Geografia

A política externa dos EUA – a serviço do grande capital

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JEFFREY D. SACHS* – Os EUA tentaram derrubar pelo menos 80 governos desde 1947 através da instigação de golpes de Estado, assassinatos, insurreições, agitação civil, manipulação de eleições, sanções econômicas e guerras abertas.

À primeira vista, a política externa dos EUA parece ser totalmente irracional. Os EUA envolvem-se numa guerra desastrosa atrás da outra – Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, Ucrânia e Gaza. Nos últimos tempos, os EUA permanecem globalmente isolados em seu apoio às ações genocidas de Israel contra os palestinos, votando contra uma resolução da Assembleia Geral da ONU para um cessar-fogo em Gaza, apoiada por 153 países com 89% da população mundial, e com a oposição apenas dos EUA e de 9 pequenos países com menos de 1% da população mundial.

Nos últimos 20 anos, todos os grandes objetivos da política externa dos EUA falharam. Os Talibãs voltaram ao poder após 20 anos de ocupação americana do Afeganistão. O Iraque pós-Saddam tornou-se dependente do Irã. O presidente da Síria, Bashar al-Assad, manteve-se no poder apesar dos esforços da CIA para derrubá-lo. A Líbia caiu numa prolongada guerra civil depois de uma missão da OTAN liderada pelos EUA ter derrubado Muammar Kadhafi. A Ucrânia foi esmagada no campo de batalha pela Rússia em 2023, depois que os EUA sabotaram secretamente um acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia em 2022.

Apesar destes notáveis e dispendiosos fracassos, um depois do outro, o mesmo elenco de personagens manteve-se no leme da política externa dos EUA durante décadas, incluindo Joe Biden, Victoria Nuland, Jake Sullivan, Chuck Schumer, Mitch McConnell e Hillary Clinton.

O que acontece?

O quebra-cabeça é resolvido reconhecendo-se que a política externa americana não tem nada a ver com os interesses do povo americano. É sobre os interesses dos atores políticos centrais de Washington, que procuram contribuições para as campanhas e empregos lucrativos para si próprios, seus colaboradores e familiares. Em suma, a política externa dos EUA foi tomada pelo grande capital.

Como resultado, o povo americano está perdendo muito. As guerras fracassadas desde 2000 custaram-lhe cerca de 5 trilhões de dólares em despesas diretas, ou cerca de 40.000 dólares por família. Nas próximas décadas, serão gastos outros 2 trilhões de dólares, ou mais, com os cuidados dos veteranos. Além dos custos diretamente suportados pelos americanos, devemos reconhecer também os custos terrivelmente elevados ocorridos no estrangeiro, em milhões de vidas perdidas e trilhões de dólares de destruição da propriedade e da natureza nas zonas de guerra.

Os custos continuam subindo. As despesas ligadas ao exército dos EUA em 2024 ascenderão a cerca de 1,5 trilhão de dólares, ou seja, aproximadamente 12.000 dólares por família, se acrescentarmos as despesas diretas do Pentágono, os orçamentos da CIA e de outras agências de inteligência, o orçamento da Administração dos Veteranos, o programa de armas nucleares do Departamento de Energia, a “ajuda externa” do Departamento de Estado ligada ao exército (como a de Israel) e outras rubricas orçamentárias relacionadas com a segurança. Centenas de bilhões de dólares é uma soma de dinheiro que vai ralo abaixo, desperdiçado em guerras inúteis, bases militares no estrangeiro e um aumento de armamentos totalmente desnecessário que aproxima o mundo da Terceira Guerra Mundial.

No entanto, descrever estes custos gigantescos é também explicar a “racionalidade” distorcida da política externa dos EUA. O 1,5 trilhão de dólares em despesas militares é o esquema que continua rendendo – para o complexo militar-industrial e para os atores políticos centrais de Washington – mesmo quando empobrece e põe em perigo a América e o mundo.

Para entender o esquema da política externa, imagine o atual governo federal como um negócio de várias divisões controlado pelos que pagam mais. A divisão de Wall Street é gerida pelo Tesouro. A divisão da Indústria da Saúde é gerida pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos. A divisão das Grandes Petrolíferas e do Carvão é gerida pelos Departamentos de Energia e do Interior. E a divisão da Política Externa é gerida pela Casa Branca, Pentágono e CIA.

Cada divisão utiliza o poder público para obter ganhos privados através de negócios com informação privilegiada, lubrificados por contribuições corporativas de campanha e despesas com lobbies. Curiosamente, a divisão da Indústria da Saúde rivaliza com a divisão da Política Externa como um notável esquema financeiro. As despesas de saúde dos Estados Unidos totalizaram espantosos 4,5 trilhões de dólares em 2022, ou seja, cerca de 36.000 dólares por família, de longe os custos de saúde mais elevados do mundo, enquanto os Estados Unidos se classificaram em torno do 40º lugar entre as nações do mundo em termos de esperança de vida. Uma política de saúde fracassada traduz-se em muito dinheiro para a indústria da saúde, tal como uma política externa fracassada se traduz em mega-receitas do complexo militar-industrial.

