Sociedade

A longa viagem de Belchior

Tempo de leitura: 10 min

Jan Cenek – O sumiço dos últimos anos foi um posfácio radical e coerente para uma obra que sobreviverá.

Belchior (1946-2017) foi um compositor de Música Popular Brasileira (MPB). Nasceu em Sobral, no Ceará. O avô tocava sax e flauta. A mãe cantava na igreja. Tinha tios seresteiros. Ainda menino se apresentava como cantador repentista. Frequentou o Seminário dos Capuchinhos. Foi programador de rádio. Mudou-se para Fortaleza. Participou de festivais de música, se aproximou de outros artistas. Chegou a cursar quatro anos de medicina, mas abandou a universidade. Foi para o Rio de Janeiro e, depois, São Paulo. Viajou de carona num avião do Correio Aéreo Nacional, espécie de prenúncio do que viria depois na obra e na própria vida do artista. Ganhou o IV Festival Universitário da MPB com a canção Na hora do almoço. Criou um estilo próprio em que cabia sua voz peculiar. Teve canções gravadas por Elis Regina e deslanchou. Wilson Simonal, Lenny Andrade, Roberto Carlos, Vanusa, Fagner, Jair Rodrigues, Gilberto Gil, Ivan Lins, Zé Ramalho, João Bosco, Margareth Menezes, Ney Matogrosso e outros também gravaram canções de Belchior. Fez sucesso principalmente nos anos 1970, com os álbuns Alucinação (1976), Coração selvagem (1977), Todos os sentidos (1978), Era uma vez o homem e seu tempo (1979). Além de músico, foi poeta, pintor, desenhista e leitor de mão cheia. Estudou caligrafia. Dominava vários idiomas. Foi da poesia para a música. Fazia citações eruditas nas canções. Dizia ser um compositor brasileiro nascido no Nordeste que prezava mais suas raízes humanas – que eram amplas, estavam em todos os lugares e em movimento – que suas raízes regionais e folclóricas.

Mais ou menos quando completou 60 anos, Belchior iniciou um movimento inusitado. Foi aos poucos cortando os laços que o prendiam à família, aos amigos, ao passado e à própria música. Separou-se e foi morar num flat com uma artista plástica. Viajaram e se hospedaram em hotéis saindo sem pagar. Moraram de favor em casas de fãs. Passaram um natal numa rádio abandonada. Ficaram por um tempo num mosteiro. Chegaram a morar com o Movimento dos Pequenos Agricultores e em uma comunidade alternativa. Belchior parou de fazer shows. Também parou de pagar pensões e outras despesas. Teve a conta bancária bloqueada e mandados de prisão decretados. Perdeu carros e outros bens. Passou uma noite debaixo de uma ponte. Sofreu com o sensacionalismo midiático. Foi caçado e forçado a dar entrevista para o principal canal de televisão brasileiro. Perambulou entre o Uruguai e o Rio Grande do Sul. Morreu vitimado por um rompimento na aorta. Tinha 70 anos. A longa e última viagem de Belchior foi reconstituída e contada no livro Viver é melhor que sonhar, de Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti [1].

O sumiço de Belchior intrigou muita gente. Há vários palpites explicativos. Desde que aspirava à santidade até que foi manipulado pela mulher que o acompanhou. Os autores de Viver é melhor que sonhar entrevistaram mais de 150 pessoas que foram próximas ou que estiveram com Belchior nos últimos anos do artista. Não conseguiram chegar a uma resposta sobre o sumiço. Mas deixaram uma pista interessante que resolvi seguir. A longa viagem do artista poderia ser uma possibilidade contida em algumas canções, como, por exemplo, Comentários a respeito de John.

