Sociedade

Algoritmos de direita: o que resta da esquerda?

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Fábio de Oliveira Ribeiro – De maneira geral concordo com o último xadrez que Luis Nassif publicou no Jornal GGN. Mas senti falta de uma peça e é sobre ela que tentarei falar aqui.

É bem conhecido o experimento mental através do qual Maxwell aparentemente conseguiu refutar a segunda lei da termodinâmica.

“No experimento mental, um demônio controla uma porta entre duas câmaras contendo um gás. Conforme moléculas individuais de gás (ou átomos) se aproximam da porta, o demônio rapidamente abre e fecha a porta para permitir que apenas moléculas de movimento rápido passem em uma direção, e apenas moléculas de movimento lento passem na outra. Como a temperatura cinética de um gás depende das velocidades de suas moléculas constituintes, as ações do demônio fazem com que uma câmara aqueça e a outra esfrie. Isso diminuiria a entropia total do sistema, aparentemente sem aplicar nenhum trabalho, violando assim a segunda lei da termodinâmica.”

Fonte: Wikipedia

Sobre o demônio de Maxwell vide também o seguinte vídeo.

Esse experimento mental também foi usado para explicar o aumento de desordem mundo informacional em decorrência da necessidade do demônio de apagar mais e mais informações que foram inevitavelmente registradas e armazenadas durante sua atividade.

“In 1982, the American physicist Charles Bennett put the pieces of the puzzle together. He realized that Maxwell’s demon was at core an information-processing machine: It needed to record and store information about individual particles in order to decide when to open and close the door. Periodically it would need to erase this information. According to Landauer’s erasure principle, the rise in entropy from the erasure would more than compensate for the decrease in entropy caused by the sorting of the particles. “You need to pay,” said Gonzalo Manzano, a physicist at the Institute for Quantum Optics and Quantum Information in Vienna. The demon’s need to make room for more information inexorably led to a net increase in disorder.”

Fonte: Quanta Magazine

TRADUÇÃO: “Em 1982, o físico norte-americano Charles Bennett juntou as peças do quebra-cabeça. Ele percebeu que o demônio de Maxwell era, no fundo, uma máquina de processamento de informações: ele precisava registrar e armazenar informações sobre partículas individuais para decidir quando abrir e fechar a porta. Periodicamente, ele precisaria apagar essas informações. De acordo com o princípio de apagamento de Landauer, o aumento da entropia devido ao apagamento mais do que compensaria a diminuição da entropia causada pela classificação das partículas. “Você precisa pagar”, disse Gonzalo Manzano, um físico do Instituto de Óptica Quântica e Informação Quântica em Viena. A necessidade do demônio de abrir espaço para mais informações levou inexoravelmente a um aumento líquido da desordem.”

Em razão dos resultados que produzem, podemos dizer que os algoritmos de redes sociais como o Facebook funcionam mais ou menos da mesma forma que o demônio de Maxwell: eles vasculham oceanos de dados produzidos pelos usuários para criar e impulsionar bolhas de acordo com suas preferências. Isso é feito tanto para maximizar a quantidade de clics que um determinado conteúdo receberá quanto para garantir o rendimento econômico oriundo de ads associados à cada conteúdo específico.

Mas no caso do Facebook, o que existe é uma verdadeira legião de pares de demônios de Maxwell trabalhando incansavelmente por trás das telas de cada computador, notebook, tablet e smartphone logado no Facebook. Cada par desses demônios funciona de maneira similar: um deles identifica cada dado produzido pelo usuário da rede social conduzindo-o à respectiva bolha de informação; o outro adiciona à bolha o add de propaganda que terá maior probabilidade de ganhar um clic.

Quanto maior a quantidade e diversidade de usuários do Facebook maior o número de pares de demônios virtuais de Maxwell que são replicados e colocados para funcionar pelo algoritmo da plataforma. É em virtude dessa característica, que o Facebook pode ser utilizado de maneira eficiente não apenas para aumentar os lucros de seus anunciantes como para medir e de certa maneira conduzir a opinião pública.

