Nora Krawczyk e Marcia A. Jacomini – Aulas preparadas por inteligência artificial e ministradas a partir de plataformas na Internet. Homeschooling. Leilões de escola pública. Até onde o governo paulista quer chegar, na busca por um ensino acrítico e meramente instrumental?
É difícil acompanhar o ritmo das atrocidades que o governo de São Paulo está fazendo à escola pública. Privatiza!! é a palavra de ordem da gestão Tarciso e Feder. E, todos os dias aparece nos jornais uma nova privatização dos serviços públicos do estado, a qualquer preço. Como disse Luís Nassif, Tarciso é hoje a maior ameaça à democracia.
Como se não bastasse a reforma do ensino médio e os estudos do ministério da Fazenda para reduzir o orçamento constitucional para saúde e educação e atender ao ajuste fiscal emascarado na lei de arcabouço fiscal, temos em São Paulo a plataformização da educação e o leilão das escolas públicas. Vale examinar cada uma destas iniciativas.
As escolas paulistas receberam este ano um pacote digital coordenado pelo Centro de Mídias (CMSP) com 111 plataformas digitais para uso de professores e estudantes, operadas por corporações do setor privado com contratos que destinam recursos públicos para essas empresas. Além disso, há outras cinco plataformas usadas para registro das atividades de gestão pedagógica da escola. Através delas é possível a verificação diária pela direção da escola, pela diretoria de ensino e pela Secretaria de Educação da frequência dos alunos e do uso das plataformas na escola em tempo real; intensificando o controle do trabalho docente modelado pela secretaria. Os professores podem acessar tutoriais no Youtube para saber como funciona cada uma dessas plataformas.
O CMSP proporciona aulas digitais dos componentes (a nova nomenclatura para as disciplinas) da Formação Curricular Básica para que os professores as projetem no lugar de ensinar a partir de metodologias próprias, e um conjunto de atividades no formato de questões objetivas que os estudantes recebem diretamente pelo aplicativo para responder nas suas casas no prazo de dois dias após a realização da aula correspondente. As tarefas são corregidas pela própria plataforma e compõem o processo avaliativo e a nota do bimestre atribuído pela inteligência artificial.
No caso, por exemplo, da disciplina Redação a plataforma contém o tema e o roteiro da redação. Após inserida pelo estudante no aplicativo, a Inteligência Artificial faz uma primeira correção que equivale a 40 pontos. O restante é realizado pelo professor.
Outro exemplo é a plataforma Leia SP. Contém um conjunto de livros, avalia o progresso de leitura e as perguntas obrigatórias para serem respondidas pelos alunos, que acompanham cada livro. É apresentada ao professor como uma solução digital para que possa fazer um “acompanhamento correto de sua turma”.
Há dois casos de componentes curriculares que são paradigmáticos na platafomização da educação paulista, Tecnologia e Robótica e Orientação de Estudos. Todas as aulas são realizadas nas respectivas plataformas, Alura e Tarefa SP. Ou seja, estudante e professor não têm nenhuma autonomia na definição dos conteúdos e na organização destas aulas, foram transformados em “consumidores” de “aulas prontas”.
Estes são alguns exemplos de padronização do trabalho pedagógico que transforma o processo formativo num conjunto de ações pragmáticas e instrumentais, diminuindo ou anulando o espaço de participação, de consulta e reflexão, danificando a construção do pensamento crítico dos estudantes.
A falta de interatividade entre o professor e o aluno, e entre os próprios colegas de uma classe, somada à ausência de participação ativa de todos, torna as aulas enfadonhas. Os estudantes não demonstram interesse nos conteúdos transmitidos nas aulas/slides. Zombam. Entram e saem da sala. Consultam o celular e se concentram nos games, inclusive quando estão com os computadores ou tablets da escola. O desinteresse, o desânimo e certa inquietação constituem o clima escolar que agora impera nas escolas de ensino médio de São Paulo, permeado por certo cansaço em relação ao excesso de conteúdo digitalizado.
O uso de tecnologias tem sido recontextualizado no discurso das políticas educacionais (Silva, 2022). As novas tecnologias não são recursos didáticos a serviço de um projeto educativo institucional, mas a educação escolar que se adequa à plataformização à serviço das corporações. Quando as escolas questionam a secretaria da Educação sobre que pressupostos políticos e pedagógicos fundamentam o uso de determinadas plataformas, não encontram respostas. O conhecimento que as escolas estão construindo aos poucos deste aparato digital, tem mostrado um conjunto de inconsistências em relação ao objetivo anunciado pela secretaria, de garantir melhor aprendizagem aos estudantes. O argumento de oferecer recursos pedagógicos numa linguagem mais próxima à realidade digital dos estudantes não tem encontrado ressonância entre os eles, que transitam do desinteresse à pouca aprendizagem2 e ao estar entediado.
