Edelberto Behs – O Alto Taquari em particular, mas praticamente todo o Estado do Rio Grande do Sul, enfrenta uma segunda cheia em pouco espaço de tempo, esta última ainda maior que a anterior, de setembro de 2023, superando inclusive a cheia de 41, que está na memória dos gaúchos e gaúchas de mais idade.
São Leopoldo, segunda-feira, de repente cai a luz por umas duas, três. horas. Não tem internet, não tem televisão, não tem banho elétrico. Quem mora em andares superiores de prédios fica limitado a subir ou descer escadas. Quem tenta levar o carro até a garagem estanca diante do portão elétrico, que não tem forças para subir.
São as “agruras” dos bem-situados: onde a cheia não chega. Mas quem tem sua casa invadida pelas águas? Perde tudo, desde geladeira, fogão, cama, sofá, armários, eletrodomésticos… Depois da hecatombe, tem que partir para um novo começo, muitas vezes do zero, a começar pela varredura do barro encravado no chão e nas paredes.
Menos sorte têm os que veem simplesmente sua casa desabar. E não foi um nem dois casos registrados nesses dias. Assim, sem mais, num piscar de olhos quem tinha um lar teve que buscar abrigo em casa de parentes, num hotel, numa escola, num abrigo público, sem eira nem beira. Há cidades que estão a ponto de sumir do mapa.
Fica evidente, contudo, aliás mais do que evidente, o quanto nós, humanos, somos dependentes da natureza, o quanto a natureza é forte, o quanto ela tem que ser cuidada. Cuidada? Sim, acariciada, e o quanto não estamos fazendo isso com cada vez maior produção de combustíveis fósseis… Lucro, lucro é o que importa!
Em artigo para o Sul 21, a historiadora e doutora em Ciências Sociais Maria da Glória Lopes Kopp, apontava que, “não por coincidência, o mapa da enchente (de 2024) é o mesmo da região originária das matas de araucária”, tirada dos botocudos por D. João VI e explorada, em 200 anos, por interesses capitalistas na exploração de madeira e, depois, no cultivo de produtos agrícolas de exportação.
“As terras que agora desabam dramaticamente no Sul do Brasil, levadas pelas chuvas torrenciais, foram integradas ao sistema capitalista de produção para o mercado internacional há 200 anos”, analisou. Trata-se de intensa atividade econômica exploratória, conhecida como ‘política de colonização’, iniciada com a vinda da Corte Portuguesa (1808-1821) para o Brasil.
O “progresso” às custas da natureza, cobra agora a conta. Em entrevista para Ligia Guimarães, da BBC Brasil, o doutor em Ciências e professor de Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Marcelo Dutra da Silva, frisou que é preciso “devolver para a natureza esses espaços que estão mais sensíveis ao alagamento”.
Ou seja, defendeu: “Cidades inteiras vão ter que mudar de lugar. É preciso afastar as infraestruturas urbanas desses ambientes de maior risco, que são áreas mais baixas, planas e úmidas, as áreas de encostas, as margens de rios e as cidades que estão dentro de vales”, um processo que ele denominou de “desedificar”, colocar as cidades em regiões mais seguras. Muçum e Roca Sales são candidatas em potencial para enfrentarem esse processo.
A reconstrução do Rio Grande do Sul, enfatizou o acadêmico, vai precisar ser planejada, levando em conta quais as áreas mais seguras e resistentes às variações climáticas extremas, que vieram para ficar. Ironicamente, as áreas mais valorizadas pelo setor imobiliário para grandes empreendimentos e pela própria população, anota a repórter da BBC Brasil, são justamente as mais vulneráveis a inundações: próximas a margens de rios e lagos, ou em áreas planas, baixas e úmidas.
Essas áreas, explicou o professor, exercem na natureza o importante papel de esponja. “Esse serviço dado pela natureza é justamente para que quando há uma grande carga d’água ela vá para lá, e as zonas mais altas fiquem seguras”. Daí que ele defende que todas as cidades atingidas revisem seus planos diretores antes de reconstruir tudo o que foi perdido, tentando fazer o mesmo como era antes.
O colunista Moisés Mendes lembrou, em artigo, a figura do primeiro ecologista do Rio Grande do Sul, quiçá do Brasil, José Lutzemberger. Eu trabalhava no jornal Folha da Manhã, nos anos 70, em Porto Alegre, e seguidas vezes o Lutz aparecia na redação da Caldas Júnior para denunciar algum produto tóxico, falar em defesa de Gaia, da ecologia. Colegas, poucos é verdade, cochichavam: “Lá vem o maluco!”
E o “maluco” estava coberto de razão, olhando no espelho de 30 anos atrás, quando ele falava do poder da natureza e os cuidados que devíamos ter para com ela. Moisés lembrou que Lutz dizia que antes de morrer gostaria de voltar à Terra a cada 50 anos, para dar uma olhadela, sem interferir em nada.
Conhecendo a índole do Lutz, acho que ele iria interferir e apontar para a loucura que o “progresso”, o desmatamento, a exploração mineral produziu, não só no Brasil, mas no mundo inteiro.
Veja a situação no Quênia, onde igrejas abrigam flagelados. As inundações também deixam marcas na Tanzânia, no Burundi e em partes de Uganda, na África. Mais de 100 mil pessoas tiveram que deixar suas casas no Burundi e 150 mil no Quênia.
Cientistas apontam que as fortes chuvas no Quênia, que tiveram início em meados de março, são resultado das alterações climáticas globais. Devido ao fenômeno, chuvas e períodos de seca tornaram-se mais intensos.
Temos algum motivo de aprendizagem dessa situação? Se os grandões, tipo os trumps e os naros da vida, que não acreditam nos alertas de cientistas, meteorologistas e estudiosos sobre a degradação climática, em pequena escala há alternativas que poderiam ser tocadas pelo poder público, escolas, igrejas: tratar da economia da natureza.
Os recursos da natureza não são ilimitados. É possível ter mais cuidado doméstico, como o uso da água, da eletricidade, do lixo. Cuidar das margens dos rios e arroios, preencher as encostas com árvores, gramínea, evitar o desmatamento, deixar os bueiros limpos e desimpedidos… Acrescentem outras iniciativas…
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