O escândalo da Cambridge Analytica provou de maneira satisfatória que o Facebook é uma poderosa ferramenta eleitoral. O genocídio em Mianmar, as invasões do Congresso dos EUA e dos prédios dos três poderes em Brasília e diversos outros surtos de violência política recentes demonstraram que a força política destrutiva do Facebook não opera efeitos apenas virtuais e eleitorais. Sobre esse assunto vide também A Máquina do Caos.

E aqui chegamos ao ponto que me parece mais crucial. Mas antes de entrar nele gostaria de fazer uma pequena digressão sobre teoria política apoiado na obra de Norberto Bobbio. Desde a Revolução Francesa a política é dominada pela polarização entre direita e esquerda. O fato desses dois polos sofrerem mutações ao longo do tempo não é tão importante, porque eles continuam uma referência importante tanto para a análise do campo político como para as disputas dentro dele.

“Não obstante a díade ser seguida e diversificadamente contestada – e de modo mais frequente, mas sempre com os mesmos argumentos, nestes tempos recentes de confusão geral -, as expressões ‘direita’ e ‘esquerda’ continuam ter pleno curso na linguagem política. Todos os que as empregam não dão nenhuma impressão de usar palavras irrefletidas, pois se entendem muito bem entre si.

Nos últimos anos, entre analistas políticos e entre os próprios atores da política, boa parte do discurso político tem girado em torno da pergunta: ‘Para onde vai a esquerda?’ São cada vez mais frequentes, a ponto mesmo de se tornarem repetitivos e enfadonhos os debates sobre o tema ‘o futuro da esquerda’ ou ‘o renascimento da direita’.” (Direita e Esquerda, Norberto Bobbio, editora Unesp, São Paulo, 2001, p. 79)

Bobbio publicou suas reflexões sobre a díade em 1994, portanto, duas décadas antes do escândalo da Cambridge Analytica (2014). Muita coisa mudou desde então. E essas mudanças se tornaram mais dramáticas à medida que o campo político migrou quase totalmente para o mundo virtual se tornando refém no mundo real da dinâmica criada pelos algoritmos das plataformas de internet.

Na esfera política, a atuação dos demônios virtuais de Maxwell não apenas redefinem a “esquerda” e a “direita”, eles têm o poder de remover do campo político questões importantes sobre as quais os dois polos poderiam ou deveriam discutir e negociar: taxa de juros, no Brasil; maioria contra a participação na guerra da Ucrânia, na Europa; redução dos gastos com defesa, nos EUA. Ao invés de discutir questões reais que afetam o cotidiano das pessoas em todos os países, o cenário político construído na internet pelos demônios virtuais de Maxwell despolitiza a política obrigando “esquerda” e “direita” ficarem se debatendo sobre questões politicamente menos importantes ou totalmente irrelevantes.

Algoritmos de redes sociais são armas de destruição em massa da esquerda.  Eles analisam e impulsionam ou confinam e suprimem discursos políticos de uma maneira específica que é extremamente benéfica à direita. O crescimento da “nova direita” não é acidental. Ele é programado e ocorre inclusive e principalmente porque a esquerda se deixou iludir pelos demônios virtuais de Maxwell acreditando que disputar espaços na internet se tornou mais importante que organizar as pessoas nos seus bairros e coloca-las nas ruas.

O mundo analógico em que nós vivíamos quando o PT foi criado era muito diferente. Mas nele algumas coisas que nós vemos hoje também existiam.

Em meados dos anos 1980, quando estava na Faculdade de Direito de Osasco, junto com amigos comecei a fazer um jornal chamado “A porta do banheiro”. Esse nome foi escolhido de propósito, porque na porta do banheiro as pessoas escreviam em segredo o que não tinham coragem de dizer em público. A paranoia existente durante a fase final de uma ditadura militar brasileira transformava a porta do banheiro em um mural político e nós resolvemos colocar tudo em público.

O jornal causou um estremecimento na Faculdade de Direito. Ninguém estava realmente preparado para discussões sobre a crise gerada pela demissão de alguns professores, reclamações abertas sobre o valor cobrado dos alunos e, é claro, textos literários curtos ridicularizando algumas disciplinas. Quando a direção da faculdade resolveu criar um jornal para combater “A porta do banheiro” as coisas ficaram ainda mais engraçadas, porque no mesmo dia nós publicamos uma edição extra do nosso jornal criticando o jornal da faculdade (e nós usamos a infraestrutura da própria Faculdade de Direito para fazer isso sem que a direção dela soubesse).

