Internacional

Rumo a uma nova ordem mundial

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Jacques Sapir – As hostilidades na Ucrânia aceleraram – mas não criaram – uma mudança de enorme importância na ordem mundial. Esta, tal como existia desde a dissolução da URSS (1991) e tal como decorria desde a segunda guerra mundial, foi deitada abaixo. A potência dominante, os Estados Unidos, viu-se contestada; sua capacidade de construir uma hegemonia sobre as outras potências provavelmente está arruinada. Um grupo de potências emergentes (caso da China, da Índia e do Brasil) ou re-emergentes contesta não só a sua hegemonia como também a sua capacidade de definir as instituições mundiais. A organização do mundo, que repousava sobre o multilateralismo definindo estão as modalidades da globalização (ou “mundialização”) e que pretendia repousar sobre regras apolíticas entrou em crise. As relações internacionais repolitizaram-se brutalmente. Mas esta repolitização é acompanhada também de uma forma de desocidentalização do mundo que, nas representações dos atores, pode ter a aparência de uma segunda descolonização, o que vem renovar e consumar o processo dos anos 1960 e 1970. Expressões novas surgiram, como “Ocidente coletivo” e “Sul coletivo”. Se circulação das mercadorias, dos fluxos financeiros e dos capitais é posta em causa, é no domínio monetário mas também no domínio informacional que o policentrismo e a fragmentação do espaço são mais evidentes. O sonho de uma “aldeia global”, tal como havia definido McLuhan, parece morto.

Estas transformações – e é nisto que elas são paradoxais – foram iniciadas pela antiga potência dominante, os Estados Unidos. Mas elas lhe escaparam e adquiriram dinâmicas próprias. O dilema de Triffin está na sua origem [1].

A questão central que se coloca doravante é saber se uma ordem global poderá ser recomposta ou se ordens regionais –agora que certas relações entre eles se desenvolvem de maneira autónoma e com a construção dos seus próprios sistemas de valores e de representações – não serão a solução do futuro nos próximos anos.

O declínio do império americano…

Os Estados Unidos dispunham, desde o princípio da última década do século XX, de uma supremacia total, tanto militar como económica, tanto política como cultural. A potência americana reunia então a totalidade das características do “poder dominante” global, capaz de influenciar o conjunto dos atores sem ter de usar diretamente a sua força e impondo as suas representações e o seu vocabulário. Esta hegemonia, que naturalmente também se traduzia pela adoção generalizada de regras de livre comércio com a passagem do GATT à OMC em 1994, vai se desmoronar progressivamente diante das crises financeiras que os Estados Unidos não saberão e não poderão controlar (1997-99 e 2007-200), fracassos militares patentes (no Iraque e no Afeganistão) e na emergência rápida de novas potências (China, Índia, Brasil mas doravante também a Indonésia e a Turquia) ou de antigas que souberam reinventar-se (a Rússia).

A crise financeira de 2007-2009, que se denomina “crise das subprimes”, e decorre após a “crise asiática” (e russa) de 1997-1999, foi um momento importante no questionamento da ordem mundial que emergira em 1991-1992, assim como foi uma grande reviravolta na ordem económica.

A ordem mundial, que aparentava de facto a uma Pax Americana, está a desintegrar-se rapidamente tanto devido às incapacidades e erros cometidos pelos dirigentes dos Estados Unidos como pela ascensão de outras potências. A globalização, que fora aceite como um quadro único das atividades económicas, começa na realidade a desfazer-se e a ser posta em causa mesmo antes da crise de 2008-2010 com a emergência dos BRICS.

Esta desintegração é acompanhada também por um reforço parcial. Se os Estados Unidos perdem a sua capacidade de hegemonizar o conjunto do globo, capacidade que era real no princípio dos anos 1990, eles reforçam progressivamente o seu controle sobre os seus aliados europeus. Estes últimos doravante parecem incapazes de contestar a dominância dos Estados Unidos como haviam conseguido fazer acerca da invasão do Iraque (2003). O processo de tomada de controle dos Estados Unidos sobre a União Europeia, processo que havia sido encetado aquando das guerras civis dos Balcãs na sequência da dissolução da Jugoslávia e das operações contra a Sérvia a respeito do Kosovo, desenvolveu-se amplamente com a intervenção na Líbia e tornou-se evidente no período que vai da ruptura das negociações com o Irão (2016) ao período atual.

Mas este reforço local da dominação americana deve-se muito à crise de legitimidade política que mina as instituições da UE, instituições em que cada avanço rumo ao federalismo revela as contradições internas (o conflito franco-alemão sobre a questão da energia sendo o último exemplo) e o seu caráter disfuncional. Cada crise (como a do COVID-19 e a da energia, nomeadamente) engendra um impulso para o federalismo, mas que põe as instituições europeias em contradição com os valores da “democracia” que supostamente elas defendem. Isto reforça a contestação soberanista no seio da UE e conduz a múltiplas tensões entre os países membros da UE (Hungria, Polónia, Áustria) sem esquecer a saída dos Reino Unidos da UE (o “Brexit”).

