo mais crí­tico, com a ra­di­ca­li­zação da Re­forma Tra­ba­lhista e a Re­forma da Pre­vi­dência que visa jogar a po­pu­lação pobre na im­pre­vi­dência.

O PT re­cu­perou certo fô­lego por conta do des­monte ul­tra­li­beral do go­verno Temer. O par­tido saiu do go­verno Dilma sem força para fazer se­quer uma greve de um dia por conta do im­pe­a­ch­ment ou contra a prisão de seu prin­cipal líder, Lula. Mesmo assim, se for­ta­leceu na reta final da eleição, entre ou­tras coisas porque a po­pu­lação tem sua sen­si­bi­li­dade. É muito evi­dente: o go­verno do PT foi em seu con­junto de­sa­len­tador para a classe tra­ba­lha­dora, mas o go­verno Temer foi de­vas­tador. Assim, o PT ainda ga­nhou um voto de con­fi­ança de muita gente. Até fi­guras como Jo­a­quim Bar­bosa e Ro­drigo Janot de­cla­raram voto em Haddad, um amplo leque de ten­dên­cias o fi­zeram, abs­traindo o fato de o can­di­dato ser do PT, di­ante do fato de no outro lado estar o ini­migo maior, com cheiro de fas­cismo.

Mas as elei­ções já foram. Como fica o PT agora? Terá de fazer um acerto de contas pro­fundo con­sigo mesmo, com o fenô­meno do lu­lismo e sua prag­má­tica. Isto é, aquela prag­má­tica de um par­tido que sempre es­pera a de­cisão final de seu líder, en­ten­dido pela mai­oria de seus mi­li­tantes como um gênio po­lí­tico in­fa­lível. O PT só terá chance de se re­cu­perar se fizer uma pro­funda au­to­crí­tica em re­lação a este ponto. E não vejo con­di­ções para isso dentro do par­tido, es­pe­ci­al­mente porque sua cú­pula é pre­do­mi­nante e vis­ce­ral­mente lu­lista. Faço uma aná­lise do PT que temos pela frente, in­de­pen­den­te­mente das ad­ver­si­dades que o Lula pa­dece na prisão, con­de­nado sem provas ma­te­riais, como é de con­senso con­si­de­rável por todo um pen­sa­mento ju­rí­dico ra­zo­a­vel­mente in­de­pen­dente.

A dis­cussão a res­peito da cor­rupção, que foi in­tensa nos go­vernos do PT, é vital. Se não houver uma au­to­crí­tica em re­lação a isso… Até porque o par­tido nasceu com uma certa con­cepção ude­nista, dado que a UDN tinha um traço le­ve­mente li­beral-de­mo­crá­tico. Havia a ideia de que o PT seria capaz de acabar com a cor­rupção bra­si­leira, mas ter­minou no mesmo la­maçal. Dito isso, o que o ju­di­ciário fez em re­lação ao Lula é outra questão.

De todo modo, o re­sul­tado é que o PT não é mais líder, por de­fi­nição ou von­tade di­vina de seu líder, da opo­sição de es­querda no Brasil. As opo­si­ções de es­querda terão de se rein­ventar, e por fora do lu­lismo. Uma coisa é de­fender um jul­ga­mento até úl­tima ins­tância e sua con­de­nação a de­pender de provas ma­te­riais con­cretas. Outra coisa é pra­ticar uma forma de lu­lismo mesmo fora do PT, que di­fi­culta e im­pede o nas­ci­mento de uma es­querda so­cial e po­lí­tica de perfil mais autô­nomo, ide­o­lo­gi­ca­mente mais con­sis­tente e que per­ceba que o de­safio fun­da­mental do pró­ximo pe­ríodo é com­binar uma re­sis­tência de perfil an­ti­fas­cista com um pro­jeto de classe. Como já vemos na Hun­gria, onde houve uma ma­ni­fes­tação muito im­por­tante contra o go­verno ne­o­fas­cista e xe­no­fó­bico que visa à de­vas­tação da le­gis­lação tra­ba­lhista do país.

Não que o PT deva ser ex­cluído de tudo. Para al­gumas ques­tões as es­querdas devem ca­mi­nhar juntas, quando houver uni­dade bá­sica. Se é contra a re­forma tra­ba­lhista do Temer e sua ra­di­ca­li­zação pelo go­verno que entra, de de­vas­tação in­te­gral do mundo do tra­balho, deve ca­mi­nhar junta. De­vemos ter a CUT e o PT em ma­ni­fes­tação de opo­sição deste tipo. Até por ser im­por­tante di­fe­ren­ciar um pouco a cú­pula do­mi­nante do PT de am­plos se­tores do par­tido, que estão de fato des­con­tentes. Não ima­gino que fi­guras como Tarso Genro e Olívio Dutra, com todas as di­fe­renças mar­cadas pelo tempo, mas ainda li­de­ranças muito res­pei­tadas, não te­nham ne­nhuma in­sa­tis­fação com a tra­gédia de­sen­vol­vida pelo PT no úl­timo pe­ríodo.

