Williams Gonçalves* – A revista norte-americana de orientação política conservadora The American Spectator repercutiu, no dia 10 último passado, o ensaio do também conservador historiador escocês Niall Ferguson, membro do think tank Hoover Institution e da Universidade de Stanford, intitulado How to Win the New Cold War, publicado nas páginas da revista Foreign Affairs, três dias antes.
A tese defendida por Ferguson – com a qual o comentarista da The American Spectator Francis P. Sempa concorda plenamente, no artigo “Will Reagan’s Strategy Work With China?” – é que o presidente Donald Trump pode vir a repetir o êxito obtido pelo presidente Ronald Reagan derrotando a China na Guerra Fria que ora está sendo travada entre os dois países. Assim como Reagan derrotou a União Soviética, colocando um ponto final na Guerra Fria e livrando o mundo do pesadelo da guerra nuclear, Trump pode repetir esse feito, livrando o mundo de uma Terceira Guerra Mundial.
Fergunson identifica semelhanças que os aproximam. Coisas como ter levado tiro e terem sido antecedidos por governos muito fracos fazem-nos parecidos. Ferguson e o comentarista da The American Spectator consideram que, tal como Jimmy Carter, Joe Biden foi desastroso em sua experiência presidencial.
(Arquivo) Historiador britânico Niall Fergunson (Crédito: Fronteiras do Pensamento/Greg Salibian/Flickr)
Há, no entanto, import antes semelhanças positivas entre os dois que podem, caso devidamente exploradas por Trump, conduzi-lo a umabem-sucedida negociação com os chineses, que, na prática, corresponderia a uma vitória dos interesses nacionais dos Estados Unidos. Da mesma maneira que acontece com Trump, Reagan era ridicularizado e considerado inapto, sem as qualidades necessárias para exercer a função de presidente do país. Contudo, ele era possuidor de uma grande capacidade de negociação, tal como Trump. Foi essa capacidade que o tornou vitorioso.
Para explicar como Reagan conseguiu a vitória sobre os soviéticos, Sempa recorre ao filósofo político James Burnham (1905-1987), segundo ele, mentor intelectual de Reagan. No livro The Coming Defeat of Communism (John Day Company, 1950), Burnham recomendava o lançamento contra os soviéticos de uma “guerra econômico-político-subversiva”. Segundo ele, foi exatamente o que Reagan fez. Ele “explorou as vulnerabilidades políticas, econômicas e estruturais soviéticas”.
A pressão no campo econômico teria acontecido como resultado de dois movimentos iniciados por Reagan. O primeiro foi ter promovido intensa corrida armamentista, cujo ápice foi a proposta de Guerra nas Estrelas. Isso obrigaria os soviéticos a realizarem gastos além de suas possibilidades. No caso do segundo, combinou com a Arábia Saudita aumentar a produção de petróleo para baixar o preço no mercado, atingindo diretamente as receitas da URSS provenientes da venda dessa commodity.
A pressão político-subversiva se deu-se mediante o apoio e a assistência prestada aos grupos dissidentes que atuavam dentro da União Soviética. Recorrendo a uma retórica típica dos anos 1950 e formulando o slogan “império do mal”, Reagan obrigou os soviéticos a atuarem defensivamente.
A terceira dimensão dessa estratégia foi a “arte do acordo”. Depois de muito pressionar os soviéticos, Reagan convidou Gorbatchev a dialogar para alcançar um acordo. Depois de toda a pressão, Reagan foi para a mesa de negociação com um Gorbatchev abalado, sem muita margem de manobra para negociar.
Em virtude dessa sua interpretação acerca da política de Reagan que teria provocado a derrocada soviética, Sempa considera a intervenção de Fergunson muito oportuna. Tanto para Ferguson como para Sempa é perfeitamente possível Trump usar com a China a mesma estratégia que Reagan usou com a União Soviética. A capacidade que tem Trump de criar grande alarde em torno das questões que o interessam e, depois, negociar serenamente, constituem os trunfos que podem fazê-lo repetir o feito de Reagan. Ferguson considera Trump um mestre na arte de barganhar, citando como referência o livro escrito por ele The Art of Deal (Random House Publishing Group, 1987).
(Arquivo) O então presidente dos EUA, Ronald Reagan, e o então secretário-geral soviético, Gorbachev, na Hofdi Housem em Reykjavik, Islândia, durante a Cúpula de Reykjavik, em 10 nov. 1986 (Fonte: Ronald Reagan Library/Flickr)
Sempa endossa a tese de Fergunson, mas a visão que eles têm do quadro internacional é diferente. Fergunson considera que Estados Unidos e China já vivem uma Guerra Fria e que o confronto deve ser evitado. Tal como na primeira Guerra Fria, assiste-se a uma corrida armamentista, mas, dessa vez, ela é tecnologicamente ultrassofisticada. Além disso, segundo ele, “a atual corrida armamentista nuclear é desequilibrada, na qual os inimigos de Washington expandem seus arsenais, enquanto a não proliferação se aplica apenas aos aliados dos EUA”.