A divisão de Política Externa é dirigida por um círculo pequeno, secreto e muito unido, que inclui as altas patentes da Casa Branca, CIA, Departamento de Estado, Pentágono, Comissões de Serviços Armados da Câmara e do Senado e das principais empresas militares, incluindo Boeing, Lockheed Martin, General Dynamics, Northrop Grumman e Raytheon. Há talvez um milhar de indivíduos-chave envolvidos na definição da política. O interesse público desempenha um papel reduzido.

Os principais responsáveis pela política externa gerem as operações de 800 bases militares ultramarinas dos EUA, centenas de bilhões de dólares de contratos militares e as operações de guerra para onde o equipamento é enviado. Quanto mais guerras, naturalmente, mais negócios. A privatização da política externa tem sido enormemente ampliada pela privatização do próprio negócio da guerra, à medida que cada vez mais funções militares “essenciais” são entregues aos fabricantes de armas e a empreiteiros como Haliburton, Booz Allen Hamilton e CACI.

Além das centenas de bilhões de dólares de contratos militares, há importantes repercussões comerciais das operações militares e da CIA. Com bases militares em 80 países em todo o mundo e operações da CIA em muitos mais, os EUA desempenham um papel importante, embora majoritariamente encoberto, na determinação de quem governa esses países e, por conseguinte, nas políticas que dão forma a negócios lucrativos envolvendo minerais, hidrocarbonetos, oleodutos e terras agrícolas e florestais.

Os EUA tentaram derrubar pelo menos 80 governos desde 1947, normalmente sob a liderança da CIA, através da instigação de golpes de Estado, assassinatos, insurreições, agitação civil, manipulação de eleições, sanções econômicas e guerras abertas. (Para um estudo soberbo das operações de mudança de regime dos EUA de 1947 a 1989, ver a obra de Lindsey O’Rourke, Covert Regime Change).

Além dos interesses comerciais, há, naturalmente, ideólogos que acreditam verdadeiramente no direito da América a governar o mundo. O caso mais famoso é o da família Kagan, sempre belicosa, embora seus interesses financeiros estejam também profundamente ligados à indústria da guerra. A questão da ideologia é a seguinte. Os ideólogos erraram em quase todas as ocasiões e há muito que teriam perdido seus púlpitos em Washington se não fosse a sua utilidade como belicistas. Conscientemente ou não, eles servem como atores pagos pelo complexo militar-industrial.

Há um inconveniente persistente neste esquema de negócios em curso. Em teoria, a política externa é levada a cabo no interesse do povo americano, embora o oposto seja a verdade. (Uma contradição semelhante aplica-se, naturalmente, aos cuidados de saúde excessivamente caros, aos resgates do governo a Wall Street, às regalias da indústria petrolífera e a outros esquemas). O povo americano raramente apoia as maquinações da política externa dos EUA quando ocasionalmente ouve a verdade. As guerras da América não são travadas por exigência popular, mas por decisões vindas de cima. São necessárias medidas especiais para manter o povo afastado da tomada de decisões.

A primeira dessas medidas é a propaganda sem tréguas. George Orwell acertou em cheio em 1984, quando “o Partido” mudou subitamente o inimigo estrangeiro da Eurásia para a Ásia Oriental sem uma palavra de explicação. Os EUA fazem essencialmente o mesmo. Quem é o inimigo mais grave dos EUA? Escolham, de acordo com a estação. Saddam Hussein, talibãs, Hugo Chávez, Bashar al-Assad, ISIS, Al-Qaeda, Kadhafi, Vladimir Putin, Hamas, todos desempenharam o papel de “Hitler” na propaganda dos EUA. O porta-voz da Casa Branca, John Kirby, faz a propaganda com um sorriso no rosto, sinalizando que ele também sabe que o que está dizendo é ridículo, embora ligeiramente divertido.

A propaganda é amplificada pelos grupos de reflexão de Washington que vivem de doações de empreiteiros militares e, ocasionalmente, de governos estrangeiros que fazem parte das operações fraudulentas dos EUA. Pensemos no Conselho do Atlântico, no CSIS e, claro, no sempre popular Instituto para o Estudo da Guerra, levados a você pelos principais contratantes militares.

A segunda é esconder os custos das operações de política externa. Nos anos 1960, o governo dos Estados Unidos cometeu o erro de obrigar o povo americano a suportar os custos do complexo militar-industrial, convocando jovens para combater no Vietnã e aumentando os impostos para pagar a guerra. A opinião pública manifestou sua oposição.

