Sociedade

Hoje o epicentro é o mundo do trabalho nas ruas

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Joselicio Junior Recebemos na sede da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco o professor Ruy Braga, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e vice-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic), que vem se dedicando nos últimos anos a estudar o mundo do trabalho e particularmente as/os trabalhadores mais precarizados, ou usando uma categoria do professor Braga, o precariado. Nesse encontro tivemos a oportunidade de dialogar sobre as profundas mudanças que o neoliberalismo vem impondo ao mundo do trabalho com o seu processo de mercantilização e os desafios de organização dessa classe trabalhadora que se desloca, significativamente, do chão das fábricas para as ruas. É um diagnóstico bastante relevante e que nos ajuda a pensar nossas estratégias de atuação, inclusive de forma mais ampliada e não apenas nos o espaços vistos como tradicionais da esquerda, diante de uma sociedade cada vez mais complexa. Vale muito a pena a leitura.

• Joselicio Junior: O neoliberalismo vem nos impondo uma mudança significativa na organização dos modos de produção, na acumulação da riqueza e, consequentemente, na organização do próprio mundo do trabalho. Você poderia caracterizar um pouquinho para a gente quais são essas mudanças?
• Ruy Braga Olha, Juninho, desde que o mundo do trabalho passou a ser estruturado por políticas e princípios neoliberais, a gente tem observado uma forte tendência daquilo que, grosseiramente, pode se chamar de mercantilização do trabalho. O que significa isso? Em última instância, é a transformação do trabalho em uma mercadoria como outra qualquer, mas o trabalho é uma mercadoria muito especial. Por quê? Porque é indissociável do corpo do trabalhador. Então, existe uma questão de direito humano fundamental. Você não pode, por exemplo, alienar o seu corpo que não seja por uma certa duração regulamentada em contrato. Se essa duração se estende no tempo, você se transforma em um escravo e não mais em um trabalhador assalariado. O neoliberalismo mercantiliza essa relação a ponto de não haver mais essa distinção entre aquilo que seria o valor da mercadoria força de trabalho reconhecida em contrato, ou seja, a troca de equivalentes entre trabalho e salário. Isso tende a ser desafiado sistematicamente. Como percebemos isso? De várias maneiras. Por exemplo, uma maneira muito usual, muito simples, é que o neoliberalismo não aceita nenhum tipo de obstáculo ao uso abusivo do trabalho. Então, as formas de representação, proteção, resistência da classe trabalhadora a esse avanço desmedido da mercantilização sobre o corpo do trabalhador são atacadas de todas as formas. Segundo dados da OIT, com exceção da Itália, todas as maiores 16 economias do mundo com mais de 50 milhões de habitantes tiveram a taxa de densidade sindical reduzida. Isso para patamares que são hoje em dia muito irrisórios do ponto de vista protetivo. Se você pega a partir dos anos 1990, em especial a partir da segunda metade, quando a China entra com mais força no mercado mundial após sua entrada na OMC, e também a Índia, você vai perceber que o valor da força de trabalho é pressionado no mundo todo, tendo em vista a entrada desses exércitos de reserva no mercado mundial de força de trabalho. Como é que se dá essa pressão que acompanha essa onda de globalização neoliberal? A partir do ataque ao pólo produtivo nacional do trabalho, à previdência pública, aos direitos trabalhistas, que serviam para impor limites a esse avanço da mercantilização sobre o corpo do trabalhador. O objetivo final é transformar, evidentemente, todo o tempo do trabalhador em tempo de trabalho para o capital. A forma como isso aparece do ponto de vista das políticas é basicamente por meio do ataque à representação, às formas organizativas dos trabalhadores de um lado, o ataque às formas protetivas do trabalho, por outro, como, por exemplo, direito trabalhista, direito previdenciário, direitos sociais, saúde, educação, tudo aquilo que impede a mercantilização da força de trabalho ou dificulta, ou bloqueia. Qual o impacto que o neoliberalismo tem sobre o mundo do trabalho? O impacto, na minha opinião, talvez seja, do ponto de vista conceitual, essa transformação da relação de troca de equivalentes entre trabalho e salário por uma relação de troca de não equivalentes, fundamentada na violência política que o Estado muitas vezes impõe, mas que também é uma violência das empresas, obrigando o trabalhador a vender sua mercadoria a preços irrisórios, ou seja, obrigando o trabalhador a se reproduzir em condições subnormais.

