Flávio Lazzarin – Quando novamente celebramos as CEBs [Comunidades Eclesiais de Base], acontece-me de pensar que existe um equívoco, que deveria ser evidenciado, para favorecer debates e a busca fraterna de discernimentos pastorais. Com efeito, também décadas atrás, não conseguia evitar de observar quanto as CEBs estavam mudando e como, frequentemente, neste longo processo de presença na base da Igreja, iam esgotando radicalmente as suas energias proféticas e libertadoras.
E mudaram, com certeza, a partir do abandono progressivo da profecia do Vaticano II e de Medellín e da profecia existencial das comunidades de base, novo jeito de ser Igreja de toda Igreja latino-americana. Foi uma traição restauracionista, em que sobretudo o clero ficou cumplice de três décadas de inverno eclesial romano.
Imputar, porém, a responsabilidade do enfraquecimento das CEBs à dialética que viu a vitória institucional da ‘volta a grande disciplina’ é insuficiente para entender o processo.
Seria muito simplório ignorar todas as transformações da sociedade brasileira nestes últimos 50 anos. Não se trata somente de mudanças de superfície devido as maquiagens modernizadoras do mercado, do consumo, das novas tecnologias: a televisão, num primeiro momento, e a revolução digital sucessivamente.
Aumentou a distância entre as velhas e novas gerações, que anteriormente nunca ficaram tão incomunicáveis.
Já, décadas atrás, o mundo rural tradicional era agredido por dois processos igualmente violentos: tirar a terra dos posseiros e tirar os posseiros da terra. O latifúndio grileiro e a sedução do modo urbano de viver. Onde a necessidade das migrações para São Paulo e o Sul comportava terremotos culturais irreversíveis.
A precariedade econômica, o aumento da pobreza extrema, o desemprego, a fome, o aumento da pequena criminalidade chegaram a caracterizar o povo do nosso País, enquanto suas elites se mantinham caninamente fieis à sua identidade colonialista, racista e classista. Identidade inoxidável à que, hoje, como única novidade, agregam-se ressurgimentos de delírios neofascistas e neonazistas.
A avalanche das mudanças históricas – fala-se hoje, apropriadamente, de mudança de época – atingiu sobretudo e irreversivelmente as subjetividades, as emoções, os sentimentos, as mentalidades, os pensamentos das pessoas. E as subjetividades são por excelência o terreno em que pode acontecer qualquer diálogo e até o diálogo da evangelização. Desconhecer as mudanças neste âmbito não significa somente renunciar a entender a realidade, mas, sobretudo, sabotar a construção de autenticas relações humanas e eclesiais. E renunciar ao discernimento pastoral.
Longe de mim contestar a fidelidade ao precioso legado das CEBs por parte de inúmeros leigos e leigas, religiosos e religiosas, padres e bispos, porque trata-se da fidelidade a um projeto de Igreja popular, sinodal, samaritana, servidora do Reino de Jesus.
Não podemos, porém, sermos fieis a algo que fingimos que continue existindo na atualidade. A ausência de qualquer relação com um passado que não existe mais poderia coexistir com a imperdoável distração quanto à construção necessária de novas CEBs para o futuro. Se assim for, como a gente está duvidando, estaríamos presos em um limbo ideológico, ou confinados em um museu.
Como aproveitar teologicamente do descompasso entre a fidelidade à narrativa libertadora e a ausência dos processos pastorais que por anos a inspiraram e confirmaram?
Em suma, depois de mais um Encontro Intereclesial das CEBs, de 18 a 22 de julho, Rondonópolis, MT, o décimo quinto, as estatísticas dos participantes incluem, além de 1.500 lideranças de CEBs de todo o Brasil, 64 bispos, 130 padres e 130 freiras. Estes números expressivos contrastam com a ausência da experiência e da eclesiologia das Cebs na pastoral ordinária de muitas paróquias e no estilo pastoral da maioria dos padres e dos bispos. Vejam, por exemplo, qual é o espaço reservado às CEBs nas diretrizes pastorais regionais e diocesanas. Na melhor das hipóteses, quando esta história é minimamente respeitada, as CEBs são aceitas ou toleradas como uma expressão pouco relevante entre as múltiplas ‘expressões eclesiais’.
Outro aspecto importante a ser sublinhado é que o papel das CEBs como comunidades de luta de enfrentamento da injustiça foi progressivamente assumido por outros sujeitos políticos emergentes: os povos indígenas, os quilombolas, as comunidades camponesas tradicionais. E esta insurgência se deu no campo, mas também no mundo urbano. Trata-se sem dúvida de pobres e de empobrecidos pela violência colonizadora do sistema, mas são também e sobretudo protagonistas proféticos de ancestralidades ainda vitais e geradoras de Vida.
Neste contexto, não temos um protagonismo popular católico, como no caso das CEBs, porque temos uma multiplicidade de religiosidades e espiritualidade envolvidas no processo de retomada de seus próprios corpos, dos territórios, da identidade religiosa e cultural e de luta contra o estado e o sistema capitalista.