Existe um mo­saico de mo­vi­mentos so­ciais: MST, MTST, dos in­dí­genas, das mu­lheres, dos LGBT, dos ne­gros, da ju­ven­tude, da pe­ri­feria, uma mi­ríade de mo­vi­mentos so­ciais pro­fun­da­mente des­con­tentes com a tra­gédia dessa con­trar­re­vo­lução pre­ven­tiva e o que im­ple­men­tará a partir de ja­neiro.

O PT devia fazer o que tanto co­brou do PCB em re­lação a 1964 (a partir da­quele golpe mi­litar abriu-se um de­bate nas es­querdas, muitos saíram do PCB e foram para a luta ar­mada etc.). Em poucas pa­la­vras, o de­bate era: o PCB co­meteu erros “de es­querda” ou re­petiu um traço cons­tante desde 1945, isto é, des­vios “de di­reita”, de co­la­bo­ra­ci­o­nismo e con­ci­li­ação de classes?

Além desta au­to­crí­tica fun­da­mental, o PT não vai poder res­surgir das cinzas sem pelo menos ou­tras duas au­to­crí­ticas fun­da­men­tais: a ex­ces­siva ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade e apego ao ca­len­dário elei­toral e o dis­tan­ci­a­mento das classes tra­ba­lha­doras, como ficou claro no im­pe­a­ch­ment, quando ne­nhuma re­ação, nem por uma hora, pode ser re­a­li­zada. A ponto de a prisão de Lula no Sin­di­cato dos Me­ta­lúr­gicos não ser mar­cada pela pre­sença de ope­rá­rios, de gente que foi a base de sus­ten­tação do PT e Lula desde os anos 70. Es­tavam pre­sentes o MTST, MST e ou­tros mo­vi­mentos so­ciais. A base me­ta­lúr­gica não fez se­quer uma greve ou re­sis­tência contra a prisão de Lula, o que mostra o imenso des­con­ten­ta­mento em re­lação a seu líder do pas­sado.

O PT deve de­fi­ni­ti­va­mente aban­donar a ideia de que é o epi­centro da opo­sição bra­si­leira. O par­tido e Lula não me­recem mais esse posto há muito tempo. Não li­deram a classe tra­ba­lha­dora mais. Ao longo da his­tória me­receu, como nos anos 80, quando o par­tido li­de­rava as lutas so­ciais, pois tinha como apoio um tripé es­pe­ta­cular: a classe ope­rária in­dus­trial, am­plos se­tores do cam­pe­si­nato e am­plos se­tores da classe média as­sa­la­riada. Por todas as mo­di­fi­ca­ções que tais se­tores so­freram ao longo de 30 anos, o par­tido já não tem o apoio ma­jo­ri­tário de ne­nhum deles. O par­tido teve vo­tação ex­pres­siva, mas tratou-se de um voto contra o Bol­so­naro. Teve vo­tação ex­pres­siva entre se­tores que ga­nham um ou dois sa­lá­rios e em es­pe­cial no Nor­deste.

No meu livro e vá­rios ar­tigos an­te­ri­ores, aponto que a base de apoio do go­verno Lula mudou entre o pri­meiro e o se­gundo go­vernos. Na me­dida em que perdeu apoio na massa sin­di­cal­mente or­ga­ni­zada pela CUT e po­li­ti­ca­mente di­ri­gida pelo PT, ga­nhou apoio das massas atin­gidas pelo Bolsa Fa­mília, que em­bora fosse um tipo de as­sis­ten­ci­a­lismo apoiado até pelo Banco Mun­dial, pelos traços de forte mi­se­ra­bi­li­dade de seus be­ne­fi­ciá­rios foi im­por­tante. Neste mo­mento o Nor­deste se tornou um pilar de sus­ten­tação do lu­lismo. Mas a classe tra­ba­lha­dora in­dus­trial do Su­deste e do Sul passou a se afastar. A classe tra­ba­lha­dora nor­des­tina ainda ficou ao lado do PT, por mo­tivos com­pre­en­sí­veis, pois vi­ven­ciou o des­gaste com­pleto que foi a de­vas­tação de Temer.