Mas o que ocorreu no ano seguinte foi ainda mais surpreendente. O grupo do qual eu participava ganhou a eleição para o Diretório Acadêmico e imediatamente eu comecei a fazer dois jornais: o jornal do Diretório Acadêmico (com uma plataforma política agressiva e linguagem moderada e burocrática) e “A porta do banheiro” (jornal que usava uma linguagem agressiva em defesa da plataforma política agressiva). Em pouco tempo nós monopolizamos a opinião publicada na Faculdade de Direito criando uma imensa bolha de informação.

Algumas pessoas odiavam um jornal e gostavam do outro, mas a esmagadora maioria dos alunos se tornou favorável a uma plataforma política agressiva (inclusive aqueles que pensavam que ela era moderada por causa da linguagem empregada no jornal do Diretório Acadêmico). Isso se transformou numa fonte de poder político foi utilizado para fazer coisas que até então eram tabu na Faculdade de Direito de Osasco como: uma greve de pagamento contra o aumento das mensalidades, pedido de apoio político aos alunos na Câmara dos Vereadores da Cidade, emissão de carteirinha de estudante da UNE, o ajuizamento de uma bem sucedida ação judicial contra a Faculdade para impedir que os alunos inadimplentes fossem punidos e manifestações orquestradas contra maus professores (um deles foi demitido e o outro pediu demissão porque quando eles entravam numa sala para dar aula todos os alunos se retiravam dela).

O gosto da revolução é delicioso, apesar de ser ilusório e durar pouco. Essa história já esquecida a décadas faz parte da minha vida e sempre que eu vejo coisas sobre manipulação de informação, bolhas de informação, Fake News, movimentos políticos criados out of thin air e impulsionados por veículos de informação “mais ou menos comprometidos com a verdade factual” eu dou gargalhadas. Era exatamente isso que nós fazíamos em meados dos anos 1980 quando o mundo não era informatizado e dominado pelos demônios virtuais de Maxwell que empoderam as plataformas de internet e enfraquecem programaticamente a esquerda.

No passado, era preciso muito mais criatividade e determinação para fazer política. Mas ninguém precisava ganhar dinheiro de uma maneira preguiçosa como esses espertalhões e maníacos da extrema direita (e de esquerda também) que chamam a si mesmos de influencers. E devo dizer que o gosto da revolução que eles imaginam criar não é delicioso, porque ele tem o cheiro nauseabundo de pólvora e de carnificina como ocorreu em Mianmar e quase ocorreu em Brasília. Bem… na época nós também tínhamos que lidar com o problema da vigilância (e das ameaças de agressão de fascistas) num país que estava sendo sacudido pelo fim de uma ditadura militar, mas a solução era sempre irônica e sarcástica.

Apesar de mais acelerado e muito mais inundado de lixo informacional, o mundo atual criado pelos algoritmos não é muito diferente daquele que existia nos anos 1980: ele é apenas mais artificial, menos alegre e desprovido de real vitalidade. Mas vocês sabem, sempre tem um hacker na esquina querendo revolucionar tudo e ganhar notoriedade. Nos anos 1980 fui um hacker do mundo analógico. Portanto, saúdo os novos hackers apesar da esquerda brasileira não ter produzido nenhum deles até a presente data. O único que a beneficiou (o hacker de Araraquara) rapidamente se ligou à direita e caiu em desgraça sem que alguém da esquerda saísse em defesa dele.

Para ganhar os corações e mentes da população, a esquerda não precisa de influencers, de memes e da produção filminhos de TikTok engraçadinhos ou raivosos. Não direi aqui do que ela precisa, porque não compete a mim fazer isso.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Fonte da matéria: Algoritmos de direita: o que resta da esquerda?, por Fábio Ribei – https://jornalggn.com.br/opiniao/algoritmos-de-direita-o-que-resta-da-esquerda-por-fabio-ribeiro/

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