É por isto que seria necessária uma radical conversão pastoral. Com efeito, no nosso meio, é ainda hegemônica a distinção do Concílio entre ecumenismo e diálogo inter-religioso. Na Abya Ayala, tentamos ir além do paradigma conciliar. A partir de práticas macroecumênicas, em setembro de 1992, durante o 1º Encontro Continental da Assembleia do Povo de Deus, em Quito, Equador nasceu esta nova palavra: macroecumenismo. Foi Pedro Casaldáliga que proclamou e fundamentou este sonho, junto com o teólogo José Maria Vigil. Palavra nova, que nasce no chão, do encontro com os povos de Deus que carregam culturas, tradições, visões do mundo e da terra, religiões e religiosidades diferentes. Foi a descoberta de religiosidades outras, ocultadas e conculcadas pelo processo secular da cristandade colonial, que nos conduziu a repensar e reviver de outro jeito a relação pastoral com indígenas, caboclos, negros, com a chamada religiosidade popular. Foi a escuta dos camponeses e das camponesas, de suas lutas e resistências, que nos conduziu – e nos conduz – a atitudes autocríticas das dimensões eurocêntricas, eclesiocêntricas e coloniais de certo cristianismo. São os rostos dos pobres e dos indígenas que nos despertam não só para o desafio da igualdade, mas também para o direito à diversidade cultural e religiosa.
O macroecumenismo é absolutamente ortopratico: nasce da convivência fraterna e defende a prática de rezar e celebrar comunitariamente a vida – e lutar por ela – na presença de diferentes espiritualidades.
Se estivéssemos realmente no caminho de ‘comunidades em saída’, poderíamos, nesta aliança de Jesus com Orixás e Encantados, radicalizar a prática da sinodalidade e ir além da sua indispensável e urgente conversão intraeclesial. Efetivamente, hoje também, só os pobres e as alteridades colonizadas podem ser o antídoto eficaz para a autorreferencialidade.
Também neste contexto, deveremos estar atentos ao risco de mitificar povos e comunidades insurgentes. Poderemos, se formos reconhecidos e acolhidos, atentos às dimensões objetivas da luta, acompanhar os processos de organização, articulação e mobilização, sem, porém, baixar a guarda e esquecer que a subjetividade é capitulo essencial da compreensão crítica dos novos desafios postos por este inegável e renovado protagonismo.
Um exemplo da importância teológica da atenção devida às subjetividades nos é oferecido pela biografia de uma feminista da região de Xapalan, Guatemala: Lorena Cabnal, originária dos povos indígenas maya e xinka, feminista comunitária territorial, mulher de lutas, contribuiu com a organização indígena de mulheres xinkas, e a formação de uma frente de luta contra a mineração no departamento de Japala. A luta de Lorena Cabnal sustenta-se a partir de dois pilares: “meu corpo, meu primeiro território a defender” e “a defesa do território corpo-terra”, sustentados por uma cosmogonia que nasce da comunhão sensível de todos os seres vivos. Uma espiritualidade absolutamente alternativa à filosofia ocidental.
O que me surpreende do discurso de Lorena é a afirmação de que a as ancestralidades não podem ser mitificadas maniqueistamente, como o bem absoluto contra o mal extremo da destruição e opressão colonial. Ela, no contexto do enfrentamento anticolonial do capitalismo predatório e do estado, vê também a necessidade de enfrentamentos internos. Ela fala de múltiplos patriarcados:
Tem o sistema patriarcal que chegou com os conquistadores ibéricos, mas “existe um patriarcado ancestral originário e que para nós é importante desvendá-lo desde esse lugar de enunciação que é a terra onde nascemos, com as múltiplas opressões do sistema patriarcal. Porque é o sistema patriarcal originário que se gestou antes da colonização. É uma forma patriarcal que tem uma configuração diferente…
O patriarcado ancestral originário tem sua própria temporalidade, seu contexto, sua maneira de manifestar-se.
O machismo que expressa um homem indígena não é o mesmo machismo que expressa um homem urbano, um homem branco, um homem da Europa, um homem negro. Não é o mesmo.
Os fundamentalismos étnicos têm outras configurações e operam de maneira diferente.
Por isso nos custa muito chegar às comunidades e falar de gênero, porque dificilmente o gênero atravessa os corpos das mulheres indígenas. Até podemos desvendar, interpretar e dizer às irmãs e companheiras indígenas que compreendam o gênero no castelhano colonial. Vamos aprender de memória e vamos repetir, e se vocês nos ensinam a soletrar, vamos soletrar. Mas quando tu trazes o corpo, tocas o sangue, tocas a terra, isso sim que se sente, pois somos corpos cosmo-sencientes.
Esse patriarcado colonial ocidental não veio só. Lembremos que também já havia colonizações na África, e trouxeram corpos escravizados, corpos negros. Mas com esses corpos negros escravizados que trouxeram para esses lares, também veio uma forma patriarcal ancestral africana. Por isso o machismo afro tem também suas maneiras, temporalidade e contexto. Eu acredito que há que sentir essas outras dimensões políticas das corporalidades e suas histórias.”
Tão importantes são as subjetividades, que até os sonhos noturnos se transformam em temas identitários. Lembro com saudade de um encontro de alguns anos atrás com agricultores urbanos da aldeia Engenho, São Luís do Maranhão, em que a comunidade ‘saía do armário’ e começava o processo de reafirmação da sua identidade indígena, ocultada por décadas. Os Tremembé, naquela ocasião falaram dos seus sonhos. E sonhavam como indígenas.
Em suma, que a escuta incessante da realidade, que se revela, cada vez mais complexa e desafiadora, possa sustentar o nosso discernimento e a nossa caminhada.
Fonte da matéria: Onde estão as CEBs? Artigo de Flávio Lazzarin – Instituto Humanitas Unisinos – IHU – https://www.ihu.unisinos.br/categorias/631043-onde-estao-as-cebs-artigo-de-flavio-lazzarin
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