Antônio Carlos Will Ludwig – Nações democráticas adotaram mecanismos de controle sobre os militares com vistas a torná-los submissos à democracia, longânimes às autoridades civis e afastados das querelas políticas.
Durante séculos os atores políticos de quase todos os países do mundo repetiram o conhecido erro de estabelecer o confinamento dos militares nos quartéis após criarem Forças Armadas e fazerem as alocações dos recursos necessários à manutenção de sua existência no decorrer do tempo. Esses atores evitaram o máximo possível envolverem-se com a organização e o funcionamento delas, preferiram deixá-las à própria sorte sob o ínsito gerenciamento dos servidores de uniforme. Assim procederam porque talvez tenham admitido que a profissão das armas é muito singular e complexa, apartada das ocupações civis e voltada para o repugnante emprego da violência legalizada.
Ao procederem desta forma depositaram total confiança nos fardados, acreditaram que as armas nunca seriam empregadas contra a nação, julgaram que sempre manteriam a conduta de subordinação aos civis, e, consequentemente, outorgaram a eles autonomia para executarem suas ações. Esta autonomia já foi definida por vários estudiosos do assunto como a capacidade de estabelecer e seguir uma agenda própria independentemente dos líderes políticos aos quais formalmente se encontram subordinados; como a prerrogativa de tomar decisões sem consultar ou pedir anuência a qualquer instância paisana; como a faculdade de resolver, segundo critérios e procedimentos próprios da instituição bélica, os assuntos internos, os problemas relativos à articulação com os setores legalmente investidos de controlá-la e os eventos provocados por ela ou por seus integrantes manifestados além de sua alçada.
A história registra que esta autonomia começou a ser concedida aos fardados a partir dos primórdios da Idade Moderna quando iniciou o processo de constituição dos Estados Nacionais, geradores de Forças Armadas permanentes, cujos exemplos notórios incluiu originalmente Portugal, Espanha e França e posteriormente abarcou as unificações italiana e alemã no século dezenove.
O secular prosseguimento e espargimento da autonomia militar em múltiplos estabelecimentos bélicos situados nos mais variados recantos do mundo favoreceu a emergência de uma das duas mais relevantes teorias pertencentes à Sociologia Militar, qual seja, a da profissionalização. Ela propõe que os fardados devem desenvolver um alto nível de profissionalismo, reconhecer os limites de sua competência ocupacional, subordinar-se aos líderes políticos civis que tomam decisões sobre política externa e militar e impedir ou minimizar a intervenção castrense na política. Por sua vez os civis devem conceder liberdade profissional aos fardados, aceitar e legitimar a competência ocupacional deles e não permitir ou incentivar a intervenção política nas Forças Armadas.
Vale destacar que a independência desfrutada pelos militares não significa que os mesmos se encontram desconectados dos agrupamentos existentes no âmbito da sociedade. O fato de unidades militares estarem situadas em locais afastados – cercadas com muros altos, cingidas de sinais e objetos impeditivos da circulação e vigiadas por soldados em guaritas -, tende a reforçar esta imaginável desconexão. O pensamento de que os militares são indivíduos sui generis, que não tem nada a ver com os civis, também ajuda bastante na construção dessa ideia. Por sua vez, o entendimento de que os servidores de uniforme constituem uma categoria social, isto é, não estão inscritos na atividade produtiva e sim inseridos na esfera estatal onde exercem uma função completa o apoio à construção de tal imagem. É preciso ressaltar que os fardados são pessoas provenientes da comunidade civil, os quais se livraram da personalidade original e incorporaram a militar. E segundo consta, majoritariamente, são oriundos dos setores médios da sociedade. Assim sendo, possuem sentimentos, valores e concepções específicos destes setores, os quais os aproximam dos segmentos sociais hegemônicos.
Muitos países possuidores de Forças Armadas adotaram a teoria da profissionalização porque a consideraram adequada ao norteamento da organização e do funcionamento das instituições bélicas. Entretanto, sua duradoura concretização não foi capaz de impedir a intromissão dos fardados na área da política, embora seu escopo principal diga respeito a barragem dessa intromissão. Ademais, a independência profissional dos servidores de uniforme nela defendida tende a favorecer sua ampliação rumo ao sentido de autonomia anteriormente exposto. Acrescente-se também que ela não postula o fim do perigoso confinamento militar onde ocorre o processo de socialização. Ressalte-se ainda que essa teoria é de cunho funcionalista, conservadora, não concede a necessária atenção ao poder dos influxos resultantes das mudanças sociais nos estabelecimentos castrenses.
Observe-se que nações dotadas de regime político democrático sólido e longevo adotaram mecanismos de controle democrático sobre os funcionários de uniforme com vistas a torná-los submissos à democracia, longânimes às autoridades civis e afastados das querelas políticas. Dentre tais mecanismos podem ser citados o comando paisano do Ministério da Defesa, a inspeção da atividade formativa pelo Ministério da Educação, a supervisão das atividades pelo Parlamento, a substituição de tribunais militares por tribunais civis e a confirmação do posto de general pelo Congresso. A inexistência de tais mecanismos, sua insuficiência ou precariedade, em muitos países, se mostra como a condição propícia para os militares fazerem ingerência política por meio do emprego do poder moderador e/ou da aplicação de golpes.