• Joselicio Junior: O que você está nos dizendo é que houve basicamente uma quebra de contrato, digamos assim, de uma relação que foi pactuada durante um determinado ciclo, conhecido como fordismo. Pensando na posição do Brasil nessa divisão mundial do trabalho, o que alguns teóricos vão chamar de um capitalismo dependente que se consolida em sua transição do escravismo para o capitalismo moderno, digamos assim, em que já há uma pressão de um exército de reserva que achata e produz um processo de superexploração do trabalho. Qual o impacto disso? Se já há um achatamento mundial e uma realidade nacional que já é achatada, qual é o impacto dessa mudança do mundo do trabalho diante dessas características brasileiras?
• Ruy Braga O impacto é devastador. Do ponto de vista das hipóteses dentro da sociologia do trabalho, é muito interessante observar, caso se pretenda identificar tendências presentes que apontem para o futuro no mundo do trabalho, no caso brasileiro, ter sempre presente a questão do primeiro emprego, ou seja, quais são os setores que absorvem aquela massa entrante de jovens trabalhadores no mercado de trabalho. O Brasil é um país grande, está passando pela sua transição demográfica, mas ainda tem uma massa de gente jovem entrando todo ano no mercado de trabalho. Mais de 1 milhão de jovens, seguramente. Quando você quer perceber quais são as tendências, é muito interessante você observar quais são os setores que absorvem prioritariamente essa massa de jovens entrantes. Nos anos 2000, estudei o setor de call center, que era o que mais absorvia jovens em seu primeiro emprego, sobretudo jovens mulheres negras. Ali as dinâmicas de racialização também tinham muita força, muita presença, associando-se à questão da exploração, expropriação. De qualquer maneira, o que era visível naquele período dos anos 2000, auge da produção de emprego da era Lula, entre outras coisas, é que havia emprego formal. Entrevistei muitas trabalhadoras que vinham de famílias, de empregadas domésticas ou de babás, e elas estavam transitando para o mercado formal em empresas de tecnologia multinacionais, ou seja, estavam recebendo algum tipo de qualificação. E elas, no início, pelo menos o ciclo do trabalhador que eu acabei descrevendo em alguns trabalhos, tinham uma postura progressista, entusiasmada, se mostravam otimistas em relação à sua própria trajetória sócio ocupacional. Muitas delas, por exemplo, ganhavam um salário mínimo, que era pouco, mas que servia para pagar a escola, a faculdade particular noturna. A própria jornada do setor de telemarketing permitia isso porque era uma jornada menor que a jornada tradicional. Então, o que se verificava era a promessa da cidadania salarial. O que é a cidadania salarial? É a combinação entre trabalho e direitos. Trabalho, trajetória, renda, dinheiro, progresso material e direitos: direito trabalhista, direito social, direitos humanos, direito previdenciário. E isso garante uma proteção àquele trabalhador. Então, a cidadania salarial no Brasil, sempre foi cumprida pela metade. Exatamente por isso que vocês chamam de superexploração do trabalho, ou seja, um enorme mercado informal em torno daquele núcleo formalizado, um pouco mais protegido. Mas no caso do Brasil, nunca foi assim. Por quê? Porque normalmente o que você tinha era combinação entre o trabalho protegido, formalizado e o trabalho informal desprotegido na mesma família, que era aquele exemplo do casal de trabalhadores em que ele era funcionário da indústria, tinha a carteira de trabalho e ela era trabalhadora doméstica, não tinha carteira de trabalho. Então eles avançavam juntos, coexistindo essas duas dimensões do mercado de trabalho formal e informal. Isso mostrava uma certa inserção nessa sociedade salarial, ou seja, vertebrado pela cidadania, pela cidadania salarial, junção entre trabalho e direitos. Isso se verificava com essa transição do emprego doméstico para o setor de call center, um emprego formal. Elas tinham acesso a qualificações, estavam fazendo uma faculdade particular, noturna, de baixa qualidade, mas estavam progredindo. No geral se aproximaram das políticas públicas dos governos Lula por conta dos financiamentos, do Prouni, por conta do apoio ao crédito consignado e assim por diante. Isso daí, a grosso modo, avança até a metade dos anos 2010, quando veio a crise de 2015-16, e verifica-se uma queda de mais de 7% do PIB e o desemprego dobra.