O par­tido terá de ab­dicar de qual­quer he­ge­mo­nismo nas es­querdas. Po­derá ser um par­tido de centro-es­querda par­la­mentar, capaz de votar contra pro­jetos que ata­quem di­reitos do mundo do tra­balho e se­tores vul­ne­rá­veis da po­pu­lação. Mas nem com isso de­vemos ter ilu­sões. Que nin­guém es­pere que o par­la­mento seja a bar­reira contra a tra­gédia anun­ciada de Bol­so­naro. Pre­ci­samos de or­ga­ni­zação so­cial e po­lí­tica autô­noma, de base e classe, for­mada com es­pí­rito an­ti­ca­pi­ta­lista, coisa que o PT no poder ajudou a obli­terar. As es­querdas so­ciais pre­cisam jogar sua energia na com­bi­nação das lutas de re­sis­tência em todos os es­paços pos­sí­veis com a busca de um pro­jeto autô­nomo de eman­ci­pação so­cial e po­lí­tica. O ca­len­dário das opo­si­ções não pode mais ser o ca­len­dário das elei­ções.

Uma lição das re­be­liões de junho que as es­querdas de­ve­riam ter apren­dido é que a po­pu­lação não crê na ins­ti­tu­ci­o­na­li­dade, em ne­nhuma de suas ex­pres­sões. Na­tu­ral­mente, não quero dizer que tais ins­tru­mentos não te­nham ne­nhuma im­por­tância. Vimos que o STF agiu po­si­ti­va­mente ao im­pedir ata­ques da ex­trema-di­reita ins­ti­tu­ci­onal às uni­ver­si­dades e suas ex­pres­sões in­ternas. Aliás, até a di­ta­dura era mais cau­te­losa em fazer isso…

De todo modo, as re­be­liões de 2013 mos­traram que os novos ca­mi­nhos são mais ple­bis­ci­tá­rios, ho­ri­zon­tais, ex­tra­par­la­men­tares, anti-ins­ti­tu­ci­o­nais e não jogam todas as suas ener­gias no ju­di­ciário. O ju­di­ciário está in­ca­pa­ci­tado para tanto… Ele re­flete o plano da nor­ma­ti­vi­dade e as os­ci­la­ções das con­fron­ta­ções da vida so­cial, que vêm das ruas.

Cor­reio da Ci­da­dania: Pelas de­cla­ra­ções de suas prin­ci­pais li­de­ranças não ha­verá essa tão pro­pa­lada au­to­crí­tica. Aliás, falar nisso chega a pa­recer uma fuga da re­a­li­dade.

Ri­cardo An­tunes: Com tris­teza, digo que não vejo a menor pos­si­bi­li­dade desta au­to­crí­tica do PT. Mas muitos se­tores de base do par­tido, e até da di­reção, menos com­pro­me­tidos com a trá­gica po­lí­tica que levou ao fim de seus go­vernos, par­ti­ci­parão de novos em­bates.

É pre­ciso ex­tirpar o mito de Lula como grande líder e herói da classe tra­ba­lha­dora, o in­fa­lível e in­su­pe­rável. Neste sen­tido, o lu­lismo, tal como foi o pres­tismo no PCB, e como todos os mo­vi­mentos por de­mais ca­na­li­zados na fi­gura de seu líder, a exemplo também da Ve­ne­zuela, pa­decem do mesmo mal. O cha­vismo, que tantas mu­danças po­si­tivas gerou na Ve­ne­zuela, não foi capaz de formar li­de­ranças que subs­ti­tuíssem Chávez. No Brasil, esse líder não tem mais con­di­ções de ca­pi­ta­near a luta por uma outra so­ci­e­dade. Não vi até hoje uma única frase do Lula a ques­ti­onar “onde nós er­ramos?”. Antes de ser preso, Lula dizia em seus pa­lan­ques que queria de novo unir o país e acabar com o clima de tensão. Em que mundo ele vive? Num país pau­tado pelo ra­cismo, o es­cra­vismo e a su­pe­rex­plo­ração do tra­balho, como podem se juntar forças tão dís­pares? Esse não e o país da con­ci­li­ação, é o país da con­tra­dição vis­ceral.

É im­por­tante lem­brar que a ex­trema di­reita po­li­tizou o de­bate elei­toral. Bol­so­naro po­li­tizou o de­bate e ao con­trário do que se falou da Dilma não co­meteu o cha­mado es­te­li­o­nato elei­toral. Usou sua re­tó­rica contra a es­querda, disse que pre­ci­sava re­baixar di­reitos do tra­balho, de­fender em­pre­sá­rios, fazer pri­va­ti­za­ções, jogou toda a culpa do PT.