Nosso país, secularmente avesso à utilização desses mecanismos, constitui um exemplo típico. Com efeito, os militares brasileiros fizeram uso do poder moderador diversas vezes: apoio à candidatura de Nilo Peçanha à Presidência da República em 1922, Manifesto dos Generais em 1955 destinado a garantir a posse de Juscelino, veto à posse de Goulart em 1961 e exigência da instauração do parlamentarismo em seu governo. Também utilizaram seu arbítrio em vários golpes: proclamação da República em 1889, estabelecimento da ditadura de Vargas em 1930, implantação do Estado Novo também com Vargas em 1937, imposição da renúncia do próprio Vargas em 1945, eliminação da democracia em 1964 e tentativa de impedir a posse do atual presidente da República.
Algumas nações latino americanas também foram vítimas de golpes castrenses. Na Bolívia aconteceu em 1964 com a deposição de Victor Estenssoro reeleito para o terceiro mandato. No Chile ocorreu em 1973 o qual derrubou Salvador Allende. Também neste ano surgiu no Uruguai com a participação do então presidente Juan Maria Bordaberry. Em 1976 foi a vez da Argentina cuja deposta foi Isabel Perón. No Paraguai emergiu em 1989 e o alvo foi Alfredo Stroessner. Vale destacar o raro caso do Peru em 1968 pois ele contrariou a histórica tendência dos militares pertencentes a múltiplas nações do mundo em se manterem ligados aos setores dominantes da sociedade. Com efeito, sob a liderança do general Juan Velasco de Alvarado ocorreu o incentivo à organização dos trabalhadores, a criação de cooperativas agrícolas, o apoio aos movimentos sociais, o incentivo à participação popular na política e a distribuição de terras por meio da reforma agrária.
Em relação ao continente europeu merecem ser citados alguns casos notórios. Na Espanha, em 1936, o general Franco apoiado por militares fascistas, maioria da classe média, segmentos da Igreja e grupos conservadores economicamente dominantes derrubou o governo republicano legalmente constituído. Na França, durante a década de sessenta do século passado alguns generais e um grupo de civis pertencentes à denominada Organização do Exército Secreto aplicaram um malogrado putsch no território colonial da Argélia. Também nessa década ocorreu na Grécia a Ditadura dos Coronéis cujos militares responsáveis por sua institucionalização visaram salvar o país do avanço comunista. Em Portugal, no ano de 1974, fardados de média patente favoráveis à democracia concretizaram a Revolução dos Cravos, depuseram Marcelo Caetano e colocaram em seu lugar o general Antônio Spínola.
Quanto ao oriente médio já foi constatada a existência de dois eventos relativos ao uso do poder moderador. Em 1958, no Líbano, oficiais se recusaram a afrontar os grupos políticos opostos ao presidente Camille Chamoun. Essa atitude o privou da capacidade de eliminar seus oponentes obrigando-o a renunciar. No Egito, durante a crise política de 2011, os militares se abnegaram de empregar a força tanto para reprimir o povo nas ruas quanto para remover Mubarak do cargo de presidente, expuseram aos agentes da oposição que não se identificavam com as suas demandas e apontaram a eles a necessidade de uma ação política imediata, após o mesmo deixar o governo, que foi a assunção do poder pelo Conselho Supremo das Forças Armadas até a eleição presidencial ocorrida no ano seguinte.
Não é preciso fazer esforço intelectual algum para perceber a fraca consistência da teoria da profissionalização e da privação, exiguidade ou suscetibilidade dos recursos de controle democrático como responsáveis pela autonomia militar possibilitadora da ingerência na política. Vale destacar que tais recursos têm se mostrado muito eficientes nos países de democracia consolidada haja vista que os mesmos continuam sendo capazes de impedir o uso do poder moderador e a aplicação de golpes por parte dos servidores de uniforme.
Tão importante e talvez mais relevante que os recursos de controle específicos é o acelerado e irrefreável processo de civilinização que continua avançando nos países adotantes da democracia genuína. Veja-se que nos Estados Unidos nunca vingou as duas formas de ingerência política. A invasão do Capitólio constituiu um exemplo ilustrativo haja vista o pedido de desculpas feito pelo general Mark Milley decorrente do fato de ter permanecido ao lado de Trump. Essa ausência de intervenção também se aplica aos militares de Israel. De modo similar ao caso estadunidense, se mostrou paradigmática a conduta deles frente a ação de Netanyahu em cercear o poder da Suprema Corte a qual apenas levou o Ministro da Defesa a fazer um alerta quanto a possibilidade do aparecimento de inquietações no interior dos quartéis.
Outrossim é notório que a progressiva aproximação dos fardados aos civis e a constante impregnação de concepções paisanas nas organizações castrenses está contribuindo muito para a desconstrução do militar como um indivíduo sui generis. Note-se ainda que sua transformação em cidadão de uniforme no continente europeu, dotado de todos os direitos e deveres outorgados aos civis, tem se revelado como o mecanismo mais adequado e eficiente para evitar qualquer ameaça ao estável e contínuo regime democrático.
Fonte da matéria: Autonomia militar e ingerência política – https://diplomatique.org.br/autonomia-militar-e-ingerencia-politica/
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