A informalidade cresce na medida em que você não consegue ficar desempregado por muito tempo. Ninguém é rico para ficar desempregado por muito tempo, tem que voltar para o mercado de alguma forma. Se não tem emprego formal, você vai para a informalidade. A informalidade, tradicionalmente, tem esse comportamento de absorver aquela massa sobrante do mercado formal e, desde então, o mercado de trabalho brasileiro se especializou em reciclar empregos, ou seja, o emprego diretamente contratado vira emprego terceirizado, o emprego terceirizado vira emprego intermitente, o emprego intermitente vira emprego informal, com evidente impacto sobre a renda, sobre os rendimentos do trabalho, ou seja, é ladeira abaixo e as rendas se tornam cada dia mais inseguras e o rendimento se torna menor. Daí se vê o aumento das desigualdades entre as classes e intraclasses, tensões ligadas às fronteiras que dividem a classe trabalhadora e assim sucessivamente. Você estava perguntando sobre os efeitos do neoliberalismo. O que se observa é o desmanche do horizonte da sociedade salarial e o desaparecimento da cidadania salarial. Eu fiz uma pesquisa com um orientando, o Douglas, sobre os entregadores aqui na cidade de São Paulo. Para simplificar muito, porque há muitas dimensões, cito dois exemplos: os jovens entregadores são os que não conseguem ter acesso ao crédito, comprar uma moto, e precisam ou alugar a bike do Itaú ou comprar uma. Esses meninos que entram no mercado de trabalho hoje – a função das antigas operadoras de telemarketing – e eles não têm a menor perspectiva de aposentadoria, menor expectativa de contribuição previdenciária. A trajetória agora é você fazer um pequeno pecúlio com a bike, o que é muito difícil. A molecada com quem eu conversei fazia metade do salário-mínimo líquido trabalhando 6 dias por semana.

• Joselicio Junior: E tem um detalhe, talvez o mais perverso desse processo, que é a questão que você falou no início, dessa relação trabalho e direitos humanos, ou seja, o quanto você coloca o seu corpo à disposição. O Ifood fez, por exemplo, uma pesquisa criminosa considerando que os entregadores trabalham pouco, pois levaram em consideração somente o período da entrega.
• Ruy Braga É claro que eles só contam a hora cheia, o que não quer dizer nada, você tem que contar o deslocamento, o tempo que você fica em espera…

• Joselicio Junior: A outra perversidade é justamente o esforço físico.
• Ruy Braga Claro, ninguém consegue manter isso por muito tempo.

• Joselicio Junior: O trabalho de bicicleta diante do que são as cidades brasileiras é um esforço físico monumental. Então, remonta ao período escravocrata.