Os Estados Unidos perderam o domínio sobre o que eles próprios qualificavam de “pátio das traseiras”, ou seja, os países da América Latina. A emancipação progressiva destes países fora da tutela dos EUA, emancipação conduzida pelo par Brasil-Argentina (e provavelmente Chile) é um fenómeno de uma amplitude bem mais considerável que a contestação efectuada pelos Estados ditos revolucionários (Cuba, Nicarágua, Venezuela). A isto convém acrescentar a perda de influência dos Estados Unidos no Médio Oriente, perda que se tornou evidente com a nova política de países como a Arábia Saudita, Turquia e Emirados Árabes Unidos, mas que estava em gestação desde o fracasso da invasão do Iraque em 2003 e da incapacidade dos Estados Unidos de reconstruir o país para dele fazer um aliado constante.

Os Estados Unidos estão portanto confrontados com um declínio multiforme, declínio económico (validando a ideia de um “dilema de Triffin”), mas também declínio nas capacidades geopolíticas, declínio militar (fracasso da guerra no Iraque, retirada catastrófica do Afeganistão em 2021) e, finalmente, declínio de influência com a ascensão de órgãos de imprensa e medias saídos dos “novos” países e contestando cada vez mais a dominação informacional americana.

A emergência dos BRICS: polo de reconstrução de uma nova “ordem mundial”?

Convém recordar que os BRICS são à partida uma ideia “ocidental” e financeira (mercados emergentes). Esta ideia saiu diretamente da esfera financeira (Goldman Sachs, 2003). Mas os países ditos “emergentes” reapropriaram-se desta ideia e progressivamente transformaram-na num sentido radicalmente novo. Hoje, vinte ano após o aparecimento da sigla sob a pena de um analista da Goldman Sachs (Jim O’Neill), o sentido desta sigla tornou-se cada vez mais sinónimo de “Sul Coletivo” numa oposição a “Ocidente Coletivo” que se pode também chamar “Norte Coletivo”.

A progressiva institucionalização dos BRICS, encetada em 2005 acelera-se após a crise de 2008-2010 (criação do Novo Banco de Desenvolvimento, cimeiras anuais regulares, criação de um secretariado). Esta institucionalização transforma o grupo de países numa estrutura propondo um modo de desenvolvimento alternativo oferecendo doravante créditos (via NBD) aos outros países em desenvolvimento e executando projetos dentre os quais o mais conhecido é aquele das “novas rotas da seda” mas também projetos russos e indianos. Através da constituição de fontes de financiamento alternativas, eles tornam-se uma referência para o que se chama o “Sul Coletivo”.

O grupo dos BRICS mudou mais uma vez de natureza a partir de 2022 com a subida do número de pedidos de adesão (19 países, dois quais 8 identificados). Notar-se-á a presença de um país da NATO entre os países que pediram a sua adesão. O seu PIB acumulado, calculado em PPC, já ultrapassa o do G-7.

Tabela 1
Membros e países filiados ao G7, ao grupo dos BRICS e à OCS

Países do G-7 Países membros do BRICS Países membros da OCS
Canadá
França
Alemanha
Itália
Japão
Reino Unido
Estados Unidos
Brasil
China
Índia
Rússia
República da África do Sul
China
Índia
Rússia
Irão
Cazaquistão
Quirguistão
Usbequistão
Tajiquistão
Paquistão
Países considerados como “aliados” dos do G-7 Países tendo pedido a sua adesão aos BRICS Países parceiros ou observadores
Austrália
Áustria
Bélgica
Grécia
Hungria
Irlanda
Coreia do Sul
Países Baixos
Nova Zelândia
Noruega
Polónia
Portugal
Roménia
Singapura
Espanha
Suécia
Argélia
Argentina
Arábia Saudita
Barain
Egito
Emirados Árabes Unidos
Indonésia
Irão
Turquia
Arménia
Afeganistão
Azerbaijão
Bielorússia
Camboja
Mongólia
Nepal
Sri Lanka
Turquia
O peso dos BRICS conjuga-se com o desenvolvimento da Organização de Cooperação de Shangai. A OCS foi, inicialmente, concebida como uma organização de segurança regional, encarregada de tratar os problemas decorrentes da desestabilização do Afeganistão. Ela tende, progressivamente, a estender seu domínio de competência.
Gráfico 1
Gráfico 1.
Fonte : FMI via apresentação de Jacques Sapir, CEMI-EGE
Os dados para 2022 são estimativas.
Os dados para 2023 e 2024 são previsões

