Melillo Dinis do Nascimento – Para os povos indígenas, para a maioria dos especialistas, para parte dos constitucionalistas, a tese do “marco temporal” é um absurdo.
Depois de muita luta sobre o “marco temporal” no Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente no julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, de Santa Catarina, encerramos o ano de 2023 com um quadro preocupante. E começamos o ano de 2024 ainda mais ocupados. Antes dos detalhes, entretanto, uma síntese da questão jurídica e socioambiental.
Na Constituição brasileira não existe um “marco temporal” para a demarcação das terras indígenas. Há uma proteção constitucional a estas terras tradicionais, anteriores e posteriores à promulgação da Constituição (outubro de 1988 – a data da alegada hipótese de um marco no tempo), tudo na forma do seu artigo 231. Essa foi a conclusão do STF, em tese fixada em 13 pontos consensuais no referido julgamento, válida para todos.
Mas o Congresso Nacional, por grande parte dos parlamentares, sequer esperou a decisão do STF assentar-se. Quase que de forma imediata aprovaram a Lei nº 14.701/2023, ressuscitando o “marco temporal”, dentre outras normas com relação às terras indígenas. Após o rito de submissão ao Poder Executivo, para sua aprovação, retornou ao Legislativo com um veto parcial (nº 30/2023) do Presidente Lula. Ainda em dezembro do ano passado, os Senadores e Deputados devolveram à lei o trecho que batizou a proposta, ao definir que as “terras indígenas tradicionalmente ocupadas” são aquelas “habitadas e utilizadas” pelos indígenas para suas atividades na data da promulgação da Constituição, sob o argumento frágil de não permitir a insegurança jurídica.
Evidente que a nova Lei viola a Constituição, pois uma Lei não pode modificar o texto constitucional, muito menos dar interpretação a uma decisão do STF, exatamente pelo fato de que o sistema jurídico brasileiro não permite. No final de dezembro de 2023, a lei foi publicada. E em janeiro de 2024, a batalha jurídica recomeçou. Até o momento, há um conjunto de ações que pedem ao STF o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o PSOL e a Rede ingressaram com a ADI nº 7582. O PV, PT e PCdoB entraram com a ADI nº 7583 e o PDT ingressou com ação semelhante (ADI nº 7586), na qual afirma que a lei impõe graves limitações ao exercício dos direitos fundamentais dos povos originários, sem o amparo de qualquer norma constitucional. Em contrapartida, PP, Republicanos e PL solicitaram ao STF a validação da mesma lei por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 87. Todas as ações foram distribuídas ao ministro Gilmar Mendes.
Para os povos indígenas, para a maioria dos especialistas, para parte dos constitucionalistas, a tese do “marco temporal” é um absurdo, criação e criatura que representam evidente retrocesso jurídico, equívoco político, deslegitimação democrática, ataques ao necessário equilíbrio socioambiental e geração de violência nos territórios. Como acontece com frequência na história brasileira, a criatura pode-se transformar num monstro. E aqui cabe uma explicação.
Há a convicção de que o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmará em 2024 os direitos à vida promulgados pela Constituição, de 1988. É necessário superar as iniciativas de estímulo à instabilidade e polarização. Normas estéreis para a demarcação de terras indígenas representam um grave retrocesso nas garantias democráticas e republicanas de um ordenamento jurídico-legal baseado na cidadania, na justiça e no reconhecimento das melhores tradições, das experiências históricas e das evidências científicas que compõem o vasto acervo de conhecimentos, saberes e práticas que nos identificam como brasileiros e brasileiras.
Mas temos que lutar. A previsão é que a nova partida do jogo democrático ainda está no começo. Até lá, há muito a ser feito. Nada foi alcançado pelos povos indígenas sem mobilização e sem profunda articulação entre o local e o nacional, o presente, o passado e o futuro, a nossa condição ancestral e nossa defesa dos povos, das culturas, da paz, dos biomas e da Criação.
Melillo Dinis do Nascimento é Assessor jurídico e de incidência política da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil)
Fonte da matéria: Os Povos Indígenas e o Marco Temporal – https://www.ecodebate.com.br/2024/01/24/os-povos-indigenas-e-o-marco-temporal/
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