• Ruy Braga É o que eu digo. São as antigas escravas de ganho que vão pra rua para fazer uma grana pra poder comprar sua alforria e mesmo quando compram a alforria, continuam tentando fazer uma grana para comprar alforria de outras pessoas. Ou seja, é uma situação muito crítica, e também por conta disso que você acabou de citar. Eles têm por objetivo fazer um pequeno pecúlio para dar entrada no financiamento de uma moto, que seria um primeiro nível de dignidade. E esse primeiro nível de dignidade gera aquilo que a gente observou quando está entrevistando os motoboys, eles se endividam para comprar o meio de produção. Se eles perderem o meio de produção, por alguma razão, eles não têm o ganha pão, mas fica a dívida com o banco, que sempre sai ganhando. Isso cria uma psicologia mais conservadora, porque eles sabem que se a moto for roubada, estão no pior de todos os mundos. E isso faz com que esses discursos sobre lei e ordem, sobre “matar bandido” passem a ser aceitáveis quando antes não eram. Você percebe que existe uma lógica muito perversa de desconstrução da cidadania salarial, da associação entre trabalho e direitos. Há uma inclinação a aceitar um discurso de ódio, de violência e naturalizar esse discurso como sendo algo necessário, porque, do ponto de vista deles é.

• Joselicio Junior: Um outro exemplo, fazendo um parêntese, considerando esse debate recente sobre a regulação das big techs (PL das Fake news). Vemos o quanto o que há de mais tecnológico no mundo se associa ao que há de mais conservador. Trazendo para o mundo do trabalho o que tem de mais perverso do ponto de vista da condição do trabalhador caminha junto com uma ideologia conservadora que produz uma certa racionalidade de normatização de determinados conceitos conservadores.
 Ruy Braga Há o exemplo aplicativos de entrega que se vendem como startups, como empresas de tecnologia mediadoras de relações, facilitadoras. Só que, na verdade, elas fazem duas coisas: acumulam a partir da expropriação dos direitos trabalhistas e sociais dos trabalhadores e, por outro lado, a expropriação do espaço público e dos direitos da cidadania, porque eles usam toda a infraestrutura urbana, eles ajudam a degradar a estrutura urbana, estão expropriando as ruas, os parques, as avenidas, os serviços. Quando o entregador se acidenta, quem é que vai [a seu socorro]? Os acidentes na cidade após esse espalhamento da economia de entrega mediada por aplicativo aumentaram exponencialmente. Quando o jovem da moto se acidenta é o Estado que paga. Ele vai ser atendido pelo Samu, que vai levá-lo a um pronto socorro do SUS. Quem é que está se beneficiando dessa tragédia humana? As empresas. Elas não pagam nada por isso. Não aceitam regulação de nenhum tipo, sequer o que seria a coisa mais óbvia, a saber, o reconhecimento de são simplesmente empresas de entrega, ou seja, o vínculo de hipossuficiência entre o trabalhador e a empresa tem que ser reconhecido. É o mínimo. Mas não, não aceitam isso.
Outro exemplo são as redes sociais. Como o Facebook acumula? Basicamente vendendo os nossos dados para empresas, para que possam fazer publicidade, por isso que eu chamo de plataformas de publicidade. Agora, como acumulam os nossos dados, nossos gostos, nossas inclinações, nossas tendências? Como fazem para identificar o que a gente quer e o que a gente não quer? Através dos nossos likes. E a gente dá os nossos likes em cima do quê? Em cima de um exército de pessoas que produz conteúdo para essas redes e praticamente não ganham nada com isso. Porque, para você monetizar, você precisa de muita gente envolvida e são poucos que realmente ganham dinheiro, a massa ganha muito pouco, ou seja, você está explorando uma massa de gente que produz os conteúdos para essas big tech, para essas empresas de tecnologia de comunicação digital acumularem bilhões, trilhões mundo afora à custa dessa miríade de gente totalmente precarizada. Os influencers, os youtubers e não sei o quê. Então, isso tudo tem que acabar. A gente tem que regular essas empresas porque, na verdade, isso é o que a gente pode chamar de regime de acumulação por expropriação. Não é nem a exploração econômica, é a expropriação política do trabalho, das cidades, do comum, de tudo aquilo que, digamos, não é mercantilizável, porque não foi produzido para ser vendido. O corpo das pessoas não foi produzido para ser vendido. O espaço da cidade não foi produzido para ser vendido. Ou seja, você tem um sistema, o neoliberalismo, que se apoia sobre a acumulação por expropriação.