Vê-se de imediato duas dinâmicas de expansão diferentes, mas que talvez estejam destinadas a conjugar-se. Os BRICS vão se estender mundialmente, ainda que esta extensão afete países com diferentes níveis de desenvolvimento. Isto corresponde a uma vontade de autonomia em relação a instituições de desenvolvimento e a regras que são consideradas como dominadas ou impostas pelos países do “Norte”. A OCS, por sua vez, desenvolve-se devido a uma necessidade de segurança manifestada por um certo número de países. No momento, estes países estão quase todos, com exceção da Bielorússia, na mesma “região”. Mas a questão de saber se a OCS está destinada a permanecer uma organização puramente regional, centrada na Ásia Central, ou se está destinada a estender a sua área geográfica para nela inscrever o Oceano Índico, ou mesmo uma parte do Médio Oriente, coloca-se. De facto, ela se afirma como portadora de um projeto de segurança alternativo às organizações ligadas aos Estados Unidos e à NATO.

Além da OCS, uma outra organização regional desempenhou um papel importante na solidificação de um bloco em torno da Rússia, é a Comunidade Económica Euro-asiática. No dia 1º de Janeiro de 2012, os quatro Estados (Bielorússia, Casaquistão, Arménia e Rússia) estabeleceram o espaço económico comum que garante o funcionamento efetivo do mercado comum para os bens, os serviços, o capital e o trabalho, e estabeleceu políticas industriais, de transportes, energéticas e agrícolas coerentes. A Comissão Euro-asiática suprema (composta pelos chefes económicos euro-asiáticos serve de agência regulatória dos Estados da União) decorre uma vez por ano para a União Aduaneira Euro-asiática, e espaço económico com e a união económica euro-asiática. A União Económica Euro-asiática pode ser considerada como sendo a continuidade desta união económica. Ela assinou acordos com a Coreia do Sul (2017) e depois com a China e o Irão (2018).

Os BRICS tornaram-se, tanto pelo projeto como pela força das coisas, uma forma de reagrupamento de um “Sul Coletivo” frente a um “Ocidente Coletivo” a partir do princípio das hostilidades na Ucrânia. A importância dos BRICS nas exportações, e também no crescimento mundial, não é preciso demonstrar.

Gráfico 2
Gráfico 2.
Fonte : FMI via apresentação de Jacques Sapir, CEMI-EGE

O desenvolvimento agora rápido, e mesmo “explosivo” do comércio da Rússia com os países asiáticos e aqueles do Médio Oriente, o reforço do comércio da China com estes mesmos países, pode constituir uma indicação das tendências que estão por vir. O papel em matéria de segurança da China e da Rússia tenderá a reforçar-se, provavelmente em ligação com o da Índia, em zonas como o Oceano Índico, mas também a África e o Médio Oriente. O acordo recente entre a Arábia Saudita e o Irão, que foi assinado sob a égide da China, a política de distanciamento da Arábia Saudita em relação aos Estados Unidos e sua aproximação comercial com a Rússia (quer no quadro da OPEP+ quer nas relações bilaterais), a decisão, enfim, de utilizar o Yuan e não mais o dólar americano num certo número de transações petrolíferas e gasistas, é um bom indicador da interpenetração entre as lógicas geopolítica e de segurança e as lógicas comerciais.

A sub-representação dos países dos BRICS nas principais instituições financeiras internacionais coloca também um grande problema e evidencia estas instituições como uma emanação dos países do “Norte”, legitimando portanto a construção de instituições específicas para os países do “Sul”.

Tabela 2
Parte dos países dos BRICS na instituições financeiras internacionais

Banco Mundial IDA MIGA FMI Quota para os DES
Nº de votos % do total Nº de votos % do total Nº de votos % do total Nº de votos % do total Milhões % do total
Brasil 54,264 2.11 478,0 1.66 2,83 1.3 111,9 2.22 11,0 2.32
Rússia 67,26 2.62 90,65 0.31 5,752 2.64 130,5 2.59 12,9 2.71
Índia 76,777 2.99 835,2 2.89 1,218 0.56 132,6 2.63 13,1 2.76
China 131,426 5.11 661,0 2.29 5,754 2.64 306,3 6.08 30,5 6.41
RAS 18,698 0.73 74,37 0.26 1,886 0.86 32,0 0.63 3,1 0.64
Total 348,425 13.56 2,139,1 7.41 17,44 8.0 713,2 14.15 70,6 14.84

Significado dos acrónimos: IDA, International Development Association; MIGA, Multilateral Investment Guarantee Agency, FMI, Fundo Monetário Internacional, DTS, Direitos Especiais de Saque (geridos pelo FMI)
Fonte: Liu Z. & Papa M., “Can BRICS De-dollarize the Global Financial System” in  Elements in the Economics of Emerging Markets, Cambridge University Press, January 2022, Table 5, p. 56.