E a es­querda con­se­guiu mi­ni­ma­mente ofe­recer um pro­jeto de es­pe­rança em di­reção de outra so­ci­e­dade? Eu não vi em ne­nhum pro­grama ou de­bate. Não vi nin­guém dizer que o de­safio é re­cu­perar uma vida do­tada de sen­tido e um outro mundo, não mais ca­pi­ta­lista. Não vi, salvo um ou outro grupo mi­no­ri­tário. Nin­guém de­fendeu um so­ci­a­lismo de novo tipo, capaz de acabar com a ex­plo­ração vis­ceral do tra­balho, com a pro­pri­e­dade pri­vada e in­te­lec­tual, que do­mina ri­quezas cri­adas pela hu­ma­ni­dade, a exemplo das co­mu­ni­dades in­dí­genas que veem grandes la­bo­ra­tó­rios se apro­pri­arem de co­nhe­ci­mentos se­cu­lares.

A ex­trema-di­reita está apre­sen­tando um pro­jeto. A es­querda não. Lembro de uma vez que es­tive em Roma, há uns 15 anos, quando vi um cartaz que me im­pres­si­onou muito: “nós somos a ver­da­deira di­reita”. Quinze anos atrás ou mais. Na Itália a di­reita está di­zendo que ela é a ver­da­deira, porque a di­reita sempre apa­recia como li­beral, li­beral-con­ser­va­dora, de­mo­crata-con­ser­va­dora, mas não como fas­cista e pro­to­fas­cista aberta, como vemos hoje no Brasil. Por que a es­querda não po­li­tiza o de­bate com ra­di­ca­li­dade? Não estou fa­lando de dou­tri­na­rismo. Mas o que en­sinam as co­mu­ni­dades in­dí­genas? A vida co­munal. O que o ma­jes­toso Qui­lombo dos Pal­mares, talvez o pri­meiro ex­pe­ri­mento de eman­ci­pação so­cial no Brasil, en­sinou? A vida co­munal. O que en­sinou a re­be­lião do Haiti, a pri­meira dos es­cravos e bru­tal­mente re­pri­mida? A pos­si­bi­li­dade da vida co­munal, com as pro­pri­e­dades co­le­tivas pre­va­le­cendo sobre a pri­vada.

O pro­blema é que na ânsia de ter mais votos con­si­dera-se ne­ces­sário ca­li­brar e mo­derar de­mais o dis­curso, para ade­quar-se a uma onda an­ti­es­querda de am­pli­tude global, sob he­ge­monia fi­nan­ceira, dado que as po­pu­la­ções so­frem um in­cul­ca­mento muito pro­fundo contra tais ideias. Mas nunca é in­te­gral. A res­posta vem dos le­vantes, como as greves de Jirau e Santo Antônio, as greves do co­meço desta dé­cada que foram muito im­por­tantes na his­tória re­cente do país. Es­tamos ins­tados a pensar outro modo de vida.

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Cor­reio da Ci­da­dania: Re­la­ci­o­nando a en­tre­vista com seu livro, que fala da pre­ca­ri­zação do tra­balho em es­cala to­ta­li­zante, temos a he­rança do go­verno Temer que avançou neste sen­tido com leis em favor da ter­cei­ri­zação e a en­trada de um go­verno que visa re­forçar tais pro­jetos. Con­si­de­rando ainda as po­li­ticas econô­micas que se anun­ciam, o que es­perar em termos de em­prego e renda para a po­pu­lação bra­si­leira de modo geral?

Ri­cardo An­tunes: Quando olhamos os países eu­ro­peus que ti­veram vi­gência da so­ci­al­de­mo­cracia, vimos que con­se­guiram le­gis­la­ções de pro­teção so­cial e do tra­balho muito po­si­tivas, es­cola e saúde pú­blicas, ní­veis de ci­vi­li­dade do ca­pi­ta­lismo que ja­mais exis­tiram na pe­ri­feria. Se vemos que o má­ximo de ci­vi­li­dade que ti­vemos na pe­ri­feria, no caso bra­si­leiro, foi com Ge­túlio Vargas, sendo que a classe tra­ba­lha­dora rural es­tava ex­cluída da CLT…

Mas acon­tece que es­tamos num pe­ríodo de tripé de­vas­tador: he­ge­monia pro­fun­da­mente des­tru­tiva do ca­pital fi­nan­ceiro, uma prag­má­tica ne­o­li­beral que não tem mais ne­nhum li­mite e uma re­es­tru­tu­ração pro­du­tiva do ca­pital que por sinal é per­ma­nente. Nasceu na Ale­manha, mas se es­pa­lhou no mundo avan­çado a in­dús­tria 4.0. Em poucas pa­la­vras sig­ni­fica que as cor­po­ra­ções se de­voram. O fu­turo de uma de­pende da ab­sorção que ela fará de sua con­cor­rência.