• Joselicio Junior: Você, durante muitos anos, se dedicou em construir uma categoria que pudesse dar conta de tentar identificar esse sujeito trabalhador a partir da ideia do precariado. Gostaria de perguntar: o que é o precariado hoje? Esse conceito dá conta dessa diversidade que tratamos aqui? Se não, quais são essas outras categorias? É o plataformizado, é o sem direitos, é o trabalhador por conta própria? Porque a gente está falando aqui das plataformas, das big tech, mas tem uma massa de trabalhadores que estão ali em pequenos arranjos produtivos, como salão de cabeleireiro, comércios de bairro, pequenos serviços, camelôs, enfim, uma gama de trabalhadores que não estão amparados pela CLT, que não estão na formalidade. Como a gente categoriza isso e quais são as características de cada uma dessas possíveis categorias?
• Ruy Braga A primeira questão é a definição do que vem a ser precariado. E a partir daí a gente começa a estabelecer as fronteiras entre o que é e o que não é. Enfim, isso tudo não é um exercício formal, mas é uma questão real. Quer seja do ponto de vista da composição, da formação da classe trabalhadora, quer seja do ponto de vista da própria composição do mercado de trabalho. Existem muitas definições de precariado, que variam de acordo com o que se achar mais conveniente. Eu costumo dizer que o precariado é uma fração da classe trabalhadora, mas que acolhe também aqueles indivíduos e grupos que vêm, por exemplo, de setores médios em processo de proletarização, ou seja, de decadência sócio ocupacional. Então, é um amálgama que poderíamos chamar de policlassista, pois acolhe diferentes setores de classe, mas, predominantemente, é uma fração da classe trabalhadora que transita, pendula permanentemente entre, por um lado, o aumento da exploração econômica, como, por exemplo, a substituição do trabalho diretamente contratado pelo trabalho terceirizado, o trabalho terceirizado pelo trabalho intermitente e assim sucessivamente. O aumento da exploração econômica de um lado num pólo e a ameaça permanente da expropriação política, de outro lado, ou seja, a perda dos seus direitos trabalhistas, previdenciários, sociais. Então, essas reformas neoliberais aumentam progressivamente a franja do precariado na economia, no mercado de trabalho e assim por diante. As pessoas que, por exemplo, não vão poder mais se aposentar, vão se aposentar mais tarde, trabalhando mais tempo em um mercado de trabalho como o brasileiro, no qual se você faz 40 anos, você está fora do mercado, isso significa que vai trabalhar por conta própria em condições absolutamente precárias de vida e de trabalho durante mais tempo. A sua renda vai ser mais insegura, o trabalho mais intermitente, assim sucessivamente. Então, tendo em vista essa definição, temos uma variedade que vai desde aquele emprego formal, mas muito explorado, como é o caso do trabalho terceirizado, do trabalho intermitente até o emprego informal, o trabalho por conta própria, formas de auto exploração do trabalho nas quais se coloca os filhos para trabalhar junto, os vendedores ambulantes, o pessoal que batalha na rua, a galera da entrega do aplicativo e assim sucessivamente. Todo esse conjunto heterogêneo de trabalhadores, na minha opinião, são parte do que é o precariado tomado, para usar uma linguagem marxiana, como algo para si próprio. Ou seja, a configuração objetiva do precariado. Esse amálgama fragmentado de grupos que estão o tempo todo pendulando, tendo em vista as características de uma sociedade capitalista periférica. Mas isso acontece também no centro, enfim, entre a exploração econômica e a expropriação política, eles estão o tempo todo fazendo essa trajetória. Qual é a característica atual? É que a expropriação política passa à frente. Ou seja, esses setores que estão na informalidade ganham monta por conta das características da economia, por conta da expulsão, do ataque aos direitos, das políticas austericidas, por conta desse conjunto de questões. E assim o pólo da exploração econômica vai ficando mais reduzido e restrito. Então, tendo em vista isso, eu diria: olha, mas quais são os setores que estão fora desse precariado? A maior parte, por exemplo, do funcionalismo público está fora. Aqueles setores mais qualificados da classe trabalhadora, os assalariados médios, que têm qualificações, têm acesso a benefícios, conseguem efetivamente ter melhores salários. Estão todos fora do precariado. O precariado é exatamente esse amálgama entre emprego informal, emprego terceirizado, emprego intermitente, entre emprego por conta própria. Todas essas atividades se situam naquela base alargada, cada vez mais ampla da pirâmide de renda do trabalho no Brasil. Então eu entendo que essa categoria, ela é importante basicamente para pensar o desdobramento, o efeito do neoliberalismo no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, na reconfiguração das identidades coletivas dos trabalhadores. Por quê? Porque o precariado traz um desafio que é como o trabalho organizado vai lidar com essa massa de gente.

