LEANDRO MELITO – “Se não mudarmos radicalmente nos próximos anos, vamos estar em uma situação cada vez mais difícil de reagir”, conclui Luiz Marques, autor de O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência, ecoando o mais recente documento do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas, divulgado na semana passada. “Temos que deixar os combustíveis fósseis no subsolo. Parar de queimar carvão, petróleo, gás etc. Temos que parar de desmatar, recuperar as florestas e recusar o agronegócio como modelo de sistema alimentar globalizado.”
Em perfeita sintonia com O decênio decisivo — em pré-venda no site da Elefante —, o novo alerta do IPCC chama a atenção para a gravidade da crise climática causada pelo aquecimento global e o curto espaço de tempo disponível para interromper esse processo. O relatório síntese é um resumo dos últimos seis relatórios produzidos pelo grupo internacional de pesquisadores a partir de 2018, no qual admite publicamente que a temperatura média global ultrapassará pela primeira vez até o final desta década 1,5 °C acima do período pré-industrial.
Luiz Marques classifica o documento como um “carimbo final” em relação à urgência de ações para evitar um desfecho trágico. “Eu abordo isso no livro. É praticamente universal que nós agora estamos diante de uma perspectiva de curtíssimo prazo de uma temperatura que atingirá ou excederá 1,5 °C pela primeira vez ainda nesta década, em direção a 2 °C a partir dos anos 2030. Isso é terrificante”, afirma o pesquisador, em entrevista à Elefante.
Após o completo descaso com a agenda ambiental durante o governo de Jair Bolsonaro, que rebaixou o Brasil no cenário internacional em relação a essa questão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu com um forte discurso em defesa do meio ambiente. Marques observa que os primeiros cem dias do novo governo foram marcados por avanços concretos e medidas importantes nessa área, mas alerta para as contradições que despontam no horizonte.
“Lula não está, a meu ver, adotando na prática políticas compatíveis com a gravidade extrema da nossa situação. Ele tem várias razões para isso. Não tem força política para tanto, tem que negociar com bancadas parlamentares muito agressivas, e depende em grande medida delas. Na prática, você tem uma política que começa a mostrar muito rapidamente as suas limitações, isso é muito preocupante.”
Leia a entrevista completa:
O relatório do IPCC traz um alerta sobre a crise climática, o aquecimento global e as medidas urgentes e necessárias para que a gente consiga reduzir emissões e evitar uma catástrofe, cenário que você apresenta no seu livro O decênio decisivo.
O IPCC está resumindo esses resultados. Sendo um resumo, o relatório diz o que já é sabido a respeito das dinâmicas em curso do aquecimento global. Mas como todo bom resumo, ele é mais eloquente. O mais interessante não é tanto o relatório em si, mas os comentários feitos pelos próprios cientistas do IPCC, sobretudo o comentário publicado no seu press release de parte do presidente do IPCC, Hoesung Lee. Ele afirma que o aumento da temperatura média global atingirá pela primeira vez 1,5 oC acima do período pré-industrial em algum momento ainda nesta década. Trata-se, até onde sei, da primeira vez em que o IPCC, ou ao menos seu presidente, faz esse tipo de afirmação. As projeções do IPCC não se referem à primeira vez em que certo nível de aquecimento ocorrerá. Elas se ocupam de níveis de aquecimento consolidados e irreversíveis no sistema climático. O comentário de Hoesung Lee parece a mim, nesse sentido, um tanto inédito. Em 2018, o IPCC havia projetado a ultrapassagem definitiva desse patamar em algum momento entre 2032 e 2050, com o centro da projeção em 2040, e isso foi bastante criticado, inclusive numa publicação da revista Science, pois considerado uma projeção muito conservadora. O IPCC é uma comunidade intergovernamental de cientistas e, portanto, deve submeter os resultados dos seus relatórios à aprovação dos governos. Ele é cientificamente independentemente, mas tem que negociar duramente sua aprovação com representantes dos governos que tentam suprimir ou “suavizar” certas frases mais contundentes de cada relatório. Esse relatório publicado agora em março de 2023 deveria ter saído em outubro do ano passado para servir de base para a COP 27 no Egito. Não saiu exatamente por pressão de vários governos, sobretudo dos governos da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, da Austrália, entre outros. Isso explica por que os resultados e projeções do IPCC estão quase sempre um pouco aquém da tendência emergente no consenso científico. Quando alguém como Hoesung Lee diz que um aumento da temperatura média global de 1,5 oC vai ocorrer pela primeira vez em algum momento nesta década, isso é, de alguma maneira, um carimbo final em relação a essa questão.