Exemplo: 20 anos atrás havia uma dis­puta cer­rada entre Brahma e An­tarc­tica. Hoje são a mesma, e são uma em­presa muito maior do que a soma dessas duas marcas. Havia também uma dis­puta in­tensa entre Per­digão e Sadia. Hoje são a mesma, a Brasil Foods. No centro global as fu­sões se am­pliam ex­po­nen­ci­al­mente. Pa­ra­le­la­mente, con­si­de­rando que as cor­po­ra­ções co­mandam a vida pro­du­tiva e, por­tanto, as ca­deias pro­du­tivas de va­lores, a tec­no­logia é vital, es­pe­ci­al­mente quando o setor de ser­viços passou a in­te­ressar di­re­ta­mente aos ca­pi­tais.

Quando da re­vo­lução in­glesa, no sé­culo 18, a in­dús­tria foi o novo, ainda que hou­vesse in­dús­tria antes. Entre aspas a in­dús­tria vem desde as co­mu­ni­dades pri­mi­tivas quando ao se aquecer mi­né­rios se con­se­guia a forma de metal. Mas a re­vo­lução in­glesa levou a ló­gica ca­pi­ta­lista à in­dús­tria e a um pro­cesso de trans­for­mação ca­pi­ta­lista do mundo rural no sé­culo 19, que passou ao sé­culo 20. In­dús­tria e campo eram os se­tores prin­ci­pais da cri­ação de valor e lucro, da ex­tração da mais valia. Nesses sé­culos o setor de ser­viços, em­bora ti­vesse nú­cleos pri­va­ti­zados, era es­sen­ci­al­mente pú­blico: es­tradas, te­le­fonia, saúde, edu­cação, pre­vi­dência, cár­cere…

Mas com a crise dos anos 70, es­tru­tural e muito pro­funda, tanto do ca­pi­ta­lismo como de seu sis­tema, houve uma in­ten­si­fi­cação à ené­sima po­tência da tec­no­logia de in­for­mação e co­mu­ni­cação no mundo das em­presas, em par­ti­cular do setor de ser­viços. E a in­tro­dução do mundo maquí­nico, da ló­gica in­for­ma­ci­onal e di­gital, trans­formou pro­fun­da­mente a pro­dução ca­pi­ta­lista. Hoje uma grande em­presa car­rega o nome de uma marca, mas ter­cei­riza toda sua pro­dução. O Wall­mart tem uma ca­deia vas­tís­sima, que co­meça no sul da China. A Amazon tem um mundo es­par­ra­mado de em­presas que ofe­recem tra­ba­lhos de ponta na área di­gital, tem ex­pe­ri­mentos como lojas e shop­pings onde a pessoa entra, é iden­ti­fi­cada di­gi­tal­mente, pega um pro­duto, sai e seu preço cai di­reto na conta ban­cária. Tudo sem con­tato com ne­nhum tra­ba­lhador. Uber e as­se­me­lhados pra­ticam uma es­cra­vi­zação do(a) tra­ba­lhador(a) que usa seu carro, paga se­guro, ga­so­lina e que numa cor­rida vê 20%, 30% do pa­ga­mento ime­di­a­ta­mente re­co­lhido pelo apli­ca­tivo.

Como cito no livro, tem o con­trato de zero hora na In­gla­terra, que abarca pra­ti­ca­mente todas as pro­fis­sões de ser­viços, mé­dicos, ad­vo­gados, téc­nicos, cui­da­dores, lim­peza, do­més­ticas, jar­di­neiros… Eles ficam à dis­po­sição de seus apli­ca­tivos, que os chamam para prestar ser­viços. E só re­cebem quando há uma cha­mada para fazer um ser­viço. Se ficar 3 ou 4 dias es­pe­rando uma cha­mada que não vem, não re­cebe. As em­presas de tais áreas foram as que mais co­me­mo­raram a apro­vação desta con­trar­re­forma tra­ba­lhista do Temer, em favor do tra­balho in­ter­mi­tente, porque podem fazer os tra­ba­lha­dores es­pe­rarem, seja de sá­bado, do­mingo, sem pagá-los. E quando cha­mados ga­nham por duas ou três horas. Se de re­pente chove e o mo­vi­mento de um fast food fica abaixo do es­pe­rado a re­mu­ne­ração pode ser in­su­fi­ci­ente até pra con­dução.

Cor­reio da Ci­da­dania: Esse as­pecto não se choca fron­tal­mente com o dis­curso ufa­nista em favor do tra­balho dito autô­nomo, do em­pre­en­de­do­rismo, con­di­ções que su­pos­ta­mente tor­na­riam o tra­ba­lhador mais livre?

