Cory Doctorow – O Transnational Institute (TNI) é um instituto internacional de pesquisa e proposição política, em atuação desde 1974, comprometido com a construção de um planeta justo, democrático e sustentável. O TNI tem a reputação de construir análises originais fundamentadas em pesquisas sobre as principais questões globais, muitas vezes de modo pioneiro em diversos temas. Como um instituto não sectário formado por pesquisadores, ativistas acadêmicos e de movimentos sociais, o TNI se esforça por combinar a análise de panorama geral com propostas e soluções que sejam justas e pragmáticas.
Vamos começar com uma grande questão em aberto, que está no centro do relatório State of Power: Digital Power [Estado do Poder: Poder Digital] da TNI: quem tem poder digital hoje?
Cory Doctorow – Essa é uma excelente pergunta. Como observou Tom Eastman, um desenvolvedor de softwares na Nova Zelândia, a Web se transformou em cinco websites gigantes, cada um cheio de capturas de tela de textos dos outros quatro. Um número ínfimo de empresas extremamente poderosas – a saber, Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft – têm o que os reguladores europeus chamam de poder da porteira [gatekeeper] – o direito de decidir quem pode falar, quem pode alcançar uns aos outros, como vai funcionar. Este é um afastamento marcante do espírito de origem de empresas como essas, que se caracterizava pela ideia de que a Internet seria um novo tipo de rede em que qualquer pessoa que quisesse falar com qualquer pessoa poderia fazê-lo sem a intervenção de terceiros. Temos agora um sem número de “pontos de estrangulamento” [chokepoints] nos quais o discurso ou atividades como a captação de recursos podem ser controlados por uma dentre um número ínfimo de empresas.
E é importante notar que a razão pela qual se permitiu que essas empresas crescessem até ficar tão enormes, a razão pela qual os agentes reguladores estatais fizeram vista grossa, é que os Estados veem essas empresas como potenciais intermediários para o seu próprio exercício de poder. É altamente improvável, por exemplo, que a Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) pudesse conseguir uma autorização legal ou nos convencer a carregar sinalizadores que transmitissem nossa localização ao redor de todo o mundo. Ao permitir isso às empresas, ao não intervir e não exigir regulamentação, o governo dos EUA conseguiu um futuro no qual a NSA não precisará nos grampear a todos. Ele pode simplesmente solicitar ao Facebook, Google ou Apple as informações que de outra forma não conseguiria obter. E assim, isso realmente precisa ser entendido como uma parceria público-privada.
Como ocorre essa inter-relação de poder entre o Estado e as corporações?
Bem, tem um exemplo muito claro. O Google coleta seus dados de localização de uma forma claramente enganadora. Se você desativar o rastreamento de localização em seu dispositivo Android ou iOS, ele não parará de rastrear sua localização. Existem pelo menos 12 pontos diferentes que você precisa acessar e desativar para interromper o rastreamento de localização. E mesmo assim, não fica claro se eles realmente vão parar de rastrear. Até a equipe do Google reclama que não consegue descobrir como desativar o rastreamento de localização. Agora, em qualquer tipo de mundo saudável, esta seria uma atividade proibida. A Seção Cinco da Lei da Federal da Comissão de Comércio dá à agência amplas possibilidades de intervir para prevenir práticas “injustas e enganadoras”. É difícil defender a ideia de que, se você clicar no botão “Não me rastreie” e ainda assim for rastreado, essa prática é justa e não enganadora. Este é claramente o tipo de coisa que a lei proíbe. E, no entanto, os governos não tomaram nenhuma medida. Não surgiu nenhuma legislação ou regulamentação para impedir isso.
Ao mesmo tempo, vemos o uso crescente de dados de localização do Google e o que o Estado chama de mandados de perímetro geográfico ou mandados reversos. É aqui que algum órgão de Estado procura o Google, às vezes, mas nem sempre com um mandado, e descreve um local – um perímetro, rua por rua – e um período de tempo, digamos 13h às 16h, e exige a informação de todos que estavam naquele perímetro. Isso foi amplamente usado contra os manifestantes do Black Lives Matter e depois contra os manifestantes do 6 de Janeiro [de 2021, a invasão do Capitólio]. Então, aqui dá pra ver como o Estado tem um incentivo perverso para não impedir essa conduta enganadora e injusta.
Mas é uma conduta muito perigosa, porque uma empresa grande como o Google sempre terá ameaças internas, como funcionários que aceitam suborno de outras pessoas. O Twitter, por exemplo, é bem conhecido pelos agentes sauditas que se infiltraram na empresa, roubaram os dados dos usuários sauditas e os forneceram aos serviços de inteligência sauditas para que pudessem vigiar esses ativistas e infringir represálias contra eles nas formas mais violentas e medonhas imagináveis.
Há também os riscos de que quaisquer dados coletados acabem vazando e possam ser controlados por criminosos. Uma boa regulamentação envolveria extinguir essa conduta. A única maneira de entender por que isso continua é que há muitas partes interessadas dentro do governo que dependem desses bancos de dados muito perigosos e enganosos para facilitar seu trabalho. Portanto, eles não apenas deixam de apoiar os esforços para controlar o Google e outras empresas, eles efetivamente se opõem a fazê-lo, tanto publicamente como nos bastidores. É muito difícil, como observou certa vez Upton Sinclair, fazer com que alguém entenda alguma coisa quando seu contracheque depende do fato de ela não entender.