A emergência de uma desglobalização e suas consequências

Estamos, e desde há vários anos, na presença de um fenómeno de “desglobalização” ou de “desmundialização”. Isto foi reconhecido pelo FMI e várias outras instituições internacionais.

Constata-se portanto um importante recuo do multilateralismo a partir dos anos 2010, assinalado pelas organizações internacionais. Ele assume a forme de movimentos de “re-shoring” [re-escoramento] ou de “friendly shoring” [escoramento amistoso] e, globalmente, de medidas protecionistas que inquietam cada vez mais as instituições do “Norte” [2]. Estas medidas protecionistas não se limitam a restrições às importações mais doravante afetam cada vez mais restrições às exportações, que são frequentemente tomadas nos domínios considerados como “estratégicos”.

Este fenómeno é acompanhado de uma estagnação, mesmo de uma regressão, do comércio mundial em percentagem do PIB, estagnação que parece remontar à crise financeira de 2007-2009. Em retrospectiva, esta crise parece mesmo como uma grande crise da mundialização da qual nem todas as lições foram extraídas.

Somos a partir de agora confrontado com um mundo que não pode mais ser regido por regras únicas a-políticas. O fim da globalização mede-se essencialmente pelo retorno do POLÍTICO (e não “da política”) no seio das relações internacionais, ou seja, a “relação amigo/inimigo”. A desmundialização que se desenrola diante dos nossos olhos é movida pelo retorno das nações e a crise do multilateralismo não é senão o retorno do político à escala mundial.

O fenómeno da mundialização, e o que o havia constituído num “facto social” generalizado, era um duplo movimento: a combinação, mas também o emaranhamento dos fluxos de mercadorias e dos fluxos financeiros E o desenvolvimento de uma forma de governo (ou de governação) em que o económico parecia dever prevalecer sobre o político. Com efeito, a “mundialização” caracteriza-se por um duplo movimento em que se vê as empresas a tentarem precedência sobre os Estados e a normas e as regras sobre a política. Este processo resulta na negação da democracia. Ora, sobre este ponto não podemos senão constatar uma retomada destes fluxos pelos Estados, um retorno vitorioso da política. Este movimento chama-se o retorno da soberania dos Estados.

Este fenómeno, convém recordar, foi iniciado pelos Estados Unidos.

Com efeito, este questionamento do multilateralismo foi iniciado, na realidade por um dos países que mais haviam feito para impô-lo: os Estados Unidos. A implementação de diversas medias, como o Foreign Corrupt Practices Act, lei votada em 1977 mas que adquiriu toda a sua importância com uma modificação de 1998 e sua aplicação agressiva a partir dos anos 2000, e o Foreign Account Tax Compliance Act de 2010. A retirada americana do acordo de Viena com o Irão (o Joint Comprehensive Plan of Action) desempenhou um papel de acelerador. Na verdade, ele não visava exclusivamente isolar o Irão por meio de sanções económicas. Por medo de represálias devido à aplicação extra-territórial do direito americano, a denúncia deste acordo permitiu atingir a França e a Alemanha. Na realidade, estas medidas levaram países a tomarem contra-medidas, de modo concertado.

Portanto, historicamente os Estados Unidos aparecerão como o país que iniciou a destruição de uma ordem da qual era o principal beneficiário.

Entretanto, a destruição da ordem antiga coloca vários problemas:

  • A nova ordem resultará da emergência de uma nova “hiper-potência” (como no caso dos Estados Unidos que sucederam à Grã-Bretanha) ou se assistirá antes a uma ordem internacional a constituir-se progressivamente numa base multipolar?
  • A construção de uma ordem mundial fundamentada sobre a multipolaridade coloca por sua vez a questão de saber se termos e noções comuns poderão emergir entre estes diferente polos. Entrarão eles numa lógica em que a cooperação dominará sobre a concorrência ou, antes, a concorrência (sob a forma de um policentrismo ativo) prevalecerá sobre a cooperação?
  • A que ritmo de fará a mudança? Poderia ela verificar-se de maneira “catastrófica” após uma nova crise (ou guerra) internacional ou, ao contrário, será ela caracterizada por um período de transição relativamente longo que permita às instituições potencialmente em concorrência encontrar modos de concertação e de regulação?

