Sociedade

“Antropologia” de Darwin é chave para entender o Antropoceno

Tempo de leitura: 9 min

Luiz Prado – Livro do professor da USP José Eli da Veiga avalia recepção da ideia de Antropoceno nas humanidades e sugere resgate de “teoria esquecida” do naturalista inglês.

A ideia de tempo geológico diz respeito a toda a história do planeta Terra, desde sua origem até o presente. É organizado em éons, eras, períodos e épocas, divisões que procuram apontar as transformações mais significativas pelas quais o planeta passou em seus 4,6 bilhões de anos. Assim, o Arqueano, por exemplo, é o éon durante o qual a crosta terrestre foi formada, há cerca de 4 bilhões de anos. Já o Mesozoico, que teve início 250 milhões de anos atrás, é famoso por ser a era de surgimento, apogeu e desaparecimento dos dinossauros, compreendendo os períodos Triássico, Jurássico e Cretáceo.

Atualmente, estamos no éon Farenozoico, que começou há 542 milhões de anos e é marcado pela explosão de vida na Terra. A era é a Cenozoica, momento em que a superfície do planeta adquiriu sua forma atual, há mais ou menos 65,5 milhões de anos. Já o período é o Quaternário, quando surgiu o Homo sapiens, 2,6 milhões de anos atrás. A época, por sua vez, é o Holoceno, iniciada com o derretimento das grandes geleiras e o fim do último momento glacial do planeta, há 12 mil anos. É também a etapa do crescimento da presença e do impacto humano sobre a Terra.

Pelo tamanho das transformações imprimidas pela humanidade ao planeta – com extinção de espécies, mudanças climáticas, poluição atmosférica, alterações brutais na flora e outros efeitos –, amplia-se o número de cientistas e pesquisadores que anunciam o fim do Holoceno e o surgimento de uma nova época, o Antropoceno. Sem consenso a respeito do momento exato de seu início, mas tendo a segunda metade do século 20 como uma referência, os especialistas concordam em que a espécie humana se tornou uma força determinante nas alterações pelas quais passa a Terra, para o bem ou para o mal.

Dizer que toda a comunidade científica concorda em que as dores e as delícias correspondentes ao que o planeta se tornou caiam na conta da humanidade não é exatamente correto, entretanto. Isso porque, para uma parte da intelectualidade internacional, sobretudo nas humanidades, as agressivas transformações vividas pela Terra são resultado das expansões do sistema capitalista e de seu processo desenfreado de industrialização, impulsionado pelos combustíveis fósseis. Para esses estudiosos, o mais correto seria, portanto, chamar o período atual de Capitaloceno, dando nome aos bois.

É essa recepção, um tanto resistente, à noção de Antropoceno nas ciências humanas que inspira O Antropoceno e as Humanidades, novo livro de José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e colunista da Rádio USP. Espécie de continuação de sua publicação de 2019, O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra, o volume agrega uma revisão bibliográfica de fôlego ao apelo pela descoberta do “antropólogo Charles Darwin” pelos pesquisadores das ciências humanas.

Veiga refere-se ao pensamento de Darwin presente em seu livro de 1871, The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex. Muito menos lido, lembrado, celebrado ou criticado do que The Origin of Species (1859), a obra de 1871 corresponderia à segunda metade da teoria darwiniana da seleção natural, conforme explica o professor. Seria a “metade faltante” ou “ausente” de sua obra-prima.

Ao se deter sobre a humanidade e o processo civilizador, o que Darwin registrou não foi simplesmente a aplicação direta da seleção natural, suposição que levaria ao darwinismo social de Herbert Spencer ou às proposições eugenistas de Francis Galton. Ao contrário, o naturalista entendeu que, na sociedade humana, a luta pela existência é superada por outros fatores.

Ao transformar o ambiente ao redor, os humanos se libertaram em grande medida da seleção natural e foram os instintos sociais relacionados à organização comunitária, à cooperação e aos comportamentos solidários que prevaleceram. Da barbárie para a civilização, a evolução eliminatória deu lugar à proteção e ao reconhecimento do outro como um semelhante. Ou seja, na humanidade, a seleção natural acabou levando justamente ao seu contrário.

Mas o que isso tem a ver com o Antropoceno? Veiga vê nesse entendimento de Darwin uma maneira original de se compreender a relação entre natureza e cultura, na qual a segunda não é tão somente uma mudança qualitativa, uma ruptura em relação à primeira. Ao sugerir que a seleção natural, quando encontra a humanidade, deságua em seu oposto, Darwin estaria indicando que a passagem natureza-cultura é reversiva. Uma seria o avesso indissociável da outra e a natureza subsistiria em todos os pontos da cultura. Não existe planeta de um lado e seres humanos de outro, mas planeta e seres humanos, misturados de um jeito difícil de determinar os limites de cada um.

As ciências humanas ainda seriam “pré-darwinianas” nesse quesito, aponta o autor. Para grande parte desses cientistas, natureza e cultura continuam sendo vistas como universos separados, cujo ponto de contato passaria por uma fissura, variável de um pesquisador para outro. Ora no domínio da linguagem simbólica, ora na invenção do fogo, ora no tabu do incesto, por exemplo. Mas sempre marcando uma cisão entre os dois domínios.