Ri­cardo An­tunes: O mundo in­for­ma­ci­onal-di­gital sob co­mando do ca­pital fi­nan­ceiro sabe que não pode eli­minar o tra­balho de­fi­ni­ti­va­mente. Mas sabe que pode de­pau­perá-lo e só re­mu­nerar quando um tra­balho for re­a­li­zado, sem des­canso, fé­rias, fim de se­mana, nada. Por isso chamo tais tra­ba­lha­dores e tra­ba­lha­doras de novos pro­le­tá­rios da era di­gital. E daí vem o tí­tulo do livro, a partir do livro de Al­bert Camus, o Pri­meiro Homem, quando em li­nhas ge­rais ele diz que só os aci­dentes de tra­balho, em em­presas que dão se­guro saúde, dão a chance de fé­rias e lazer ao tra­ba­lhador. Só quando eles se aci­dentam podem ter tais be­ne­fí­cios. O de­sem­prego passa a ser o maior medo e o tra­balho, que de­veria ser uma vir­tude, acaba sendo um ca­minho para a morte, fo­to­grafia que re­sulta no “Pri­vi­légio da ser­vidão”. Isto é, os jo­vens que hoje têm 20, 25 anos, se ti­verem sorte, serão servos, sub­me­tidos e do­mi­nados em seu tra­balho. O as­sa­la­riado é o es­cravo da era ca­pi­ta­lista, como dizia Marx.

Os jo­vens de hoje, qua­li­fi­cados ou não, na­tivos ou imi­grantes, se ti­verem sorte terão o pri­vi­légio de serem servos. Caso con­trário, es­tarão no de­sem­prego, que será muito maior no fu­turo. Em suma, a in­dús­tria 4.0 sig­ni­fica di­gi­ta­li­zação, au­to­ma­ti­zação, in­tro­dução da in­te­li­gência ar­ti­fi­cial, da ló­gica dos al­go­ritmos, todo esse mo­nu­mental avanço de tec­no­logia da co­mu­ni­cação e in­for­mação, de tal modo que todas as ati­vi­dades vão eli­minar o tra­balho vivo, in­ten­si­ficar o tra­balho re­a­li­zado pelo mundo di­gital (“a in­ternet das coisas”, como dizem), em qual­quer setor, es­colas, bancos etc. No mundo pro­du­tivo, seja na in­dús­tria, agri­cul­tura, suas in­ter­sec­ções e ser­viços, tudo que for pos­sível di­gi­ta­lizar, com­pu­ta­do­rizar, au­to­ma­tizar e eli­minar tra­balho hu­mano será va­lido.

A per­gunta que não quer calar é: o que vai acon­tecer com a massa de tra­ba­lha­dores(as)? Te­remos um pe­queno grupo de tra­ba­lha­dores(as) muito qua­li­fi­cados(as) na ponta do sis­tema, para re­a­lizar as ati­vi­dades hu­manas ab­so­lu­ta­mente in­subs­ti­tuí­veis ao menos até o pre­sente, mas toda a massa de tra­ba­lhos in­ter­me­diá­rios, desde as ge­rên­cias e su­per­vi­sões até a parte mais exe­cu­tora, ope­rária, todos jo­co­sa­mente cha­mados de “co­la­bo­ra­dores”, vai perder seu em­prego. Assim te­remos uma si­tu­ação na qual os bol­sões de de­sem­pre­gados au­men­tarão.

O Brasil tem pra­ti­ca­mente 20 mi­lhões de de­sem­pre­gados. Mais um con­junto que faz bico, tra­balho in­formal, autô­nomos sem for­ma­li­zação, à margem muitas vezes do sis­tema de pre­vi­dência. Con­se­quen­te­mente, a pre­vi­dência ar­re­ca­dará menos, vão dizer que ela é de­fi­ci­tária por culpa dos tra­ba­lha­dores, quando é o grande ca­pital que ar­re­benta a pre­vi­dência pú­blica em favor da pre­vi­dência pri­vada, fa­vo­rável aos bancos com seu mo­delo de ca­pi­ta­li­zação.

Cor­reio da Ci­da­dania: É um ce­nário pro­fun­da­mente des­tru­tivo. 

Ri­cardo An­tunes: Tem um ele­mento im­por­tante que des­taco no livro: essa massa imensa de tra­ba­lha­dores e tra­ba­lha­doras na China, Índia, na Eu­ropa, EUA, Ca­nadá, Brasil, Ar­gen­tina etc. etc. etc., enfim, massa imensa de jo­vens in­for­ma­li­zados, ter­cei­ri­zados, in­ter­mi­tentes, al­guns com poucos di­reitos, ou­tros com burla com­pleta, se re­bela. Re­cen­te­mente houve greves dos tra­ba­lha­dores de fast food nos EUA e das tra­ba­lha­doras da lim­peza dos tri­bu­nais de jus­tiça de Lon­dres. Há greves fre­quentes em es­cri­tó­rios de te­le­mar­ke­ting.