Na verdade, trata-se de um modelo de gestão baseado em sistemas de responsabilização e de controle e prestação de contas hierarquizados – o que é chamado accountability, nas novas formas de gestão empresarial.
O modelo flexível de organização e gestão, associado às modernas tecnologias de gestão empresarial, incorpora as inovações da quarta revolução industrial, o modelo da indústria 4.0, que “do ponto de vista da construção da hegemonia exige formas de consentimento, que passam a atingir de maneira inaudita a dimensão intelectual e espiritual dos trabalhadores”. (Cavalcante, 2023)
Se é verdade que as plataformas estão se constituindo como “novo recurso pedagógico” ou, como afirmou a fundação Telefônica Vivo, que a “Plataformização da educação chegou para ficar”3, é fundamental que a sociedade discuta o significado de uma educação escolar plataformizada para a aprendizagem, para a formação e para a constituição subjetiva das novas gerações. Principalmente quando tudo está sendo feito “a toque de caixa” pelos governos por meio da aquisição de plataformas prontas que não passaram pelo crivo de especialistas em conteúdos e metodologias de ensino.
Escolas oferecidas para empresas em leilão
Não bastasse a plaformização “descontrolada” da educação paulista, recentemente o governo Tarcísio anunciou leilão para que empresas privadas administrem as escolas públicas de São Paulo. “A PPP envolverá a construção, gestão e operação das unidades, além de serviços não-pedagógicos, como limpeza, manutenção, gestão de infraestrutura e segurança”4. O objetivo seria “liberar a direção das escolas de tarefas burocráticas permitindo maior dedicação às questões pedagógicas” (UOL, 12/4/2024). A gestão de uma escola envolve a organização das atividades meio, aquelas que dão sustentação a realização das atividades-fins, isto é, o processo de ensino e de aprendizagem. A formação e educação dos estudantes, portanto, são inseparáveis. O governo de São Paulo utiliza um discurso enganoso para romper com o princípio constitucional da gestão democrática da escola pública, por meio do qual atividades meios e fins são decididas e realizadas de forma participativa e democrática. Colocar os serviços denominados não-pedagógicos nas mãos do setor privado, além de destinar recursos públicos a empresários, poderá criar uma situação em que as atividades-meio não estejam devidamente adequadas à finalidade da escola, que é educar as novas gerações. O mesmo discurso enganoso é utilizado quando se questiona as escolas cívico-militares.
Este modelo de gestão privada da escola pública, chamada internacionalmente de escola-charter não é novo no Brasil. Já existe em vários estados e, também é o modelo das escolas cívico-militares. Foi implantado na ditadura de Pinochet (1973-1990), que acabou com o sistema público de ensino no país. Nos Estados Unidos, as escolas charter tiveram um crescimento considerável a partir da década de 1990, com o governo Bush Filho (Bastos, 2018).
Isto é claramente a desresponsabilização do Estado pelo sistema público de ensino, apoiada na narrativa de eficiência e eficácia da gestão privada de think tanks da educação no Brasil e no exterior – organizações privadas liberais e/ou conservadoras – (CASIMIRO, 2018), além de ser glamourizadas pelos supostos casos de sucesso das políticas educacionais norte-americanas, reiteradamente contestados por pesquisadores e mídia alternativa do país5.
As pesquisas do modelo da escola charter nos Estados Unidos e em outros países demonstram que não se trata “apenas” de escolas mantidas com recursos públicos e cuja gestão é privada. Este modelo significa um intenso processo de mudança da racionalidade organizacional da educação, uma formação centrada no trabalho docente desregulamentado, defendido pelo empresariado no Brasil. É muito vulnerável aos interesses – econômicos e ideológicos – das corporações e gestores privados. Nos Estado Unidos criou-se uma gestão franchise6, com rotinas escolares e propostas pedagógicas padronizadas, acompanhadas por material didático para toda a rede de escolas (Krawczyk, 2018).