Veiga defende que a compreensão do Antropoceno passa exatamente pela substituição dessa mirada apartada pela compreensão da unidade natureza-cultura. É esse ponto de vista que permitiria avanços significativos nas “novas ciências da complexidade”, a segunda perna do tripé para os estudos da “ciência do sistema Terra”.

A ciência da complexidade – profetizada pelo físico inglês Stephen Hawking como a ciência do século 21 – é um campo de estudos que aborda os objetos e acontecimentos do mundo de maneira integrada e abrangente, buscando transcender as fronteiras tradicionais das disciplinas científicas. Segundo o professor, ela entende que distintos fenômenos, como o sistema imunológico, o cérebro, um formigueiro ou mesmo redes econômicas, apresentam certas características em comum. Trata-se de grandes redes auto-organizadas que produzem comportamentos complexos e processam informações, a partir de alguns esquemas operacionais e sem controle central. E grande parte desses sistemas pode se adaptar e se transformar, seja através de aprendizado ou evolução.

O problema é que essa definição, conforme o próprio Veiga aponta, não é nada consensual entre os próprios pesquisadores da complexidade. Para se ter uma ideia, o jornalista científico John Horgan catalogou pelo menos 31 noções diferentes para o termo em seu livro The End of Science, publicado em 1996, enquanto, 25 anos depois, Fabricio Li Vigni ainda registrava 20 variantes para o entendimento da complexidade na obra Histoire et Sociologie des Sciences de la Complexité, de 2021. No meio dessa confusão, algo fundamental acabou escapando à atenção dos estudiosos, na opinião do professor: a “metade faltante” da teoria de Darwin.

As conexões com os debates sobre a evolução são escassas na literatura a respeito da complexidade, pontua Veiga. Existe dificuldade para se explicar as origens e razões para o aumento da complexibilidade da vida na Terra e a teoria da seleção natural não dá conta da tarefa de maneira satisfatória. Justamente porque não seria a noção clássica da seleção natural – o modelo da competitividade e do individualismo – que definiria essa evolução, mas sim a cooperação, a “seleção sinérgica”, uma subcategoria da seleção natural. O que ficaria mais óbvio se os cientistas tivessem dado mais atenção a The Descent of Man.

Sem pensar os sistemas complexos a partir da cooperação e da relação indissociável entre natureza e cultura, o resultado só poderia levar fatalmente a refletir sobre os efeitos provocados pela ação humana no planeta considerando apenas a própria cultura. Ou seja, os efeitos do capitalismo, o que é uma forma incompleta de tratar o problema, nem tanto para diagnosticar suas causas, mas para se pensar nas soluções. A rejeição das ciências humanas ao termo Antropoceno carregaria o DNA desse grande divisor – natureza x cultura –, pois a base dessa negativa seria a dificuldade de pensar em conjunto e simultaneamente as quatro grandes dinâmicas históricas da Terra: planeta, vida, natureza humana e civilização.

É o intercâmbio permanente entre natureza e cultura, escreve Veiga, que pode fornecer a chave para os processos socioevolutivos, o cerne de uma ecologia científica. Em outras palavras, um estudo das transformações vivenciadas pelo (e no) planeta, comprometido com a continuidade na/da Terra, precisa considerar os limites da interferência humana na natureza e, simultaneamente, as imposições da própria natureza diante do que fazemos com ela.

E é aí que o projeto intelectual de Darwin se aproxima, para surpresa de muitos, de Karl Marx. Porque, ao considerar as ideias contidas em The Descent of Man, o professor encontra na obra uma dialética da natureza que teria agradado a Marx, caso este não tivesse interrompido suas leituras do autor inglês em The Origin of Species e tido contato com a “metade ausente” da teoria da seleção natural. Assim, não há confronto entre Marx e Darwin, assinala Veiga, mas pontos de vista diferentes sobre a história. Para o primeiro, ela trata dos eventos históricos, ligados à humanidade. Para o segundo, ela encerra uma trajetória vasta de eventos evolutivos. Mas, para ambos, a natureza não é apenas objeto nas relações com o ser humano. Ela também se impõe.

Dessa forma, partindo de concepções distintas, os dois autores terminam por apontar um projeto comum de futuro para a humanidade, no qual percebem um movimento de luta cuja tendência é causar sua própria abolição. Em Darwin, isso se manifesta na diminuição da luta biológica pela sobrevivência graças a um processo evolutivo de “civilização”. Já em Marx, seria o comunismo que, ao extinguir as classes sociais, acabaria também com essa luta.

É nesse sentido que Veiga sugere a aproximação entre suas teorias, acreditando ser esse o passo decisivo para que as humanidades possam chegar a uma ecologia que reúna, em um único campo de conhecimento, o social e o natural. Essa seria a chave para a compreensão do Antropoceno e da definição das estratégias de como viver nele, já que o capitalismo irá acabar um dia, mas a humanidade ainda estará por aqui, tendo de escolher como irá se relacionar com o planeta (caso o capitalismo não acabe antes com ele).

Fonte da matéria: “Antropologia” de Darwin é chave para entender o Antropoceno – Jornal da USP – https://jornal.usp.br/cultura/antropologia-de-darwin-e-chave-para-entender-o-antropoceno/

Deixe uma resposta