Sociedade

A subjugação da vida ao poder da morte

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José Clayton Murilo Cavalcanti Gomes – As mortes de Thiago e de tantos outros negros e pobres que tombam nas favelas do Rio de Janeiro em decorrência da violência letal praticada por agentes de Estado se dão em decorrência da estatização da morte.

No final da noite do dia 06 de agosto de 2023 Thiago Menezes Flausino e um amigo passeavam de motocicleta na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio de Janeiro – RJ, quando, na esquina da Estrada Marechal Miguel Salazar com a Rua Jeremias, depararam-se com agentes do Batalhão de Polícia de Choque (BPCHq) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Segundo uma testemunha que presenciou o encontro e imagens de câmeras de segurança, os policiais, ao avistarem a moto, efetuaram diversos disparos sem que houvesse qualquer ação dos jovens. Thiago foi alvejado na perna e caiu da moto, de forma que um dos policiais se aproximou e efetuou mais disparos. O menino negro, de apenas 13 anos, que sonhava em se tornar jogador de futebol para ajudar sua mãe, tombou sem vida no chão da comunidade em que morava.

As declarações da família da vítima e do morador da comunidade que testemunhou as cenas de terror, no entanto, foram contrariadas pelos agentes da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Em publicação na conta oficial da corporação no Twitter, a PMERJ afirmou, ao comentar o caso, que “um criminoso ficou ferido ao entrar em confronto”, tendo noticiado, posteriormente, que “dois homens em uma motocicleta atiraram contra a guarnição”, de forma que “após confronto, um adolescente foi encontrado atingido e não resistiu aos ferimentos.

Não só isso: afeitos à narrativa de que feriram e mataram um “criminoso” em um “confronto”, os policiais registraram a morte de Thiago como homicídio decorrente de oposição à intervenção policial, anteriormente denominado de “auto de resistência” [1], o que permite, basicamente, a garantia de maior capilaridade à tese de legítima defesa, ensejando, na quase totalidade dos casos, o arquivamento do processo sem responsabilização do agente policial, ainda que a pessoa morta seja uma criança ou um adolescente.

Aliás, o discurso de que aniquilaram um “criminoso” – livrando a sociedade de um degenerado – em um cenário de “confronto” tem sido utilizado recorrentemente pelas forças policiais, sobretudo no Rio de Janeiro, para justificar as execuções sumárias decorrentes da intervenção policial que quase diariamente preenchem as redes sociais e os telejornais. Para se ter ideia, as forças policiais foram responsáveis por 1.330 mortes no Rio de Janeiro em 2022, representando 29,7% de todas as mortes violentas no estado. Já no que diz respeito à região metropolitana do Rio, a polícia causou 35,4% dos assassinatos nos últimos três anos, redundando em mais de 1/3 da violência letal na localidade, segundo dados do Instituto de Segurança Pública – ISP e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF).

Além disso, os dados da plataforma Fogo Cruzado revelam que a morte de Thiago não se coloca enquanto isolada no cenário de vitimização de menores no Rio de Janeiro, considerando que 47 crianças e adolescentes foram baleados na região metropolitana do Rio de Janeiro em 2023. Desses, 21 morreram, mortes que têm acontecido, sobretudo, na periferia e nas favelas do Rio. Nós, afinal de contas, nos lembramos de Thiago, assassinado na principal via da comunidade em que morava; de Marcos Vinicius, 14 anos, morto na favela da Maré enquanto ia à escola; de Maria Eduarda, 13 anos, que tombou na favela de Acari quando estava dentro do colégio; de Ágatha Felix, 8 anos, baleada no Complexo do Alemão no momento em que estava no transporte com a sua mãe voltando para casa e João Pedro, 14 anos, atravessado por um projétil de fuzil em São Gonçalo enquanto estava em sua casa com primos e amigos.

E em que pesem todas essas mortes, que se aglutinam a diversas outras que não à toa são perpetradas por agentes de Estado nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, o presidente Lula, no dia 10 de agosto, ao comentar o caso, afirmou que “a gente não pode culpar a polícia, mas a gente tem que dizer que um cidadão que atira num menino que já estava caído é um irresponsável e não estava preparado do ponto de vista psicológico para ser policial”, sendo necessário, na visão de Lula, que a polícia saiba “diferenciar o que é um bandido e que é o pobre que anda na rua”, não podendo-se culpar, também, “nenhum governador”.