Estas diversas questões resumem bem a complexidade dos problemas levantados pelo fim da “ordem antiga” e pela emergência de uma “nova ordem”. Assim, mesmo no caso da emergência da ordem pós segunda guerra mundial, o período de estabelecimento estende-se de 1944 ao começo dos anos cinquenta com a emergência do movimento de descolonização, a estabilização progressiva do FMI e aquela do GATT. Não se deve, tão pouco, opor-nos de maneira demasiado simplista uma construção pela concertação e uma construção através da emergência de uma nova potência dominante. No primeiro caso, certos países têm evidentemente mais peso que outros e na emergência de uma nova potência dominante elementos de concertação estarão necessariamente presentes. O que pode parecer excluído é a repetição de uma situação como a dos anos 1990-1992 com a emergência, aceite na época, dos Estados Unidos como potência universalmente dominante.

Um caso de aplicação do policentrismo: o sistema monetário internacional

É preciso constatar que a ordem internacional arruinou-se também no domínio monetário. Este repousava, desde o fim dos acordos de Bretton-Woods em 1973, sobre um sistema que se pode qualificar de padrão-dólar. Este sistema sempre foi relativamente disfuncional, mas tem-no sido cada vez mais desde os anos 2000.

A tese defendida por Michel Aglietta de um “fim das divisas-chaves” [3], substituídas por moedas multinacionais por enquanto tem sido um fracasso. A dimensão de “bem público” de uma moeda internacional, ainda que ela seja incontestável, não tem sido suficiente para engendrar a criação de uma verdadeira moeda internacional. A parte do Euro, que foi precisamente uma tentativa neste sentido [4], continua significativamente inferior à parte das moedas europeias nas reservas cambiais do Bancos Centrais antes de 1999.

Gráfico 3
Gráfico 3.
Fonte: COFER, FMI (via apresentação de J. Sapir)

Esta incapacidade do Euro para corresponder às ambições dos seus partidários tem sido atribuída a diversas causas: falta de um referencial político sobre o qual se apoiar e problemas ligados à estrutura de governação, dilema de Triffin invertido (a Zona Euro geralmente está em excedente comercial em relação ao resto do mundo), crises sucessivas que têm agitado a Zona Euro.

Se tanto o Dólar como o Euro baixam, isto se deve à subida das “outras moedas” utilizadas como reservas pelos bancos centrais. Portanto está claro, e isto desde 2010, que se está na presença de uma tendência à fragmentação do sistema monetário internacional, tendência em parte induzida por razões de segurança geopolíticas.

Gráfico 4
Gráfico 4.
Fonte: COFER, FMI (via apresentação de J. Sapir)

A ascensão das “outras moedas” nas reservas internacionais, ascensão que é um indicador seguro do processo de fragmentação do sistema monetário internacional, acelerou-se a partir da crise do Covid-19. Mas ela já existia antes. O ponto importante é que a parte do Dólar dos Estados Unidos posteriormente acelerou a sua baixa com a crise sanitária, após um pequeno ressalto ligado ao princípio das operações militares na Ucrânia – ressalto que pode estar ligado ao papel de direção da NATO desempenhado pelos Estados Unidos – e recomeçou a baixar fortemente, apesar pode-se dizer deste papel. Este ponto é importante, ainda que a sua interpretação no momento seja difícil: os Estados Unidos pagam a relativa ineficácia do apoio da NATO à Ucrânia ou o Dólar sofre a consequência da diversificação das moedas de pagamentos no quadro do que é preciso denominar um processo de “desdolarização”?

Gráfico 5
Gráfico 5.
Fonte: COFER, FMI (via apresentação de J. Sapir)

Neste contexto, a perspectiva de uma “moeda dos BRICS” é interessante, mas este projeto é e será complexo para executar. Ele vai colocar o problema da implicação de países tendo dimensões económicas muito diferentes. Esta moeda, se ela vier à luz, será além disso uma “moeda comum” e não uma “moeda única” conforme o modelo do Euro. Além disso, ainda não está decidido se esta moeda servirá unicamente para as transaçõe no interior dos BRICS, caso em que se trataria de uma forma de câmara de compensação para os intercâmbios entre os países considerados, ou se ela será uma moeda capaz de tratar dos intercâmbio entre os países dos BRICS (inclusive dos novos aderentes) e o resto do mundo. Este projeto não pode ser senão um projeto parcial e a longo prazo e não poderá ser concluído senão daqui a vários anos. No entanto, continua extremamente interessante e contribui com uma pedra suplementar para o policentrismo monetário que está em vias de ser implementado.

A tendência de perda de influência do dólar é antiga mas lenta. Ela confirma o “dilema de Triffin” e é acompanhada pela redução da parte da economia mundial ocupada pela economia dos Estados Unidos. Por razões institucionais, como a sua utilização maciça como unidade de conta em numerosos mercados de matérias-primas e por razões de oportunidade prática.