A questão dos prazos, dos horizontes de tempo, é algo que eu trabalho o tempo todo no livro, como já o indica seu título. Temos hoje uma percepção praticamente universal, em ciência sempre haverá alguma divergência, mas é praticamente um consenso consolidado e universal que estamos agora diante de uma perspectiva de curtíssimo prazo de uma temperatura que excederá pela primeira vez 1,5 oC em algum momento nesta década, em direção a 2 oC a partir dos anos 2030. Isso é terrificante. Outro elemento importante a acrescentar: pela primeira vez o IPCC afirma, com todas as letras, que as escolhas e ações implementadas nesta década terão impactos imediatos e ao longo de milênios. Isso não significa, é claro, que, mantida a atual trajetória, em 2031 tudo estará, por assim dizer, perdido. Significa precisamente que quanto mais tardarmos em agir no sentido de reverter as tendências atuais, mais difícil se tornará revertê-las. Então, é muito clara a importância da afirmação de que esta década é uma década decisiva, que é exatamente, mais uma vez, o título do livro.
O livro tem esse aspecto de oportunidade, digamos assim. Ele se permite afirmar, com maior ênfase, aquilo que a ciência afirma, muitas vezes, entretanto, de modo demasiado técnico: temos, concretamente, que deixar os combustíveis fósseis no subsolo, parar de queimar carvão, petróleo, gás e biomassa. Temos que parar de desmatar, temos que recuperar as florestas, sobretudo as florestas tropicais, pois nelas se concentra cerca de dois terços da flora e da fauna, em suma, da biodiversidade terrestre. Temos que recusar o agronegócio como modelo do sistema alimentar globalizado, o que significa diminuir drasticamente o consumo de carne, diminuir drasticamente o uso de agrotóxicos e de fertilizantes industriais. Estamos também diante de uma crise iminente de recursos hídricos. A gente está vendo rios na Europa, que eram rios perenes, virando rios sazonais. E não apenas na Europa. Também no Brasil, no Irã, nos EUA, no Chile e em tantas outras latitudes.
Diante desse quadro geral, percebemos uma reatividade ainda muito baixa das sociedades, para não dizer imobilismo, em relação ao perigo. Há por certo uma consciência crescente desse perigo, mas ela é ainda muito baixa, inclusive nos segmentos com mais acesso à informação científica. E por que essa baixa reatividade? Entre outras razões, porque estamos diante de um sistema capitalista globalizado, ideologicamente muito eficiente em nos “convencer” da inexistência de alternativas sociais e políticas ao que se convencionou chamar as “leis” do mercado. Essas são vendidas à opinião pública pela imprensa e por boa parte da Academia como se fossem leis da física, leis inflexíveis que devem manter inalterada a lógica da acumulação do capital, sob pena de caos. E quando falo “capitalismo”, refiro-me não apenas aos países capitalistas “clássicos”, não apenas, aos Estados Unidos, ao Japão e aos países da União Europeia, mas também à Rússia, à China e às demais nações dos BRICS, que ainda se consideram emergentes. Os países do G20, os vinte países com maiores PIBs do mundo (85% do PIB global), são responsáveis por cerca de 80% das emissões de gases de efeito estufa. São esses países que, efetivamente, têm que se alinhar a uma política de radicalidade, de mudança radical. De onde as propostas para uma política de sobrevivência, subtítulo do livro. Políticas que são, de resto, evidentes. O problema não é tanto a formulação dessa agenda, mas a consecução de políticas capazes de viabilizar essas mudanças. Isso é muito mais difícil.
A gente vem de um governo Bolsonaro que manchou mundialmente nossa imagem na questão ambiental e o Lula assume com um discurso forte nessa área. Qual é o papel do Brasil hoje nesse processo? O que a gente precisa fazer domesticamente e como podemos levar essa discussão para fora?