Tomando a sério o argumento empregado pelo presidente da República como chave intelectiva para explicação da morte de Thiago e de tantas outras crianças, jovens e adultos nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, pergunto-me se, de fato, são a irresponsabilidade, o despreparo e a ausência de discernimento dos agentes da polícia os dispositivos que têm permitido um morticínio nas favelas do Rio de Janeiro, perquirindo, ainda, se as razões explicativas apresentadas por Lula dão conta de tornar inteligível o motivo pelo qual há uma notável disparidade entre as mortes decorrentes da intervenção policial nas favelas e aquelas que acontecem no “asfalto”.

A favela e o favelado como problemas a serem resolvidos

Penso, no entanto, que não é possível responder a essas indagações sem, antes, empreender esforços para entender o modo como se construiu a favela no imaginário social e a forma como foi ela designada como um problema a ser resolvido. Embora haja controvérsia quanto à sua origem, sabe-se que a existência daquilo que hoje denominamos favela é anterior à própria existência da categoria, conforme explica Licia do Prado Valladares [2]. Por exemplo, o Morro da Providência foi ocupado por volta de 1897 por ex-escravizados em razão do fluxo migratório originado pela abolição formal da escravatura em 1888 e pelos combatentes ligados à guerra de Canudos, que se instalaram no local para pressionar o Ministério da Guerra a pagar os soldos devidos. Foi, no entanto, somente a partir da segunda década do século XX que a palavra foi redimensionada como símbolo genérico de um lugar pobre, situado, em regra, num morro e cuja ocupação se deu fora da legalidade (VALLADARES, 2005).

A partir de então as favelas se tornaram alvo de funcionários públicos, médicos higienistas e engenheiros, difundindo-se uma ideia negativa da favela, cuja caracterização se deu enquanto um local à margem da cidade, fulminado pela pobreza e marginalidade e epicentro da fratura humana e social, signos que, aliás, foram substanciados no final do século XX, momento em que, de acordo com Márcia Leite (2012), a população pobre, sem condições de arcar com os custos de vida nos subúrbios do Rio, passou a ocupar os “morros próximos às fábricas, ao comércio e/ou às habitações das camadas médias e abastadas, em busca de empregos” [3].

Tais processos históricos redundaram, então, no estabelecimento de dois signos no imaginário social: o da “favela” e o do “favelado”. Nesse sentido, a favela seria, para além de precária, pobre e marginal, local da degeneração moral, da criminalidade, da violência e da desordem, sendo os “favelados”, por sua vez, marginais associados ao crime violento, causadores de cisão social e uma “classe perigosa” [4] de prostitutas, pobres e bandidos. Com isso, o território da favela é criminalizado e os seus moradores tidos enquanto criminosos a priori, mas de tal forma que a presença do “Estado” nas favelas passou a se dar, majoritariamente, através da militarização e de incursões armadas das polícias, ao tempo que as políticas estatais se resumiam e ainda se resumem a serviços de baixa qualidade e à ineficiência das instituições (LEITE, 2012).

É preciso notar, ainda, que os signos da “favela” e do “favelado” são, antes de tudo, representações racializadas, arquétipos consubstanciados, por exemplo, na associação entre as mazelas sociais que “assombram” a classe média – a prostituição, a vagabundagem, a pobreza e as práticas criminosas – e os moradores das favelas, majoritariamente negros ou, ainda, na constituição, por parte de agentes de Estado, de um território, não à toa habitado por negros, enquanto apartado da cidade, degenerado, passível de aplicação de práticas exceção. Os “favelados”, resumidos à alcunha de bandidos ou traficantes são, assim, considerados inimigos a serem combatidos.

Racismo, criminalização do território e a eliminação do “outro”

Tidos, assim, enquanto perigosos e inimigos, o acionamento daquilo que Márcia Leite (2012) chamou de “metáfora da guerra” surge como estratégia de eliminação do perigo. Primeiro, há a retratação narrativa de cenas de guerra no interior de certos territórios, permitindo, com isso, o acionamento simbólico e material de dispositivos e práticas de guerra e de “exceção”. Em havendo uma “guerra”, a morte, decorrente da “exceção”, pode ser manejada contra os inimigos como alternativa necessária à preservação de direitos e, ao fim, da própria democracia.  A “guerra”, portanto, direciona-se contra a alteridade daqueles que, inseridos nos territórios de exceção, devem ser eliminados por representarem um perigo imaginário à sociedade, por serem os “outros”, aqueles que são apartados da normalidade.

As mortes de Thiago e de tantos outros negros e pobres que tombam nas favelas do Rio de Janeiro e, de modo mais amplo, no Brasil, em decorrência da violência letal praticada por agentes de Estado não se dão, portanto, em razão da irresponsabilidade, do despreparo e da ausência de discernimento dos policiais, mas em decorrência da estatização da morte, já que, em havendo um acionamento às práticas de “guerra”, o direito de fazer morrer exsurge por decorrência lógica.