Pre­ci­samos es­tudar, com­pre­ender e ana­lisar o modo de ser da­quilo que chamo de nova mor­fo­logia do tra­balho, do pro­le­ta­riado de ser­viços, que não é a classe média. O que ca­rac­te­riza a classe média é a pre­va­lência do tra­balho in­te­lec­tual, o que não é o caso das ca­te­go­rias aqui ci­tadas. Há uma massa de jo­vens bem for­mados em Por­tugal, Grécia, que vai tra­ba­lhar em ho­téis, res­tau­rantes. Vi em Ve­neza jo­vens for­mados em en­ge­nharia abrindo e fe­chando as portas do va­po­retto (as barcas que trans­portam as pes­soas pelos ca­nais) por 500 euros por mês, seis dias por se­mana, du­rante 5 ou 6 meses, em um con­trato só, de­pois subs­ti­tuído por outro jovem.

É claro que tal con­tin­gente de pro­le­tá­rios é di­fe­rente em sua sub­je­ti­vi­dade quando com­pa­rado ao an­tigo ope­rário in­dus­trial, um me­ta­lúr­gico, um tra­ba­lhador rural. Mas o setor de ser­viços se tornou al­ta­mente pro­du­tivo, ge­rador de lucro e mais valor. Duas pas­sa­gens im­por­tantes co­lo­cadas por Marx em O Ca­pital: para gerar valor e mais valia a pro­dução do tra­balho não pre­cisa ser ma­te­ri­al­mente pro­du­tiva; ela pode ser vista no es­paço da cir­cu­lação, a exemplo da in­dús­tria do trans­porte. Esta não produz nada, mas trans­porta pes­soas e mer­ca­do­rias. É um eixo vital da ge­ração de lucro. É pre­ciso en­tender o pro­cesso de pro­dução que existe dentro de ati­vi­dades de cir­cu­lação. E tal ati­vi­dade é vital porque quanto mais tempo se leva a cir­cular, menor sua pro­du­ti­vi­dade. Quanto mais rá­pido o tempo de cir­cu­lação se apro­xima de zero, maior o tempo de pro­dução.

Não é di­fícil com­pre­ender que o mundo das tec­no­lo­gias da co­mu­ni­cação e in­for­mação ex­pan­didas em todas as áreas passou a ser um setor vital na es­fera de cir­cu­lação do ca­pital. Nossos gostos são co­nhe­cidos pelos sites e redes so­ciais. Se pro­cu­ramos uma pas­sagem para a França, na mesma hora re­ce­bemos no com­pu­tador in­for­ma­ções de novas pas­sa­gens a um preço mais ra­zoável. Sig­ni­fica que o ca­pital quer ex­trair mais valor em todos os es­paços em todas as formas de pro­dução no sen­tido lato. ´

Por que o go­verno Bol­so­naro de­fende o en­sino a dis­tância? Porque o pro­fessor, ga­nhando 15 reais por aula, pode deixar de dar aula para 20 ou 30 alunos e po­deria dar para 20 mil ou 30 mil. Quando isso ocorre, aquele pro­fessor que foi vital para a aula pre­sen­cial, numa es­cola pri­vada, passa a ser ge­rador de um lucro muito po­ten­ci­a­li­zado.

Tudo isso cria um pro­le­ta­riado de novo tipo que luta, se re­bela, e é di­fe­rente do an­te­rior. Dizem na Eu­ropa “nós somos a parte mais pre­cária da classe tra­ba­lha­dora: somos jo­vens, temos qua­li­fi­cação, ho­mens, mu­lheres, na­tivos, imi­grantes, brancos, ne­gros, ama­relos, mas não temos di­reitos ad­qui­ridos como tinha a an­tiga classe tra­ba­lha­dora”. Vi muita gente na Itália a dizer, “o sin­di­cato re­pre­senta vocês, a velha classe tra­ba­lha­dora. Te­remos de criar os nossos, porque o de vocês não nos re­pre­senta”. O sin­di­ca­lismo, es­pe­ci­al­mente o eu­ropeu, muito mo­de­rado e tra­di­ci­onal, aprendeu a re­pre­sentar sua classe no de­senho so­ci­al­de­mo­crá­tico. Mas hoje a so­ci­al­de­mo­cracia é mais ficção que re­a­li­dade.

Os di­reitos estão sendo eli­mi­nados país por país. Era ini­ma­gi­nável na Itália, que em 1970 fez um có­digo do tra­balho al­ta­mente avan­çado, vermos, como es­ta­be­le­cido em 2017, um sis­tema de pa­ga­mentos por vou­cher. O tra­ba­lhador faz, por exemplo, 100 horas men­sais e pega um vou­cher por hora de tra­balho, para de­pois trocar cada um deles pelo equi­va­lente à hora do sa­lário mí­nimo ita­liano. O em­pre­sário diz que pode ar­rumar mais horas de tra­balho, mas não pelo mesmo valor. Cria-se um sis­tema de pa­ga­mento di­reto. E se o tra­ba­lhador não aceita há uma massa imensa de imi­grantes e po­bres de­ses­pe­rados por tais postos.