• Joselicio Junior: Eu acho que a gente conseguiu construir um bom diagnóstico e agora gostaria de pensar um pouco como isso nos afeta enquanto esquerda, enquanto ativistas militantes que lutam justamente por uma contraposição a essa lógica. Há uma parcela importante das formas de organização da esquerda ainda está presa a um modo de organização da sociedade que não existe mais ou que está em profunda transformação. Então, como construir esse encaixe? E quais são os desafios do debate sobre o sindicalismo, sobre as formas de organização da classe trabalhadora? Quais são os principais desafios que estão colocados? Tanto para uma esquerda progressista como para uma esquerda revolucionária, digamos assim? Quais são os principais desafios para pensar, tendo em vista, inclusive, isso que você acabou de dizer sobreo alargamento do precariado, portanto, se não houver uma forma efetiva de contraposição isso tende a se aprofundar.
• Ruy Braga O grande desafio é saber como articular o trabalho organizado com o trabalho não organizado. Esse é o grande desafio. Isso não é fácil. Em primeiro lugar, é importante que se diga que, apesar das formas tradicionais de representação política da classe trabalhadora no mundo todo, e em especial no Brasil, terem perdido muita força com esses deslocamentos, com essas transformações do mundo do trabalho nos últimos 20, 30 anos, elas ainda são importantes. Então, esse é um primeiro elemento que a gente deve levar em consideração. Eu digo isso por várias razões. A primeira delas é porque em muitos lugares- é o caso de Portugal, por exemplo -, o movimento sindical ainda é atuante, tem um peso na sociedade. E ele se abre, desde que pressionado, às associações de trabalhadores precários e consegue, por exemplo, formar coalizões naquilo que eu costumo chamar de novas coalizões, absorver desafios, inovar. Inclusive ter vitórias eleitorais. Foi o caso, por exemplo, há alguns anos atrás quando o Bloco de Esquerda cresceu, muito por conta da formação dessas novas coalizões que se espalham pela sociedade. Mas também você tem países como os Estados Unidos, em que o fato de não existir um Partido dos Trabalhadores, o que poderia forçar os trabalhadores a se organizarem [mais nacionalmente], a se organizarem de forma muito localizada e fragmentada, muito ligada aos locais de trabalho, enfim, obrigatoriamente faz com que os trabalhadores optem pela criação de um sindicato independente, um sindicato constituído por eles mesmos. Então, o trabalhador se vê obrigado a se organizar no local de trabalho, montar um comitê.