O que importa aqui é notar o modo como, nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, a disputa pelo domínio territorial marcada pelas operações policiais cria, como argumentei, uma espécie de justificativa de estado de exceção que se entremeia às práticas legítimas de Estado e garante a constituição de determinadas populações enquanto mais matáveis ou mais morríveis. Assim, um policiamento de rotina – dito legítimo – poderia converter-se em chacinas e execuções sumárias, levando corpos ao chão.

Faz-se necessário dizer, ainda, que nas comunidades do Rio de Janeiro, como em diversos outros contextos, raça, pobreza, gênero, sexualidade, criminalização do território e geração atuam enquanto marcadores sociais da diferença, num cenário de construção do “outro”, em que essas pessoas são encaradas não enquanto semelhantes àqueles que as enquadram, mas como “objeto propriamente ameaçador” [5]. Esse processo de outremização, fruto da raça, da classe e de outras relações de poder, promove aquilo que Achille Mbembe chamou de “alterocídio”, isto é, a destruição e a morte do “outro”, do sujeito do terror, do “bandido”, do “delinquente”, oportunizando genocídios.

Essa visão do “outro” como menos humano, aliás, não se desaparta do exercício daquilo que Achille Mbembe chamou de necropolítica. Ao dialogar com Michel Foucault acerca do conceito de biopolítica, Mbembe notou que o controle sobre a vida de pessoas e populações não dava conta de dimensionar certas dinâmicas, sobretudo aquelas em que a gestão da vida parecia dar lugar às tecnologias de morte. Nesse sentido, ao considerar que formas contemporâneas, como a metáfora da guerra e a luta contra o terror inscrito no “outro”, “subjugam a vida ao poder da morte” [6] o autor cunha o conceito de necropolítica, isto é, o poder decisório sobre quem deve viver e quem deve morrer através de técnicas de perseguição e produção de inimizades.

Os corpos e populações alvos da necropolítica, portanto, não estão implicados em processos de gestão da vida, em que o controle e a administração de pessoas por meio de instituições seriam uma realidade. Pelo contrário, a necropolítica pressupõe não uma governança dos atos da vida, mas uma gestão da morte. E, talvez, a violência policial de que temos conhecimento nas favelas e periferias do Rio de Janeiro se constitua enquanto o exemplo mais tangível da gestão da morte no Brasil, em que o fazer viver é cada vez mais reduzido pelo fazer morrer. É preciso dizer, sem meias palavras, que os corpos mais matáveis e mais morríveis que se inscrevem nessas dinâmicas de poder, assim, são os dos negros, dos pobres, dos trabalhadores, dos jovens.

Reportando-me à pergunta que guiou a escrita deste texto, parece-me certo, então, concluir que a disparidade entre as mortes cometidas por agentes de Estado nas favelas e aquelas executadas no asfalto, portanto, têm uma explicação: a construção do “outro” através de processos de racialização e da criminalização de territórios e da pobreza. Qualquer tentativa de inteligibilidade dessas mortes que não passe pela compreensão de que a raça, o gênero, a sexualidade, o território e a geração são as condições de possibilidade para as mortes nas favelas e periferias do Rio de Janeiro falha em sua gênese e, assim, consubstancia forças ao genocídio negro no Brasil, morticínio que diariamente tomba ao chão crianças, adolescentes, jovens e adultos negros.

Ao fim e cabo, todos aqueles que discursam politicamente incitando a morte de determinadas parcelas sociais, que são omissos nas práticas de Estado e que apertam os gatilhos das armas, cujo alvo é certo, mostram-nos, diariamente, do que são capazes “em tempos de ascensão de uma forma local de fascismo miliciano” (ARAÚJO et al, 2021).

[1] O auto de resistência, após a Resolução nº 2, de 13 de outubro de 2015, do Departamento de Polícia Federal e do Conselho Superior de Polícia, teve a nomenclatura alterada, passando a se chamar “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”. Para instigantes análises acerca dos autos de resistência, sobretudo no contexto do Rio de Janeiro, ver: LEITE, 2013; MISSE et al., 2013FERREIRA, 2013 e FARIAS, 2020.

[2] VALLADARES, L. do P. A invenção da favela. Rio de Janeiro: FGV, 2005.

[3] LEITE, Márcia. Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança v.6, n.2, 374-389, 2012, p.376

[5] MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições, 2018, p.27.

[6] MBEMBE, Achille. “Necropolítica”. Artes & Ensaios, n. 32, pp. 122-151, 2016, p. 146.

Fonte da matéria: A subjugação da vida ao poder da morte – Le Monde Diplomatique – https://diplomatique.org.br/a-subjugacao-da-vida-ao-poder-da-morte/

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