Para que Trump saia vitorioso, detendo a corrida armamentista e evitando que a Guerra Fria transborde para o confronto, deve agir da seguinte maneira: iniciar o governo fazendo intensa pressão econômico-comercial e tecnológica sobre os chineses, para, posteriormente, convidá-los à mesa de negociação.
Mas, finalmente, negociar o quê? Ferguson responde: Taiwan. Ele está plenamente convencido de que Xi Jinping está se preparando para tomar a ilha à força. E isso seria motivo mais que suficiente para os Estados Unidos declararem guerra. Diz ele:
“Um elemento crucial de qualquer acordo EUA-China teria de ser um retorno ao consenso dos anos 1970 sobre Taiwan, pelo qual os Estados Unidos aceitam que há ‘uma China’, mas também reservam a opção de resistir a qualquer mudança forçada na autonomia de fato de Taiwan. A erosão dessa ‘ambiguidade estratégica’ não aumentaria a dissuasão americana, mas apenas aumentaria o risco de uma ‘crise de semicondutores de Taiwan’, semelhante à Crise dos Mísseis cubanos de 1962”.
A grande questão para Ferguson é a possibilidade de a China incorporar Taiwan definitivamente ao território nacional, como, aliás, Pequim considera que um dia acontecerá. Mas o que move Ferguson, e todos aqueles mais que pensam o lugar dos Estados Unidos no sistema internacional de poder, não é o amor pelos taiwaneses, mas, sim, a possibilidade de a China assumir o monopólio da produção de semicondutores, uma vez que o continente e a ilha, juntos, dominam a produção desse artefato.
Fergunson entende que o fraco governo de Jimmy Carter, serviu, pelo menos, para uma coisa: preparar o terreno para a assertiva política de Reagan. Sua expectativa é que o governo Biden cumpra o mesmo papel.
Sempa, todavia, diverge de Ferguson quanto à execução da estratégia. Em sua análise, ele confia no que apresenta Irene Chou em um texto publicado na revista The Diplomat, em 9 de janeiro, intitulado “China’s Internal Struggles: The Rising Violence That Could Lead To Foreign Aggression”. Analista da empresa de consultoria política Safe Spaces com sede em Washington e Taiwan, Chou está absolutamente convencida de que a China vive uma profunda crise. Ela percebe insatisfação em toda parte. Os salários em queda, o desemprego em alta e a insuficiência dos programas sociais estão deteriorando o ambiente chinês. De acordo com Chou, essa inquietação social está produzindo “crimes de vingança da sociedade”. E o único remédio que Xi Jinping encontra para esse estado de coisa é aumentar o grau de repressão.

Trump, ‘o negociador’
A confiança que Sempa deposita nessa análise de Chou leva-o a entender que Trump pode explorar essa crise social chinesa e reproduzir a estratégia empregada por Reagan. Este deveria seguir a mesma orientação dada por James Burnham e desencadear uma “guerra econômico-político-subversiva”. Em suas palavras,
“As vulnerabilidades estruturais notadas por Chou fornecem áreas para exploração econômico-político-subversiva dos EUA e podem levar à ascensão de um Gorbatchev chinês por necessidade. Então, Trump, o ‘negociador’, poderia possivelmente replicar a estratégia de Reagan que venceu a primeira Guerra Fria”.
Uma coisa salta aos olhos nessas análises de Ferguson, Sempa e Chou. Os três têm uma grande vontade de ver os Estados Unidos voltarem à condição de potência hegemônica. Em função disso, não poupam esforços e criatividade. Porém, deixam claro que têm uma enorme dificuldade de entender o quadro internacional. Prova dessa desorientação é a comparação que fazem da China com a União Soviética da década de 1980. Não conseguem ou não simplesmente não aceitam a ideia de que a União Soviética na década de 1980 era, indiscutivelmente, um Estado que vivia uma crise profunda. Enquanto isso, a China vive um momento exatamente oposto. Além da exuberância econômica, da liderança tecnológica e do crescente poderio bélico, a China se acha à frente de uma extensa rede de alianças no Sul Global e comanda uma rede de instituições econômico-financeiras destinadas a promover o desenvolvimento dos países da periferia.
Evidentemente que os Estados Unidos dispõem de muitos recursos, e Trump não deixará de usá-los na competição que trava com a China. Haverá momentos de tensão e de negociação nos próximos anos, uma vez que Trump considera a China a fonte de todos os males que afligem os Estados Unidos na atualidade. E, quanto a isso, os norte-americanos estão todos de acordo. Esperar, porém, que Trump faça o que Reagan fez, e que os chineses desempenhem o papel dos soviéticos somente pode ser considerado puro delírio.
*Williams Gonçalves é Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN). Doutor em Sociologia, também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU).
Entre outros livros, é autor de A China e a nova ordem internacional (Editora Ayran, 2023) e O realismo da fraternidade: as relações Brasil-Portugal no governo Kubitschek (Funag, 2024).
** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 14 jan. 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
Fonte da matéria: Trump – edição atualizada de Reagan – OPEU – https://www.opeu.org.br/2025/01/15/trump-edicao-atualizada-de-reagan/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=trump-edicao-atualizada-de-reagan
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