Isso tudo força os trabalhadores a criar sindicatos. No caso brasileiro, a gente continua tendo, a despeito dos ataques que o movimento sindical no país sofreu nos últimos anos, incluindo a reforma de novembro de 2017 que enfraquece o financiamento dos sindicatos e fragiliza muito a representação sindical, um sindicalismo importante objetivamente, porque ainda presta um serviço de suporte quando os trabalhadores são demitidos e entram na justiça. E por outro lado, o sindicalismo forma a base de governos como os de Lula, Dilma, que elaboram políticas públicas e assim sucessivamente, ou seja, é importante destacar isso, os sindicatos são importantes. Eles não são descartáveis, não são negligenciáveis, mas não são suficientes e não irão liderar o próximo período de lutas. É isso que precisa ficar claro. E são parte de uma sociedade que se transformou muito radicalmente. Eles são, digamos, parte de uma sociedade fordista cujo epicentro era o mundo do trabalho nas fábricas e hoje o epicentro é o mundo do trabalho nas ruas. Então, existe uma outra dinâmica, uma outra lógica, e é por isso que eu digo sobre estarmos atentos aos novos movimentos sociais urbanos que mobilizam os trabalhadores nos locais de moradia, que defendem as comunidades onde os trabalhadores vivem e se reproduzem em um contexto de trabalho plataformizado, no qual o entregador não tem tempo para nada e roda quatorze horas por dia, seis dias por semana, o motorista de Uber idem. Onde ele vai efetivamente se socializar politicamente? Não é no local de trabalho que é a rua onde ele passa o tempo todo. É onde? É no WhatsApp e é na sua comunidade, no seu bairro. Então a gente tem que ser capaz de chegar nessa pessoa no bairro. Como fazer isso? Por meio da luta por moradia digna, algo fundamental hoje em dia na reconfiguração das identidades políticas dos trabalhadores. A luta por moradia digna toca o interesse do trabalhador naquilo que é a interface entre a mercantilização do trabalho, de um lado, a precarização e a utilização da terra urbana, por outro, que é o aluguel, por exemplo. Existe uma conexão entre tudo isso? Existe, por exemplo, a luta por educação pública, os cursinhos populares da periferia que mobilizam a juventude preta, pobre, periférica e que aponta um horizonte de progresso político, intelectual, social, de mobilidade, enfim, algo que muda potencialmente a vida deles e das próprias famílias, e isso tem um impacto no interior da comunidade. A luta do movimento dos trabalhadores sem direitos, amalgamando aí os camelôs de um lado, os entregadores, por outro, enfim, esses movimentos que, por exemplo, defendem os centros das cidades como espaços de reprodução e de trabalho, o que significa, entre outras coisas, fazer com que os centros urbanos se tornem mais seguros e onde esses trabalhadores possam efetivamente trabalhar e ganhar a sua renda a levar para suas comunidades, possam desenvolver seus pequenos negócios. Então, isso tudo o que eu estou chamando de politização dos territórios é o horizonte de intervenção desses setores precarizados. A gente tem que entender que a forma como o capitalismo hoje funciona no Brasil e no mundo é basicamente por meio desse processo de expropriação política, o que implica um permanente ataque do Estado através, por exemplo, da violência policial nas comunidades onde os trabalhadores se reproduzem. Por quê? Porque ao atacar essas comunidades, ao fazer com que essas comunidades vivam e se reproduzam de forma segregada, em condições subnormais, ao cortar, por exemplo, os investimentos públicos nessas comunidades através das políticas de austericídios, você comprime artificial e politicamente o valor da força de trabalho, barateando-a. É exatamente essa força de trabalho a que vai ser oferecida a preço de banana para as plataformas.

• Joselicio Junior: Quando não tem horizonte, você se sujeita a qualquer coisa. Um poucos antes de começar a entrevista falamos sobre o Clóvis Moura e parte disso que você tá dizendo ele já apontava: diante de um processo em que uma massa de trabalhadores tiveram dificuldade de entrar ou sequer passaram pela formalidade, é justamente a partir do associativismo, das formas culturais, na sua máxima extensão que eles se organizam. Nós estamos falando da religiosidade, do futebol de várzea, da escola de samba e outras inúmeras formas. O que você está trazendo é um debate que aponta para que, mais do que nunca, precisamos ter um olhar para essas formas de associação. Não é por acaso que um dos vetores do conservadorismo, é justamente uma forma muito eficiente de associativismo, de rede de proteção, que são as igrejas evangélicas. Então me parece que olhar para cultura e política, para o associativismo, para as formas pelas quais a classe se organiza, para além do local do trabalho, me parece ser um caminho essencial de organização da classe trabalhadora contemporânea.
