Paulo Aranã – Jovem relata: rede de solidariedade o salvou de desejos de vingança contra um ambiente escolar hostil. Atentados não são obras de monstros ou fraquezas pessoais, analisa ele, mas resultado de um sistema falido que embrutece e adoenta a vida.
O que mais me aterroriza nesses ataques a escolas é que eu ainda me lembro da minha adolescência e de como eu sei que eu também poderia ter virado um desses caras.
Teve um período entre a 6° e 7° série que a escola era um lugar extremamente frustrante pra mim. Eu tinha poucos amigos, as meninas que eu gostava não sabiam que eu existia, eu era ridicularizado por um colega de sala todos os dias e apanhava de um rapaz mais velho no corredor.
Eu lembro da raiva que eu sentia. Lembro das coisas que eu escrevia e dos desenhos que fazia na beirada do caderno. Lembro do quanto eu fantasiava com me vingar, com fazer todo mundo olhar pra mim e me reconhecer e me respeitar, nem que fosse por medo.
Um policial ou segurança na escola não teria feito a menor diferença. Eu me desprezava um bocado também, sentia que não tinha nada a perder, que não valia a pena estar vivo e tudo que eu queria era causar dor e medo em quem eu achava que merecia.
O que me salvou foi ter mudado de cidade e colégio e ter sido aceito em uma turma grande, com gente muito diversa. Foi ter feito amizades, conviver com gente diferente de mim, começar a ter uma vida social mais ativa e me sentir parte de alguma coisa.
O que me salvou foi ter pais que sempre me acolheram, me escutaram e também impuseram limites, além de sempre estimularem meu senso crítico e minha empatia.
O que me salvou foi ter tido acesso a lazer, a livros, filmes, músicas e viagens, que expandiram meus horizontes, me estimularam a me expressar e sempre serviram de refúgio, distração e um lugar seguro nos piores momentos.
O que me salvou foi ter tido todo um entorno de acolhimento e pertencimento, todo um apoio e uma estrutura que me permitiram entender e lidar com toda a frustração e raiva que eu sentia, direcionando essa energia pra outros lugares, outros interesses, outras formas de expressão.
Se eu não tivesse toda essa estrutura, se eu tivesse sido acolhido por outro grupo de pessoas também frustradas e raivosas como eu, se eu tivesse tido contato com ideias que estimulassem o ódio que eu sentia poderia ter sido eu a entrar numa escola pra ferir os outros.
Por mais que nessas horas tudo que a gente queira seja se afastar o máximo possível dessas pessoas, é quando a gente consegue se ver nelas que a gente entende que é sobre nós todos e o mundo em que a gente vive e não só sobre quem matou ou quem morreu.
Muito mais que policiais, seguranças ou professores armados a gente precisa de comunidades escolares fortes, com professores, alunos, pais e vizinhança participando e construindo um lugar de acolhimento, inclusão e confiança ao invés de exclusão, repressão e vigilância.
Muito mais que câmeras, grades ou detectores de metal a gente precisa de acesso ao lazer, ao esporte, as artes, a espaços de convivência, de encontro com o outro, com a diferença, espaços de socialização.
Muito mais que armas de fogo nas mãos da população, a gente precisa de uma sociedade que pratique o olhar pro outro, a empatia, o cuidado. Uma sociedade que não individualize tudo e fuja da responsabilidade coletiva de colocar as pessoas no mundo e o que acontece com elas depois.
Os ataques a escolas não são obras de monstros, muito menos de fraquezas individuais ou falhas morais. Os ataques as escolas são resultado de um sistema falido, que não cumpre e não entrega o que promete nem aos que são seus favoritos.
Os ataques a escolas são sintomas de um terror muito maior. Vidas vazias, frustradas, endurecidas, solitárias e insensíveis as dores do outro, mergulhadas em padrões inalcançáveis de masculinidade, heterossexualidade, riqueza, amor, sucesso e mais…
Não que isso justifique ou tire a culpa dos ombros de quem faz a escolha por tamanha violência, mas também é fugir de nossa responsabilidade com o mundo fingir que nossas escolhas são puramente decisões individuais.
É importante que se tome uma série de atitudes, de forças tarefa de monitoramento e investigação online até a presença de psicólogos no corpo docente, de planos e treinamento de evacuação e emergência em escolas até estratégias de desradicalização.
Mas pra além disso a gente precisa construir esperança, oferecer outras possibilidades, outras perspectivas, outros mundos e vidas possíveis, pois as que temos hoje não nos bastam nem nos cabem mais.
O planeta está doente, a sociedade está doente e o resultado são espasmos cada vez mais cruéis e violentos de um sistema político e econômico que se recusa a morrer, nem que precise matar muitos mais pra continuar se justificando e existindo.
O capitalismo se construiu sobre sangue. Dos projetos coloniais as guerras imperialistas. Violência de raça, de classe, de gênero, violência contra sexualidades, contra identidades, violência nas escolas. Não dá pra esperar colher a vida quando tudo que se plantou foi a morte.
Podia ser eu. Atrás do gatilho, na frente do cano ou sendo um pai recebendo a notícia da morte de um filho. Não dá pra aceitar viver num mundo em que essa possibilidade é uma realidade. Não dá pra só se acostumar com as notícias. É preciso cultivar o novo, plantar e colher vida.
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