Desglobalização e des-ocidentalização do mundo

A “desglobalização” que se constata está em vias de assumir a forma de uma fragmentação do espaço internacional em “blocos” mais ou menos antagónicos. As hostilidades na Ucrânia tenderam a endurecer os antagonismos como se verifica com proposições visando transformar o G-7 numa “NATO” económica. Mas estas hostilidades não criaram o fenómeno. Ele estava em germe desde 2014 e da expulsão da Rússia do G-8, assim como desde o agravamento do contencioso comercial entre a China e os Estados Unidos e o caso “Huawei”.

Esta fragmentação é claramente visível no espaço monetário e financeiro. Sem dúvida é aí que a conflitualidade potencial é mais elevada. Com efeito, a ruptura atual torna pouco provável a constituição de um novo “Bretton Woods” (1944), ou mesmo de novos “Acordos da Jamaica” (1971) que implicariam a emergência de uma forma de consenso internacional. Este consenso não inconcebível. Mas no momento atual ele continua muito pouco provável e implicará, para se constituir, que os diferentes blocos façam compromissos de maneira consciente.

Acerca deste ponto, convém dizer que a ameaça de um “confisco” dos haveres russos congelados pelas decisões dos Estados Unidos e da União Europeia representa um grande risco para os fluxos financeiros e os IDE à escala internacional. Efetivamente, se se passasse de um “congelamento” a um “confisco”, além do facto de que medidas de retorsão certamente seriam tomadas pela Rússia, a mensagem que se estaria a enviar ao “resto do mundo” seria que os países constitutivos do “Ocidente Coletivo” não respeitam a propriedade dos outros. Note-se que gestos desta natureza, mas simbolicamente bem menos fortes, já foram tomadas pelos Estados Unidos a propósito do Iraque (onde no entanto se podia argumentar com o desaparecimento do Estado iraquiano na sequência da invasão pelos Estados Unidos) e do Afeganistão. Um tal gesto colocaria em causa a segurança dos capitais e dos investimentos (em particular os investimentos feitos por fundos soberanos) à escala mundial e provocaria uma ruptura nos movimentos financeiros e nos fluxos dos IDE entre os países do “Ocidente Coletivo” e o resto do mundo.

A decisão dos países produtores de hidrocarbonetos do Médio Oriente de começar a “sair” da zona dólar, decisão que se pode ligar a esta ameaça de confisco dos haveres russos, é certamente a forma mais significativa desta fragmentação monetária.

A “desglobalização” é também em grande medida uma “des-ocidentalização” do mundo que se traduz sobretudo – mas não unicamente – na contração da influência da Europa.

  • A “aldeia global” (Mc Luhan) não fala mais apenas o inglês. Constata-se uma ascensão das representações divergentes do “Sul” em relação às representações do “Norte”. Esta ascensão das representações divergentes é também o resultado da ascensão dos medias do “Sul” (Índia, Indonésia, Singapura, mas também África do Sul, Nigéria, Quénia, Brasil e Argentina). Deste ponto de vista deve-se fazer uma comparação entre a situação no momento da operação internacional no Kuwait (1991) em que as representações americanas (via CNN) eram amplamente dominantes e a situação atual marcada por uma pluralidade de medias e de vetores de informação, com uma emergência rápida dos media e vetores do “Sul”. Os países do “Ocidente Coletivo” deverão habituar-se a não serem mais dominantes na informação e mesmo a serem cada vez mais marginalizados.
  • A Europa, no sentido da União Europeia, é certamente a mais afetada por este fenómeno pois ela abdicou de toda autonomia política e não soube construir um “soft-power” global. Deste ponto de vista a crise no processo de marcha rumo ao federalismo europeu é manifesto. Se, a cada nova crise económica (crise da dívida após a crise das “subprimes”, crise do Covid-19, crise da energia) são efetuadas tentativas de fazer avançar a UE rumo a um modelo federal, cada uma destas tentativas não faz senão por mais em evidência o problema da crise de legitimidade do modo de governação da UE e afasta-a sempre para mais longe do campo realmente político em direção a campos técnicos mas onde a execução de medidas eventuais choca-se novamente com uma questão de legitimidade política.

As perspectivas do crescimento mundial só traduzem este movimento de desocidentalização do mundo e sua deseuropeização.