Es­tamos di­ante da cri­ação ili­mi­tada de massas de jo­vens dis­po­ní­veis para o tra­balho que não têm mais o re­gime de pro­teção, no qual há di­reitos como fé­rias, saúde, des­canso etc. É um mo­vi­mento duplo e con­tra­di­tório: pre­ca­ri­zação ili­mi­tada, na qual o in­ter­mi­tente global é em­ble­má­tico, e uma massa que se re­bela, está lu­tando para aprender a criar suas novas formas de as­so­ci­a­ti­vismo, como se vê em Milão, em Na­poli, em Por­tugal, a exemplo do mo­vi­mento Pre­cari@s e In­fle­xí­veis. Neste país há o re­cibo verde como modo de pa­ga­mento, re­cibo que mede seu pa­ga­mento de acordo com a pro­dução no tempo de tra­balho.

Cor­reio da Ci­da­dania: Desse modo, fal­taria re­co­nhecer que uma das bre­chas apro­vei­tadas pela ex­trema-di­reita na atual con­jun­tura foi uma in­ter­pre­tação de­fi­ci­ente da atual for­mação das classes tra­ba­lha­doras?

Ri­cardo An­tunes: As teses sobre o fim da classe tra­ba­lha­dora estão se­pul­tadas. É uma classe que se am­plia. Mas como é muito seg­men­tada, he­te­ro­gênea, com dis­tin­ções de classe, ge­ração, gê­nero, etnia, é evi­dente que há uma dú­vida sobre quais or­ga­nismos vão dar sen­tido de per­ten­ci­mento de classe a este con­junto he­te­ro­gêneo, po­li­morfo, po­lis­sê­mico que ca­rac­te­riza a classe tra­ba­lha­dora na China, na Índia, na Co­reia do Sul, na África, no leste eu­ropeu, na Amé­rica do Sul…

Nas re­be­liões de junho era muito vi­sível o jovem pro­le­ta­riado bra­si­leiro que ra­lava o dia in­teiro em em­pregos pre­cá­rios para pagar uma fa­cul­dade de noite ima­gi­nando que ia par­ti­cipar da festa e di­vidir o bolo. Quando ele per­cebeu que a di­visão do bolo, me­ta­fo­ri­zada nos me­ga­e­ventos es­por­tivos, não tinha pe­daço ne­nhum pra ele, só para as grandes cor­po­ra­ções, se re­belou. Esse jovem é po­lí­tica e ide­o­lo­gi­ca­mente muito di­fe­rente, porque não tem tra­dição po­lí­tica nem sin­dical em seu lastro.

E os sin­di­catos e par­tidos de es­querda, grosso modo, têm sido in­ca­pazes de com­pre­ender a vida co­ti­diana, a cons­ci­ência con­tin­gente e aquilo que é capaz de mo­bi­lizar o pro­le­ta­riado que na Eu­ropa já se au­to­de­no­mina pre­ca­riado. Essa de­fi­nição não veio da so­ci­o­logia do tra­balho. Foram os mo­vi­mentos de tra­ba­lha­dores que deram este nome, a exemplo do San Pre­cario, dos tra­ba­lha­dores de Milão. É a nova franja do pro­le­ta­riado, que antes era pe­quena, mas se ex­pandiu mun­di­al­mente, so­la­pando as bases so­ciais da so­ci­al­de­mo­cracia. É uma par­cela da jovem classe tra­ba­lha­dora que não se be­ne­ficia das con­quistas so­ciais da época do wel­fare state do tay­lo­rismo e do for­dismo.

Por­tanto, quais os in­te­resses desses seg­mentos que com­põem a to­ta­li­dade da classe tra­ba­lha­dora? Que lutas querem re­a­lizar? Como vão soldar laços de per­ten­ci­mento de classe a fim de evitar que sejam tra­tados de forma in­di­vi­dual? Como mos­tram as re­formas de Temer, Macri e Ma­cron, querem que o tra­ba­lhador se en­tenda so­zinho com a em­presa. Mas quando o tra­ba­lhador ga­nhou uma? Neste ce­nário o ca­pital ganha todas.

A saída dos tra­ba­lha­dores só pode ser so­li­dária e co­le­tiva, como tento tra­ba­lhar nos dois ca­pí­tulos fi­nais do livro: “Há fu­turo para os sin­di­catos? Há fu­turo para o so­ci­a­lismo?” É de­ci­sivo re­cu­perar as ques­tões vi­tais da vida co­ti­diana e de­se­nhar outro modo de vida, muito além do ca­pital. Este é o im­pe­ra­tivo do sé­culo 21.

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