Estradas, viagens e rupturas perpassam a música de Belchior. Um certo “meter o pé na estrada like a Rolling Stone”, como na canção Velha roupa colorida.  Talvez seja, inclusive, a principal linha de força na poética do bardo. Com um detalhe sugerido pelos acontecimentos posteriores: o que poderia parecer certo escapismo juvenil era, na verdade, um projeto, quase uma ética, como se a vida estivesse sempre em outro lugar. Não se tratava apenas da legítima necessidade de respirar num país bloqueado por uma ditadura empresarial-militar, era uma profunda necessidade existencial. Exemplificando com as canções do compositor. Mucuripe: “Vida, vento, vela, leva-me daqui”. Paralelas: “Dentro do carro, sobre o trevo a 100 por hora/ Oh, meu amor!/ Só tens agora os carinhos do motor”.  Comentário a respeito de John: “Saia do meu caminho/ Eu prefiro andar sozinho/ Deixem que eu decida a minha vida”. Tudo outra vez: “Há muito, muito tempo que eu estou longe de casa” […] “Sentado à beira do caminho pra pedir carona/ Tenho falado à mulher companheira/ Quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil” […] “E um cara que transava a noite no Danúbio Azul/ Me disse que faz sol na América do Sul/ E nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil” […] “E eu vou viver as coisas novas que também são boas/ O amor, humor das praças cheias de pessoas”. Coração selvagem: “Meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente/ Tome um refrigerante, coma um cachorro-quente/ Sim, já é outra viagem/ E o meu coração selvagem tem essa pressa de viver” […] “Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão/ O meu som e a minha fúria e essa pressa de viver/ E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza/ E arriscar tudo de novo com paixão/ Andar caminho errado pela simples alegria de ser” […] “Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo, vem morrer comigo”.

Dá para seguir a viagem pelos versos do bardo. Divina comédia humana: “Enquanto houver espaço, corpo, tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto”. Teria interrompido a carreira por não encontrar maneiras de dizer não? Belchior chegou a afirmar que associava a liberdade à possibilidade de dizer não [2]Velha roupa colorida: “Você não sente nem vê/ Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo/ Que uma nova mudança em breve vai acontecer”. A rima implícita faz a palavra amigo, no segundo verso, sugerir comigo na sequência. Como se a mudança fosse acontecer com o poeta.  Brincando com a vida: “Vida, eu não aceito, não! A tua paz/ Porque meu coração é delinquente, juvenil/ Suicida, sensível demais” […] “A vertigem, o abismo, me atrai/ É esta a minha brincadeira”. O que foi a longa viagem do bardo senão uma busca pelo abismo e uma brincadeira com a vida? Princesa do meu lugar: “Se me der vontade de ir embora/ Vida adentro, mundo a fora/ Meu amor, não vai chorar”. Espécie de alerta prévio do que viria tempos depois. O mesmo acontecendo na canção Passeio: “Nesse cimento, meu pensamento e meu sentimento/ Só têm o momento de fugir no disco voador”.

Se não for viagem minha, há uma coerência intrigante entre as canções de Belchior e o sumiço dele. A obra joga luz sobre a longa viagem do artista e o inverso é verdadeiro. Muito se falou contra a última mulher do compositor, que o teria isolado da família, dos amigos e da própria carreira. Pode ser. É uma possibilidade. Mas, pelas canções, percebe-se que o artista precisava de uma companheira para cair na estrada com ele, para ganhar “esse mundo de meu Deus”, como na canção Galos, noites e quintais. Ou, como em Coração selvagem, precisava de uma mulher que lhe compreendesse a solidão, o som, a fúria e a pressa de viver. Uma companheira capaz de deixar a certeza de lado e arriscar com paixão, andando caminho errado pela simples alegria de ser.