Tabela 3
Taxa de crescimento por grupos de países desde a crise do Covid-19

2019 2020 2021 2022 2023 2024
Mundo 2,80% -2,80% 6,30% 3,40% 2,80% 3,00%
Economias avançadas 1,70% -4,20% 5,40% 2,70% 1,30% 1,40%
   Das quais: UE 2,00% -5,60% 5,60% 3,70% 0,70% 1,60%
   Das quais: Zona EURO 1,60% -6,10% 5,40% 3,50% 0,80% 1,40%
Estados Unidos 2,30% -2,80% 5,90% 2,10% 1,60% 1,10%
Japão -0,40% -4,30% 2,10% 1,10% 1,30% 1,00%
Economias emergentes e em desenvolvimento 3,60% -1,80% 6,90% 4,00% 3,90% 4,20%
   Das quais: Economias emergentes da Ásia 5,20% -0,50% 7,50% 4,40% 5,30% 5,10%
   Das quais: Economias emergentes da Europa 2,50% -1,60% 7,30% 0,80% 1,20% 2,50%

2023 e 2024 são previsões. 2022 são estimativas.
Fonte: IMF, World Economic Outlook, Appendix A, https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2023/04/11/world-economic-outlook-april-2023#statisticalEntretanto, é de esperar que esta constituição de “blocos” antagónicos permita a manutenção de fluxos comerciais e financeiros entre os mesmos.

No entanto, os fluxos de mercadorias, os fluxos financeiros, os fluxos de informação, não vão cessar mas não serão mais hegemonizados pelos países do “Norte”.

As repercussões no seio dos países

As mudanças na ordem mundial a que se assistiu desde o fim de 2019 significaram o fim do contrato social implícito que predominava nos países desenvolvidos.

  • A forte alta dos preços que começou em meados de Junho de 2021 implica uma crise de um modelo social fundamentado sobre uma financiarização acelerada com a manutenção de uma estabilidade de preços permitida por fluxos de importações a baixos custos.
  • Isso leva a uma tomada de consciência, mais ou menos rápida e mais ou menos importante conforme o país considerado, de que a continuidade do modelo de crescimento ligado à desindustrialização já não era possível.
  • Além disso, a tomada de consciência dos limites ecológicos do antigo modelo de crescimento, limites que muito frequentemente são reduzidos à questão da desregulamentação climática mas que na realidade incluem a questão dos resíduos e da poluição dos solos e da água, também se afirmou através do choque social induzidos pela pandemia do COVID-19.

Contudo, estas mudanças não se limitam às economias desenvolvidas. A “nova ordem mundial” implica uma mudança de modelos de desenvolvimento para os países do “Sul Coletivo”:

  • Para a Rússia, esta é a estratégia de desenvolvimento adotada desde os anos 2000 e fundada sobre os laços de dependência recíproca com as economias europeias (energias/produtos manufaturados) é é posta em causa. O modelo da venda de uma energia barata contra investimentos industriais e importações de bens manufaturados e de tecnologia foi invalidade.

A Rússia não está só neste caso. A Índia e a China poderiam muito bem, daqui a alguns meses ou alguns anos, serem confrontadas com questionamentos semelhantes.

  • Que abertura da ÍNDIA diante das pressões crescentes dos Estados Unidos? Um modelo “neo-nacionalista”, retomando a política dos anos 1950-1970, poderia surgir?
  • Que dinâmica para a CHINA no momento em que o conflito comercial com os Estados Unidos se envenena dia a dia?
  • Pode-se considerar que um modelo de “soberanismo económico” está em vias de ganhar terreno? Qual será o desenvolvimento de “modelos” de industrialização específicos na TURQUIA, na INDONÉSIA e também para países como a Argélia, o Egito, a Nigéria, os países da África Ocidental?

Globalmente, o grau de abertura dos BRICS tendeu a reduzir-se ao longo dos dez anos a partir da crise de 2008-2010. Os países dos BRICS procuraram reduzir a sua dependência do comércio internacional e este processo deveria naturalmente acelerar-se nas circunstâncias atuais marcadas por uma politização cada vez maior dos intercâmbios internacionais. Isto traduz a necessidade para estes países de construir e desenvolver seu mercado interno. Mas este movimento reflete também a tomada de consciência de que os intercâmbio económicos podem ser instrumentalizados pela “potência dominante” e, portanto, que podem, para além de um certo limite, revelar-se fontes de vulnerabilidades. Resultarão estas mudanças num novo “pacto social para a produção”?

Será que se está a retornar a um “bom senso” protecionista após os excessos do “livre comércio”?

Conclusão

  • Desde o princípio de 2022 assistimos a uma aceleração das transformações que já estavam em curso desde pelo menos a uma dezena de anos na economia mundial. Estas transformações assinam a sentença de morte da ordem mundial saída do princípio dos anos 1990.
  • Esta sentença de morte toma a forma da ascensão das organizações não ocidentais (BRICS, OCS) na vida internacional, do questionamento brutal do livre comércio generalizado e do sistema monetário internacional. Esta mudança na ordem mundial toma a forma de uma desocidentalização do mundo e pretende, erradamente ou com razão, mergulhar suas raízes no movimento de descolonização dos anos 1950-1960.
  • Mas estas transformações afetam também o pacto social, quer seja ele implícito ou explícito, que funcionava na maior parte dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento. Ele confronta os países desenvolvidos com a impossibilidade de prosseguir na via que era sua desde o começo dos anos 1990.
  • Esta mudança exige aos países emergentes ou em desenvolvimento que se afastem da financiarização das atividades e que não tentem imitar a trajetória passada dos países desenvolvidos. Em ambos os casos, estabelece-se que o Estado terá de desempenhar um papel mais importante – direta ou indiretamente – na atividade económica e na estruturação da sociedade.