“A cumplicidade da América com o Estado de apartheid de Israel e os crimes de guerra em Gaza não faz sentido para a segurança nacional e a diplomacia dos EUA, para não falar da decência humana

A partir da década de 1970, o governo tem sido muito mais inteligente. O governo acabou com o recrutamento e transformou o serviço militar num emprego temporário e não num serviço público, apoiado pelas despesas do Pentágono para recrutar soldados de estratos econômicos mais baixos. Abandonou também a ideia pitoresca de que as despesas públicas devem ser financiadas por impostos e, em vez disso, transferiu o orçamento militar para as despesas deficitárias, o que o protege da oposição popular que seria desencadeada se fosse financiado por impostos.

Também tem sugado Estados clientes como a Ucrânia para combaterem as guerras dos EUA no terreno, de modo a que nenhum saco com cadáver americano estrague a máquina de propaganda dos EUA. Desnecessário dizer que os mestres da guerra americanos, como Sullivan, Blinken, Nuland, Schumer e McConnell, permanecem a milhares de quilômetros de distância das linhas da frente. A morte está reservada aos ucranianos. O senador Richard Blumenthal (D-Conn.) defendeu a ajuda militar americana à Ucrânia como dinheiro bem gasto porque “não há uma única mulher ou homem do serviço americano ferido ou perdido”, de algum modo não se lembrando o bom senador de poupar as vidas dos ucranianos, que morreram às centenas de milhares numa guerra provocada pelos EUA por causa da expansão da OTAN.

Este sistema é sustentado pela subordinação total do Congresso dos Estados Unidos ao negócio da guerra, para evitar qualquer questionamento dos orçamentos exagerados do Pentágono e das guerras instigadas pelo Poder Executivo. A subordinação do Congresso funciona da seguinte forma. Em primeiro lugar, a supervisão da guerra e da paz pelo Congresso é em grande parte atribuída às Comissões de Serviços Armados da Câmara e do Senado, que definem em grande medida a política geral do Congresso (e o orçamento do Pentágono).

Em segundo lugar, a indústria militar (Boeing, Raytheon e outras) financia as campanhas dos membros dos Comitês dos Serviços Armados de ambos os partidos. As indústrias militares também gastam somas vultosas em lobbies, a fim de proporcionar salários lucrativos aos membros do Congresso que se aposentam, aos seus colaboradores e às suas famílias, quer diretamente nas empresas militares, quer nas empresas de lobby de Washington.

A tomada da política externa do Congresso não é feita apenas pelo complexo militar-industrial dos EUA. O lobby de Israel dominou há muito tempo a arte de comprar o Congresso. A cumplicidade da América com o Estado de apartheid de Israel e os crimes de guerra em Gaza não faz sentido para a segurança nacional e a diplomacia dos EUA, para não falar da decência humana. São os frutos dos investimentos do lobby israelense, que atingiram 30 milhões de dólares em contribuições para a campanha em 2022 e que ultrapassarão amplamente esse valor em 2024.

Quando o Congresso voltar a se reunir, no final de janeiro, Biden, Kirby, Sullivan, Blinken, Nuland, Schumer, McConnell, Blumenthal e os de sua laia vão nos dizer que temos absolutamente que financiar a guerra perdida, cruel e enganosa na Ucrânia e o massacre e a limpeza étnica em curso em Gaza, para que nós e a Europa e o mundo livre, e talvez o próprio sistema solar, não sucumbam ao urso russo, aos mulás iranianos e ao Partido Comunista Chinês. Os promotores dos desastres da política externa não estão sendo irracionais com este alarmismo. Estão sendo enganadores e extraordinariamente gananciosos, perseguindo interesses mesquinhos em detrimento dos interesses do povo americano.

É tarefa urgente do povo americano rever uma política externa que está tão quebrada, corrompida e enganosa que está enterrando o governo em dívidas enquanto empurra o mundo para mais perto do Armagedon nuclear. Esta revisão deve começar em 2024, rejeitando-se qualquer financiamento adicional para a desastrosa Guerra da Ucrânia e para os crimes de guerra de Israel em Gaza. A pacificação e a diplomacia, e não as despesas militares, são o caminho para uma política externa dos EUA de interesse público.

*Jeffrey D. Sachs é professor de economia na Universidade de Columbia. Autor, entre outros livros, de A era do desenvolvimento sustentável (Ed. Actual). [https://amzn.to/3t4aV3s]

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Fonte da matéria: A política externa dos EUA – a serviço do grande capital – A Terra é Redonda – https://aterraeredonda.com.br/a-politica-externa-dos-eua-a-servico-do-grande-capital/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=novas_publicacoes&utm_term=2024-01-19

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