Karina Lima – Eventos extremos sempre existiram, mas o aquecimento global aumenta sua probabilidade de ocorrência: se comparados com o período pré-industrial, constata-se que já estão mais frequentes e mais intensos.
Desastres não são acontecimentos naturais e inevitáveis. Mesmo quando chamados de “naturais”, esses eventos têm suas intensidades determinadas mais pelo grau de vulnerabilidade do sistema receptor do que pela magnitude do fenômeno natural que o deflagrou. Ou seja: a combinação de fenômenos meteorológicos ou climáticos severos com vulnerabilidades locais é a receita para situações com mais danos humanos, materiais e/ou ambientais. O caso das áreas urbanas do Brasil não é diferente, sendo determinante a qualidade da infraestrutura: potencial fator “vulnerabilidade” da equação que resulta no desastre.
Tempestades e elevados índices pluviométricos são apontados como a principal causa de desastres no Brasil nos últimos anos. Nesses casos, o estrago pode ocorrer tanto devido ao próprio potencial destrutivo das tempestades sobre estruturas, quanto pelo que decorre delas, como enxurradas, alagamentos, inundações e deslizamentos de terra. Nossas cidades tampouco estão preparadas para suportar tornados, vendavais, downbursts e outros fenômenos meteorológicos intensos, cuja frequência e poder destrutivo aumentam à medida que o aquecimento global se intensifica.
Como sabemos há muito tempo, a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera altera o balanço de energia da Terra, ou seja, o quanto de energia entra e sai do planeta. Com o aumento da temperatura planetária, aumentam também os eventos extremos relacionados ao calor, mas não só: a retenção de vapor d’água pela atmosfera se eleva, alterando o ciclo hidrológico e, portanto, os eventos relacionados à chuva e à falta dela. Temperaturas mais altas também intensificam o efeito das secas e a alteração térmica da superfície dos mares causa mudanças nos padrões de circulação atmosférica. Nesse contexto, muitas regiões do globo já observam períodos maiores sem chuva para depois sofrerem com chuvas extremas e concentradas, com risco maior de desastres.
Assim, por mais que eventos extremos sempre tenham existido, o aquecimento global aumenta sua probabilidade de ocorrência. Se compararmos ao período pré-industrial, ou seja, antes da influência humana no clima, podemos constatar que estes eventos já estão mais frequentes e mais intensos. No entanto, é bastante comum, que após algum desastre de grande repercussão surja o questionamento sobre a relação daquele fenômeno meteorológico/climático com as mudanças climáticas. De fato, não é possível afirmar categoricamente essa relação antes de um estudo de atribuição específico de cada caso, mas como já sabemos que as mudanças climáticas aumentam a chance de ocorrência e intensidade desses fenômenos severos, é razoável supor que eventos extremos ocorrendo com tanta frequência, de forma tão cumulativa, inédita e em tão pouco tempo, estão sim relacionados às mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global.
Infelizmente, a tendência é de piora a cada décimo de grau a mais na média de aquecimento global, sendo impreterível, portanto, que as pessoas com poder de decisão tomem as atitudes urgentes e necessárias: eliminar combustíveis fósseis e fazer mudanças estruturais na sociedade. Como se já não fosse um desafio complexo, trata-se de uma emergência, visto que estamos 50 anos atrasados nessas ações, havendo uma janela de oportunidade de mitigação muito pequena. Para muitos especialistas, o cenário em que conseguimos limitar o aquecimento global a 1.5°C (meta do Acordo de Paris) já é inalcançável. Mas isso não pode ser um convite à inação.
Ainda podemos evitar muitos cenários que seriam totalmente catastróficos. Quanto mais tempo passa sem diminuição das emissões de gases do efeito estufa, maior será nossa necessidade de adaptação. O mais recente relatório do IPCC aponta para a luz no fim do túnel: as soluções para a maioria dos setores já existem e o que falta não é dinheiro, mas investimentos apropriados e que promessas já feitas por líderes mundiais sejam cumpridas. No nível local, precisamos diminuir nossas vulnerabilidades para que, quando da ocorrência de eventos severos, consigamos evitar ou reduzir os danos. Somente no estado do Rio Grande do Sul, entre 2011 e 2018, os prejuízos contabilizados por desastres hidrometeorológicos chegaram a 11 bilhões de reais (em valores corrigidos). Dados como esse nos fazem questionar o quanto de investimento é feito em prevenção.
As principais vítimas desses desastres são as populações já mais vulneráveis, que precisamente são as que menos contribuem para a crise climática, mas sofrem suas piores consequências: pretos, periféricos, pessoas com renda mais baixa, aquelas que não têm acesso a moradia segura e a infraestrutura urbana adequada, etc. O Brasil, com seu profundo racismo ambiental, precisa resolver questões de desigualdade, distribuição de renda, saúde e acesso porque isso é essencial para a adaptação às mudanças do clima. O poder público precisa pensar a questão climática como algo transversal, que perpassa todos os outros problemas da nossa sociedade.
Por mais que se façam estudos para soluções de engenharia aplicáveis a algumas áreas, o fato é que precisamos melhorar o sistema de drenagem das nossas cidades, que hoje não possuem capacidade de escoamento para chuvas contínuas e/ou extremas. É imperativo repensar as cidades com planos diretores adaptados às nossas novas necessidades. Do mesmo modo, é importante o investimento em pesquisa, em equipamentos, em treinamento e tudo o que possa contribuir para uma melhor previsibilidade e para um sistema de alertas mais eficaz. É necessária vontade política e investimento se quisermos algum grau de qualidade de vida para todas e todos nas próximas décadas.
Nossa janela de oportunidade está se fechando rapidamente e o relógio está contra nós nesta árdua tarefa de transição. Não devemos desanimar, pois ainda podemos salvar muitas vidas humanas e a biodiversidade que seriam perdidas em cenários de maior aquecimento. É necessário que toda a sociedade contribua na cobrança das ações e enfrentamento da indústria dos combustíveis fósseis para que ela não destrua completamente nossas chances de um futuro habitável.
Karina Lima – Doutoranda em Geografia na área de Climatologia, mestre em Geografia com ênfase em análise ambiental (UFRGS) e divulgadora científica comunicando sobre a emergência climática
Fonte da matéria: Desastres (não) naturais nas cidades | Fundação Lauro Campos e Marielle Franco – https://flcmf.org.br/desastres-nao-naturais-nas-cidades/
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