O Brasil se situa entre os dez países mais emissores de gases de efeito estufa. Portanto, tem um papel importantíssimo e uma responsabilidade gigantesca em relação à questão ambiental. Mais importante ainda do que isso é a relevância do Brasil no que se refere à biodiversidade, porque nós concentramos ainda a maior parte das florestas tropicais do planeta. Isso confere ao Brasil um peso excepcional no concerto das negociações globais. O fato mais dramático a salientar aqui é que muitas florestas do Brasil, inclusive na Amazônia, já se converteram de sumidouros de carbono em fontes de liberação de carbono, por causa do desmatamento e da degradação do tecido florestal. Eu sou bastante otimista em relação à capacidade do Brasil assumir uma posição de destaque, pois nos livramos de Bolsonaro e qualquer coisa que não seja Bolsonaro é fonte de esperança. Sem dúvida nenhuma, Lula adotou nesses primeiros 100 dias de governo uma série de medidas positivas: a criação, por exemplo, do Ministério dos Povos Indígenas, com a excelente Sônia Guajajara à sua frente, e a nomeação de pessoas de reconhecida reputação científica e experiência política em lugares-chave: Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, Mercedes Bustamante [presidência da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)], Ricardo Galvão [presidência do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)], Joênia Wapichana na Funai etc. São pessoas que têm capacidade de formular e implementar políticas necessárias, ou pelo menos os primeiros passos efetivos para essas políticas.
Mas há um outro lado da balança, que preocupa. Por exemplo, a questão do gasoduto da Argentina, anunciado pelo Lula em sua visita à Argentina; a renovação ou não da licença de Belo Monte; o licenciamento da exploração de petróleo em toda aquela região norte da plataforma marítima do Brasil, do Amapá ao Rio Grande do Norte. Um quarto ponto que preocupa é essa viagem do Lula à China com um bando de empresários ligados à pecuária bovina, do Centro-Oeste, do Cerrado e da Amazônia, historicamente responsáveis por 80% do desmatamento da Amazônia e de uma grande porcentagem também de desmatamento do Cerrado. Como diz uma amiga, são como gafanhotos que destroem tudo à sua volta. A comparação é exata. Lula não está, a meu ver, adotando na prática políticas que sejam compatíveis com a gravidade extrema da nossa situação. Ele tem várias razões para isso. Não tem força política para tanto, tem que negociar com bancadas parlamentares muito agressivas e depende em grande medida delas. Na prática, você tem uma política que começa a mostrar muito rapidamente as suas limitações, isso é muito preocupante.
Você tem essa perspectiva otimista de que ainda dá tempo de resolver a situação, de amenizar ou criar mecanismos para que a gente não atinja o ponto de não retorno. Agora, precisamos de ações imediatas, como aponta o relatório e você também, no livro. Qual a perspectiva mundial em relação a essas ações, o que você colocaria como prioritário?
Todos sabemos o que é preciso fazer, a começar pela diminuição imediata do consumo de petróleo. Não se pode mais abrir nenhuma plataforma de exploração de petróleo. Quem o diz não são ambientalistas “radicais”. É a Agência Internacional de Energia (AIE), baseada em cientistas da mais ilibada reputação, muitos dos quais deveriam, de resto, até ter maior militância política na área ambiental. Mas, infelizmente, ainda não têm. Limitam-se a registrar fatos e tendências que estão, em todo o caso, muito precisamente quantificados.
O limite final para começar a diminuir a curva das emissões de gases de efeito estufa era 2020, se quiséssemos manter uma chance razoável de limitar o aquecimento médio global em 1,5 oC. Houve a pandemia que, bem ou mal, causou uma diminuição muito rápida e muito efêmera, temporária, dessas emissões. Mas já em 2021-2022 voltamos aos níveis de 2019 e agora continuamos a aumentá-las, e as projeções são claras: estamos ainda em uma dinâmica de crescimento dessas emissões. Elas teriam que diminuir já, o que supõe diminuir a queima de combustíveis fósseis. Sabemos isso, sabemos que temos que parar de desmatar também. Sabemos que temos uma situação de trágica perda de biodiversidade, entre as quais, por exemplo, a perda de polinizadores, fundamentais para a produtividade agrícola e para a reprodução de muitas espécies de plantas. Mesmo de um estreito ponto de vista antropocêntrico, temos que manter essa biodiversidade porque dependemos dela para nos alimentar. Tudo depende, em última instância, da própria sociedade. Depende, em última instância, de você e de mim, de exigir, de se organizar politicamente, de levantar uma barreira forte à dinâmica típica do capitalismo globalizado, que é a dinâmica expansiva, é a dinâmica de acumulação do capital, que considera a economia como um sistema fechado gerador de lucro.
