David Arioch S.A. Barcelos – Uma reflexão a partir da obra “A vida não é útil”
No livro “A vida não é útil”, o escritor, ambientalista e ativista indígena Ailton Krenak faz um apelo para que mudemos nossa relação com outras formas de vida, deixando para trás a concepção de que o ser humano é o centro de tudo e que tudo existe para o seu uso.
Ele observa que essa concepção no modo de vida ocidental vem acompanhada da formatação do mundo como mercadoria e que isso é replicado de forma tão naturalizada que uma criança que cresce dentro dessa lógica vive isso como se fosse uma experiência total.
“Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário. Desde pequenos, aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais. Somos piores que a covid-19. Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos” (2022, p. 81-82).
Com base na sua observação da indiferença em relação às outras formas de vida, e sobre a qual estamos cada vez mais conhecendo as nocivas consequências, Krenak aponta que o único caminho para lidar com isso é “ouvir a voz de todos os outros seres que habitam o planeta com você” (p. 73), o que quer dizer também levar em conta os interesses deles. Do contrário, fazemos guerra contra a vida na Terra – o que já tem ocorrido em consequência de uma relação desarmônica e espoliativa baseada na crença de que tudo ou quase tudo pode ser mercadorizado.
A mercadorização do que não deve ser mercadorizado, ou pelo menos não mais, tem consequências graves e que tendem a piorar, se compreendemos o que Krenak observa em relação à ecologia: “A ecologia nasceu da preocupação com o fato de que o que buscamos na natureza é finito, mas o nosso desejo é infinito, e, se o nosso desejo não tem limite, então vamos comer este planeta todo” (p. 97).
Como sabemos, a domesticação que levou à enormidade na criação de animais para matança e consumo tem favorecido isso numa escala sem precedentes, se ponderado, além do mal para os próprios animais vitimados, que o mal de vitimá-los também atinge tantos outros, assim como nós mesmos se pensarmos no aquecimento global, nas mudanças climáticas.
Criá-los, hoje, mais do que em qualquer outro período, também é determiná-los sobre espaços antes naturalmente ocupados por outros. Afinal, priva-se um vivente natural de seu próprio espaço para que seja provisoriamente habitado por um vivente não natural que surge sob intervenção humana também para sofrer e morrer. A exploração de animais para consumo não é sobre isso? Portanto é preciso também deixar de restringir a preocupação somente com o que é inerente ou relevantemente humano na consideração de si, pelo que é sobre si – o que é também uma necessidade que depende da superação da percepção antropocêntrica.
“O agronegócio invadiu o cerrado, o Xingu virou uma pizza. Uma pizza não, uma empadinha cercada de soja por todos os lados, com tratores cortando tudo”, lamenta Krenak (p. 36). Se a soja hoje ocupa tanto espaço, também não deve deixar de ser pensada em relação com o que foi apontado antes sobre os animais, já que sabemos que a maior parte da produção do grão, que também é sua enormidade, é destinada à pecuária. Logo, mesmo na ausência do gado, a destruição nunca deixa de voltar-se para o que impacta sobre eles e outros animais, e chegando também até nós. Mas se o que surge é apoiado por nossas escolhas, devemos ignorar que é preciso rever tais escolhas?
Na perspectiva de Krenak de que o mundo é desigual e que há pessoas que não superestimam o consumo do mundo industrial, tendo uma participação mais eventual, ele sugere que viver dessa forma mostra-nos que essas pessoas compreendem que não dependem disso para continuar existindo – que estão fora do “balaio civilizatório” na forma de um “engajamento no consumo planetário” – termos que ele usa em relação com a supervalorização do consumo.
“Ainda há ilhas no planeta que se lembram o que estão fazendo aqui. Estão protegidos por essa memória de outras perspectivas de mundo. Essa gente é a cura para a febre do planeta, e acredito que podem nos contagiar positivamente com uma percepção diferente da vida” (p. 71).
Podemos estabelecer também uma relação dessa observação de Krenak com a industrialização que permitiu ao ser humano fortalecer sua desconexão com outros animais, que muitos conhecem mais como produtos do que viventes.