Em 2016, uma entrevista realizada a um pesquisador estadunidenses publicado na revista Carta Capital7 mostrava a presença frequente de casos de corrupção, denúncias de segregação, interrupções da escolaridade das crianças e jovens causadas pelo fechamento intempestivo de escolas charter quando não dão certo ou quando as corporações resolveram investir em outras áreas.
É preciso estar alerta frente a estas rápidas investidas do governo paulista para desregulamentar a educação pública paulista num processo de privatização da gestão das escolas e dos conteúdos a serem ensinados. Até onde o governo paulista pretende chegar?
Referências
CARAPINHA, Luis. A escola: reflexo da sociedade. Alentejo: Tribuna Alentejo, 18/1/2003
Van Dijck, J. & T. Poell (2018). Social media platforms and education. In: The SAGE Handbook of Social Media, 579-591, edited by Jean Burgess, Alice Marwick & Thomas Poell. London: Sage. https://pure.uva.nl/ws/files/19952669/Van_Dijck_Poell_Social_media_platforms_and_education_2018_.pdf (Acesso 13/04/2024)
Barbosa, R. Peres e Alves, N. A Reforma do Ensino Médio e a Plataformização da Educação: expansão da privatização e padronização dos processos pedagógicos. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 21, p. 1-26, 2023. http://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum
SILVA, P. Pereira: EdTech e a plataformização da educação. Tese de doutorado, Universidade do Rio de Janeiro, 2022. http://www.bdtd.uerj.br/handle/1/19281
CAVALCANTE, S. Grande Indústria Capitalista, modelo 4.0: Quarta Revolução Industrial como ideologia. In: CARDOSO, A; CRIVELLI, E.; SANTOS, F. (Orgs.). Trabalho em Transe: raízes e efeitos políticos das mudanças no mundo do trabalho no Brasil. 1ed. São Paulo: Contracorrente, 2023, p. 53-96.
KRAWCZYK, N. Brasil – Estados Unidos: A trama de relações ocultas na destruição da escola pública. In Krawczyk, N. Escola Pública. Tempos difíceis, mas não impossíveis. Campinas – SP: FE-Unicamp editora e Uberlandia, MG: Navegando, 2018
BERLINER, D. Escola pública nos EUA. Resistindo aos ataques do governo Trump, In: Krawczyk, N. Escola Pública. Tempos difíceis, mas não impossíveis. Campinas – SP: FE-Unicamp editora e Uberlandia, MG: Navegando, 2018
BASTOS, R. Moreira Brito: No Profit Left Behind. Os efeitos da economia política global sobre a educação básica pública. Fortaleza, CE, Civilização, 2018.
1 Este número se refere a abril de 2024, pois encontra-se em processo a implementação de novas plataformas. Não estamos contabilizando a plataforma utilizada para a realização da Prova Paulista.
2 O vazamento “proposital” da prova paulista referente ao primeiro bimestre de 2024 reflete o conhecimento que escolas e a secretaria de Educação têm da pouca aprendizagem que o atual “modelo’’ (des)educativo-pedagógico do governo paulista tem proporcionado
3 https://www.fundacaotelefonicavivo.org.br/noticias/plataformizacao-da-educacao-conheca-os-desafios-de-um-processo-que-chegou-para-ficar-2/
4 https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/em-parceria-com-o-bndes-leilao-para-gestao-privada-em-escolas-estaduais-de-sp-deve-ocorrer-em-novembro/
5 Só para citar alguns: Blog de Diane Ravitch. https://dianeravitch.net/ RAVITCH, D: Vida e morte do grande sistema escolar americano. Porto Alegre: Sulina, 2011. SHAWGI, T. Charter School. Report Card. Charlotte – NC, 2016.
BERLlNER, David.; GLASS, Gene. 50 myths and lies that threaten America’s public schools: The real crisis in education. Nova York: Teachers College, Columbia University, 2014.
KAHLENBERG, Richard; POTTER, Halley. The original charter vision. The New York Times, Wahington, DC. 30 August, 2014.
6 Por exemplo, a rede de escolas charter da Fundação da Família Walton, dona dos supermercados Walmart.
7 Charter school: uma escola pública que caminha e fala como escola privada. Pesquisador americano Dwight Holmes explica por que esse modelo de ensino vem ganhando espaço e ameaça o Brasil. Carta Capital, 31-05-2016. https://www.cartacapital.com.br/educacao/charter-school-uma-escola-publica-que-caminha-e-fala-como-escola-privada/
Fonte: A “blitzkrieg” de Tarcísio contra a Educação – Outras Palavras
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