Enquanto a sociedade não exigir uma mudança na lógica de como as sociedades funcionam, vamos continuar a afundar, porque, evidentemente, por mais otimista que alguém seja, jamais poderia acreditar que as corporações vão adotar, elas mesmas, as políticas necessárias para sairmos dessa lógica suicida. Não vão. Elas são a causa disso. Elas não vão se contradizer existencialmente; vão continuar a fazer o que é sua razão de ser. A razão de ser de uma empresa de petróleo é obter o máximo lucro possível na exploração do petróleo. Pretender que empresas de petróleo deixem de extrair petróleo é como querer que você pare de respirar. Então elas só vão parar de fazer o que justifica sua existência se forem obrigadas. E quem pode obrigá-las a fazer isso são as sociedades. Os governos têm que sofrer uma pressão de tal ordem, que se vejam obrigados a adotar políticas de sobrevivência. E isso depende da admissão coletiva de que tais políticas são necessárias, ainda que redundem em muito sofrimento. Difícil, claro. Mas o que é certo é que quanto mais demorarmos a reagir, maior será esse sofrimento.
Minha razão para manter certo otimismo é basicamente esta: a gente não conhece e não consegue prever a dinâmica das sociedades, sua capacidade de se organizar, de protestar, de não consentir. As sociedades podem estar prestes a dar um salto de qualidade muito grande nessa reatividade. No momento atual, a gente não vê isso, a gente vê um aumento muito gradual da consciência, um processo muito lento, ainda muito aquém do que seria necessário. Mas ninguém sabe o dia de amanhã, ninguém consegue prever a forma da curva. O que esse livro quer? Ele quer pôr uma gotinha a mais nesse estoque, digamos assim, de consciência política e de não consentimento em relação às políticas atuais, de maneira a fazer com que a sociedade diga não. Nós temos que dizer não. É muito difícil dizer não, mas essa é a condição primeira de possibilidade para que a gente consiga deter esse processo. Temos pela frente mais poucos decênios, talvez mais um decênio apenas, de sociedades organizadas, capazes, por exemplo, de produzir alimentos, de ter acesso à água doce e despoluída em quantidade suficiente e a demais condições elementares de vida. Muito em breve não teremos comida e água em quantidades suficientes. Os especialistas têm afirmado, inclusive recentemente, que a demanda global de água superará em 40% a oferta até 2030. Vamos ter, além disso, picos de calor e eventos meteorológicos extremos cada vez mais letais, e assim por diante. A gente nunca esteve numa situação tão grave em toda a história da nossa espécie, e com ameaças tão iminentes, ameaças que podem se tornar, em breve, existenciais.
Por onde pode começar a mudança de comportamento em relação a essas questões?
Temos que voltar a acreditar em nós mesmos. As pessoas da minha idade, tenho 71 anos, conviveram ao longo da segunda metade do século XX com derrotas, fracassos, desilusões de todo tipo em relação a projetos alternativos de sociedade. Recebemos recorrentemente avisos de que essas tentativas de alternativas sistêmicas acabavam sendo iguais ou mesmo piores que o capitalismo, como foi o caso da União Soviética e da Rússia de hoje, entre outros. Então isso abalou muito nossa autoconfiança na capacidade da humanidade de superar esses grandes obstáculos, que hoje apenas aumentam. E as gerações mais novas, por outro lado, cresceram num ambiente político e ideológico no qual a questão de mudanças sistêmicas radicais já era coisa do passado. Já não existiam mais. Precisamos, velhos e jovens, voltar a ter confiança na gente, não para reproduzir os modelos que eram considerados revolucionários no começo do século XX, como a Revolução Russa. Isso, evidentemente, acabou. Mesmo a palavra socialismo, a meu ver, é uma palavra hoje profundamente impregnada de uma carga muito negativa. Mas a gente não pode jogar o bebê junto com a água suja do banho, como se diz. Aliás, as mudanças de que precisamos hoje são muito mais radicais do que a agenda das revoluções socialistas do passado, porque elas envolvem hoje não apenas as relações sociais, mas nossas relações com a natureza, algo que não era uma preocupação do passado. Em outras palavras, a gente tem que cultivar uma confiança nova e muito mais audaciosa em nossa capacidade de mudar. Acho que é isso que está faltando, em primeiro lugar. Um elemento fundamental para que as sociedades mudem é acreditar que elas são capazes de mudar. É um ingrediente psicológico e emocional muito importante.
Fonte da matéria: ‘A espécie humana nunca viveu situação tão grave’ – Editora Elefante – https://elefanteeditora.com.br/luiz-marques-o-ser-humano-nunca-viveu-situacao-tao-grave/
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