Os autores de Viver é melhor que sonhar estabelecem paralelos literários para pensar o sumiço de Belchior. Citam a fuga de Tolstói, aos 82 anos [3]. Como Hans Castorp, que foi ficando no sanatório por vontade própria, Belchior ia ficando nas casas de fãs e amigos que o abrigavam [4]. O desaparecimento teria sido tão inexplicável quanto o aparecimento do corvo no quarto, sempre a repetir “nunca mais” [5]. Eu, pelo meu lado, vi na longa viagem de Belchior um “preferiria não” à la Bartleby [6]. Repetidas vezes pessoas próximas tentaram convencer o bardo a tocar, arrecadar dinheiro e melhorar sua situação. Todas as vezes ele deu um jeito de recusar, como Bartleby, o funcionário que respondia “preferiria não” quando o chefe lhe dava ordens. Um fã e amigo que esteve com Belchior nos últimos anos do compositor afirmou: “Ele não queria mais voltar e não voltaria sob hipótese nenhuma. Ainda assim, alimentava-se desses sonhos.” [7]

Mais um paralelo literário por minha conta e risco. Ricardo Piglia escreveu um livro saboroso intitulado O último leitor [8]. Vai de Kafka a Joyce passando por Emma Bovary, Ana Karenina e Ernesto Che Guevara. O último leitor, para Piglia, é justamente revolucionário argentino: “Guevara é o último leitor porque já estamos diante do homem prático em estado puro, diante do homem de ação.” A conclusão do ensaio sobre Che Guevara é uma daquelas sacadas que só os grandes romancistas são capazes de formular [9]. Mas voltando. Enxerguei um paralelo entre Che e Belchior pela afirmação da identidade latino-americana e porque ambos foram grandes leitores que ficaram quase sem nada, mas nunca sem livros. Che carregava livros quando foi capturado na Bolívia. Belchior jamais se distanciou dos livros, passou os últimos anos lendo, trabalhou numa tradução popular para a Divina Comédia. Outra aproximação possível é pelas viagens. Diz Piglia sobre o jovem Ernesto Guevara, que ainda não era o Che: “Escrever e viajar, encontrar uma nova maneira de fazer literatura, um novo jeito de narrar a experiência.” O mesmo estava posto para Belchior. Como possibilidade nas canções. Como fato consumado e conquistado nos últimos anos de vida. Com a peculiaridade de que o compositor alterou a ordem natural das coisas. Muitos jovens latino-americanos, como Ernesto Guevara, caíram na estrada nos anos 1950, 1960 e 1970. Belchior fez o mesmo décadas depois, nos últimos anos de sua vida, já no século XXI.

Se estradas, viagens e rupturas estão nos versos de Belchior; se são uma das principais linhas de força das canções: o sumiço dos últimos anos foi um posfácio radical e coerente para uma obra que sobreviverá. Belchior não ficou em casa contando vil metal. Certamente a longa viagem confundiu fãs, preocupou amigos e magoou familiares. Mas era uma possibilidade contida na obra do compositor. O artista devia estar farto de cantar as mesmas canções para o mesmo público. Preferiu viver os versos na estrada, com outras pessoas, em uma longa viagem: para realizar possibilidades contidas na música, porque viver é melhor que cantar.

Notas

[1] Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti. Viver é melhor que sonhar – os últimos anos de Belchior. Rio de Janeiro: Sonora Editora, 2021.

[2] A entrevista em que o artista associa a liberdade à possibilidade de dizer não está no documentário Belchior – Apenas um coração selvagem, de Camilo Cavalcanti e Natália Dias.

[3] Tolstói abandonou a família no final de 1910. Fugiu de trem. Morreu de pneumonia poucos dias depois da partida.

[4] Referência ao romance A montanha mágica, de Thomas Mann.

[5] Referência ao poema O corvo, de Edgar Allan Poe.

[6] Referência ao conto Bartleby, o escrevente, de Herman Melville.

[7] O depoimento está no livro citado na primeira nota.

[8] Ricardo Piglia. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[9] Trecho final do ensaio Ernesto Guevara, rastros de leitura, de Ricardo Piglia.

Fonte da matéria: A longa viagem de Belchior | Passa Palavra – https://passapalavra.info/2023/04/148244/

Deixe uma resposta