Anexo
O seminário foi realizado conforme as chamadas regras de Chatham House. As propostas dos participantes não são referenciadas deliberadamente.

Lista dos participantes
Boris Nikolaevich Porfiryev  – Responsable scientifique de l’IPE-ASR, Académicien à l’Académie des Sciences de Russie
Alexander A. Shirov  – Directeur de l’Institut de prévision économique de l’Académie russe des sciences (IPE-ASR), membre correspondant de l’Académie des sciences de Russie
Dmitry Kuvalin  – Directeur adjoint de l’IPE-ASR, docteur en économie, chef de laboratoire
Oleg Dzhondovich Govtvan  – Chercheur en chef, l’IPE-ASR, docteur en économie
Igor Eduardovich Frolov  – Directeur adjoint de l’IPE-ASR, docteur en économie
Yury Alekseevich Shcherbanin  – Chef de laboratoire, Institut d’économie, Académie russe des sciences, docteur en économie, professeur
Valery Semikashev  – Chef de laboratoire, Institut d’économie, Académie russe des sciences, candidat en sciences économiques
Elena Valerievna Ordynskaya  – Chef de laboratoire, Institut d’économie, Académie russe des sciences, candidate en sciences économiques
Alexander Olegovich Baranov  – Directeur adjoint de l’Institut d’économie et de commerce de la branche sibérienne de l’Académie russe des sciences (Novosibirsk), docteur en économie
Mariam Voskanyan  – Chef du Département d’économie et de finance de l’Institut d’économie et de commerce de l’Université russo-arménienne, docteur en économie, professeur
Ashot Tavadyan  – Chef de département à l’Université russo-arménienne, docteur en économie, professeur
Irina Petrosyan  – Chef de département à l’Université russo-arménienne, candidate en sciences économiques
Alexander Vladislavovich Gotovsky  – Directeur adjoint de l’Institut d’économie de l’Académie nationale des sciences de la République du Bélarus, candidat en sciences économiques
Jacques Sapir  – Directeur du Centre d’études des modes d’industrialisation (CEMI-EGE), Directeur d’études de l’École des hautes études en sciences sociales (EHESS), enseignant à l’École de Guerre Économique, membre étranger de l’Académie des Sciences de Russie.
Hélène Clément-Pitiot  – Chercheuse CEMI-EGE, Maître de conférences à l’Université de Cergy-Pontoise et CEMI
Jean-Michel Salmon  – Maître de Conférences à l’Université de la Martinique (Université de la Martinique), chercheur au CEMI-EGE
Renaud Bouchard  – Chercheur au CEMI-EGE
Maxime Izoulet  – Chercheur CEMI-EGE, Éducation nationale.
David Cayla  – Maître de Conférences à l’Université d’Angers (Université d’Angers)

Notas
[1]  Triffin, R.,  Gold and the Dollar Crisis. The Future of Convertibility, New Haven, Connecticut, Yale University Press et London: Oxford University Press, 1960.
[2]  https://www.imf.org/en/Publications/fandd/issues/2023/06/growing-threats-to-global-trade-goldberg-reed
[3]  Aglietta M.,  La fin des devises clefs, Paris, La Découverte, coll. Agalma, 1986.
[4]  Aglietta M., (dir),  L’Ecu et la vieille dame, Paris, Economica, 1986.

Este texto foi redigido na sequência da 65ª sessão do seminário Franco-Russo co-organizado pelo Centro de Estados dos Modos de Industrialização da Escola de Guerra Económica (Paris) e pelo Instituto de Previsão Económica da Academia de Ciências da Rússia (Moscovo). O seminário efetuou-se de 3 a 5 de Julho tanto à distância como presencialmente e foi abrigado no edifício da Escola de Guerra Económica, à qual agradeço. Ele reuniu investigadores franceses, russo e também arménios e da Bielorússia.
Este texto foi redigido seguindo as regras de Chatham House. As intervenções dos participantes são anónimas. O autor agradece aos seus colegas pelas observações e contribuições efetuadas durante o seminário. Ele permanece como único responsável pelos erros e omissões do presente texto.

Fonte da matéria: Rumo a uma nova ordem mundial – https://resistir.info/crise/sapir_13jul23.html

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