• Ruy Braga Testei essa hipótese em dois livros. Um sobre o precariado já foi lançado e trata-se de um estudo sobre o Sul Global em países como Brasil e África do Sul. E mais recentemente sobre os Estados Unidos, pegando o Norte global e a ideia que vertebra essas comparações e esses estudos de caso em essência, a ideia da hipótese do refazer-se da classe trabalhadora. O que estou pleiteando? Estou dizendo o seguinte, que o neoliberalismo e a crise da globalização neoliberal produziram, em combinação, uma desconstrução, um desfazer daquelas formas tradicionais de organização da classe trabalhadora no sentido mais fordista, mais focado, por exemplo, nos locais de trabalho, nos sindicatos, e nos partidos políticos, no sentido mais tradicional. Isso tudo colapsa, não é que desaparece completamente, mas perde centralidade política na medida em que se enfraquece muito, a gente pode dar os dados, quer seja de densidade sindical, quer seja de votação de partidos políticos operários, quando o mundo todo colapsa ao longo dessas décadas de hegemonia neoliberal. E, por outro lado, o que você tem é um processo de desconstrução, que é sempre um processo de reconstrução das identidades coletivas dos trabalhadores porque os trabalhadores são sujeitos ativos da sua própria história, eles não são objeto passivo.

 Joselicio Junior: Me permite um parêntese, Ruy. Eu acho que a pandemia nos mostrou isso de forma muito latente, como a gente viu pipocar nas periferias formas de solidariedade. Tivemos aqui a experiência da cozinha solidária do MTST. Além das cozinhas, houveram inúmeras outras iniciativas boas de associativismo, de redes, de solidariedades extraordinárias. Então isso mostra uma exemplificação do que está nos dizendo.
• Ruy Braga É que esse processo, ele está acontecendo por várias razões. Esse processo está acontecendo nas comunidades. É nas comunidades que você vai atuar de fato, no sentido de tentar politizar esse processo de reconstrução. Se nós, como esquerda, como organizações, com partidos, como sindicatos e de movimentos, não formos capazes de disputar essas identidades coletivas, de construir conjuntamente essas identidades coletivas nas comunidades, quem vai construir, quem vai continuar construindo, reconstruindo, são as igrejas neopentecostais, porque elas estão a anos luz à frente das nossas iniciativas. A gente tem que ser capaz de nos aproximarmos propriamente desse processo de atuar conjuntamente com outros atores, enfim, no interior desse processo, porque não vai se dar no local de trabalho, não temos mais o sindicato como a ponta de lança da organização operária, em que todos os movimentos sociais convergem para a quadra do sindicato. Não existe mais essa realidade. Isso mudou, o mundo mudou e agora a gente tem que entender que vamos ter que disputar isso.
É no Islam, nós vamos disputar isso é no samba. Nós vamos disputar isso na cultura periférica. Nós vamos disputar isso é na igreja, na associação de bairro, na urbanização, na luta por moradia digna. Nós vamos disputar isso nas políticas públicas e também, evidentemente, no mundo do trabalho, politizando esses atores, trazendo o pessoal dos entregadores para próximo das nossas perspectivas. Enfim, construindo movimentos unificados de camelôs no país todo com uma perspectiva classista. São várias frentes. Eu costumo dar como exemplo de algo do qual eu faço parte que é a Rede Emancipa de Educação Popular porque trabalha com muitas identidades: juventude, movimento negro, precarizados, pessoas nas universidades. A perspectiva de você entrar na universidade é a partir desses, da combinação interseccional entre essas múltiplas identidades Aí vamos de fato constituir um novo sujeito coletivo capaz de enfrentar o neoliberalismo e, se tudo der certo, superá-lo.

Fonte da matéria: Hoje o epicentro é o mundo do trabalho nas ruas – read://https_flcmf.org.br/?url=https%3A%2F%2Fflcmf.org.br%2Fhoje-o-epicentro-e-o-mundo-do-trabalho-nas-ruas%2F

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