Essa ausência de relação, ou relação que se estabelece com o que sequer é vivo, também mostra que é possível que alguém passe uma vida toda alimentando-se de animais e ao mesmo tempo ajude a mantê-los em um perene processo de exclusão – como se fossem até mesmo uma ideia e não uma realidade. Assim é mais fácil não ter de exercer empatia, por crer que sequer é preciso exercê-la ou pensar nela.
Entre as sugestões feitas por Krenak, e que servem também para uma outra relação não somente de humanos em relação a humanos, mas também de humanos em relação a outros animais, estão: “Temos que parar de nos desenvolver e começar a nos envolver” (p. 24) e “Alguns povos têm um entendimento de que nossos corpos estão relacionados com tudo o que é vida, que os ciclos da Terra são também os ciclos dos nossos corpos. Observamos a terra, o céu e sentimos que não estamos dissociados de outros seres” (p. 45). Esses apontamentos antagonizam a crença tão comum e ainda tão presente do “nós e eles”, que facilita um distanciamento em relação à ponderação que envolve outras formas de vida.
Krenak também afirma depois que os outros seres estão aqui conosco (p. 71), uma percepção que serve também como contraponto à crença de que os “outros seres estão aqui para nós”. Esse é um entendimento que, se validado pela maioria, transformaria nossa relação com os animais e com outras formas de vida, e porque também evoca uma mensagem que entra em conflito com o especismo.
Parte do problema está no próprio sentido utilitário da vida, e que dá nome ao livro de Krenak. Não por acaso, o sentido de que a vida deve ser útil foi também o que permitiu que tantos animais fossem e continuassem sendo trazidos à vida, mas sem que o viver possa ser um fim em si mesmos. Animais que são explorados e mortos estão sempre às voltas com o sentido de ser “útil”, que é um viver pela imposição do que fazer e não como expressão do próprio ser.
Quando Krenak questiona, “Por que insistimos em transformar a vida em uma coisa útil?”, me pergunto se o sentido de utilidade foi imposto primeiro pelos humanos em relação a si mesmos ou como consequência do que os humanos impuseram antes sobre outros animais. Essa é uma questão controversa, e que tem sido vista de forma diversa por pensadores ao longo dos séculos.
Foi também a crença na utilidade que trouxe-nos outro problema que ainda não é tratado com a devida seriedade e que também é visto com preocupação por Krenak (p. 54): “E, quando alcançarmos mais um grau e meio de temperatura no planeta, muitas espécies morrerão antes de nós”, observa em referência ao aquecimento global.
O autor é cético em relação a uma reforma do capitalismo que possa transformar favoravelmente as relações humanas com outras formas de vida, defendendo que o capitalismo “não vale o conserto”. No entanto, ele também chama atenção para a importância do diálogo: “E, quando eu percebo que sozinho não faço a diferença, me abro para outras perspectivas. É dessa afetação pelos outros que pode sair uma outra compreensão sobre a vida na Terra” (p. 104).
Krenak acredita em micropolíticas (p. 21) que possam ocupar o lugar da desilusão com a macropolítica e diz ver esperança na agroecologia, permacultura e na simples ação de cultivar hortas no quintal de casa.
“A agrofloresta e a permacultura mostram aos povos da floresta que existem pessoas na cidade viabilizando novas alianças, sem aquela ideia de campo de um lado e cidade do outro. Alguém pode dizer: ‘Mas nós não vamos voltar a ser uma sociedade agrícola!’ Provavelmente não. Inclusive porque agricultura mesmo não é o que a gente está fazendo em lugar nenhum do mundo. Tem essa campanha imoral de que ‘o agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo’, na qual mostram todo processo de industrialização, não somente de alimentos, mas também de minério. Tudo virou agro. […] Cada um de nós – não a economia, não o sistema todo – pode atuar positivamente nesse caos e trabalhar, digamos assim, por uma auto-harmonização” (p. 22 e p. 53).
Referência
KRENAK, A. A vida não é útil. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 128 p.
Fonte da matéria: Krenak: “Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade” – Vegazeta – https://vegazeta.com.br/krenak-temos-que-abandonar-o-antropocentrismo/
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