Quais são as implicações dessa relação estado-empresa em nível global?
Bem, desde meados dos anos 2000 até o início dos anos 2010, diversas empresas de tecnologia se mudaram para estabelecer escritórios locais em países onde o Estado de direito era muito débil. Um divisor de águas foi quando o Google entrou e saiu da China, e então vimos muitas empresas se estabelecerem na Rússia, após sua adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC). Vimos o Twitter abrir um escritório na Turquia. E tudo isso era importante porque colocava as pessoas em situação de perigo. Essa mudança deu aos governos nacionais desses países o poder de literalmente colocar as mãos em pessoas importantes dentro dessa estrutura corporativa e, assim, coagir a cooperação dessas empresas de uma forma que seria muito mais difícil se, por exemplo, Erdogan quisesse brandir seu sabre contra os funcionários do Google na Califórnia. Se o executivo do Google mais próximo estivesse a um oceano e um continente de distância, o Google teria um cálculo muito diferente sobre sua participação na vigilância turca do que quando há pessoas com quem eles se preocupam que podem ser fisicamente detidas e jogadas na prisão.
Há uma história semelhante da proliferação de grandes firewalls, primeiro na China e depois como um produto pronto para uso (sistemas que são instalados e estão prontos para operar) em outros lugares, pois empresas chinesas e ocidentais vendiam suas soluções prontas para uso para governos com exígua capacidade técnica própria.
Isso levou os governos a dizer às empresas: a menos que você coloque alguém neste país e armazene seus dados aqui, bloquearemos você em nossas fronteiras. E eles citam as regras de localização de dados da União Europeia (UE) que dizem que as empresas americanas que operam na UE não podem mover os dados dos europeus para os EUA, onde a NSA pode obtê-los. Esta é uma regulação perfeitamente razoável feita pela UE. Mas, dependendo da natureza do governo, pode ser que eles tenham ainda menos respeito pela privacidade do que a NSA, ou sejam ainda mais propensos a usar os dados de seus próprios cidadãos como armas do que os EUA. Estou pensando, por exemplo, em como o Estado da Etiópia usou ferramentas de vigilância em massa (dispositivos prontos para uso de empresas ocidentais) para capturar, prender, torturar e assassinar – em alguns casos, pessoas que eram membros da oposição democrática. Portanto, para entender como os dados estão ao alcance das autoridades etíopes, você deve entender a interação entre localização de dados, tecnologia de firewall nacional e a necessidade das empresas de estabelecer escritórios de vendas em países de todo o mundo para maximizar seus lucros.
E como a Inteligência Artificial ou o aprendizado de máquina se encaixam nisso?
Não gosto do termo inteligência artificial. Não é nem artificial nem inteligente. Eu nem gosto muito do termo aprendizado de máquina. Mas se a gente chamar de “inferência estatística” vai ficar faltando um je ne sais quoi. Então, vamos chamar de aprendizado de máquina, que pode ser mais bem compreendido como um mecanismo que permite decisões automatizadas em uma escala que os seres humanos não poderiam alcançar. Portanto, se você quiser identificar tudo o que tem formato de rosto em uma multidão, examinando um banco de dados de todos os rostos que você conhece, a capacidade de ação de um Estado seria limitada apenas pelo seu número de pessoas. Na ex-Alemanha Oriental, uma em cada 60 pessoas trabalhava em alguma função para os serviços de inteligência, mas eles jamais poderiam ter chegado perto das atuais escalas de vigilância.
Mas isso traz dois problemas importantes. O primeiro é que pode funcionar, e o segundo é que pode não funcionar. Se funcionar, é uma capacidade de inteligência além dos sonhos de qualquer ditador da história. Quanto mais fácil for para um governo impedir que haja oposição, menos ele terá que se dedicar a governar bem com o objetivo primeiro de impedir o fortalecimento da oposição. Quanto mais barato for construir presídios, menos hospitais, estradas e escolas você precisará construir, haverá menor necessidade de governar bem e mais você poderá governar para o interesse dos poderosos. Logo, quando funciona, é ruim.
E quando falha também é ruim, porque, por definição, está operando em uma escala muito rápida para ter um humano no circuito. Se você tiver milhões de decisões sendo feitas a cada segundo ao ponto que nenhum ser humano possa ter qualquer expectativa de supervisionar, e se houver apenas uma pequena quantidade de erro, digamos que seja 1%. Bem, 1% de 1 milhão são 10 mil erros por segundo.
Então, alguma coisa mudou desde as revelações de Snowden?
Eu realmente acho que hoje temos uma maior consciência de que há um processo de vigilância em curso. Não é tão controverso dizer que estamos sob vigilância em massa e que nossos dispositivos digitais estão sendo aliciados pelo Estado. Ele criou espaço para empresas e organizações sem fins lucrativos criar e manter tecnologias resistentes à vigilância. Você pode observar o aumento do uso de tecnologias como o Signal, bem como a integração por grandes empresas como o Facebook da tecnologia anti-vigilância no WhatsApp.
E dentro do setor há uma sensação crescente de que essa vigilância em massa é ruim porque o principal mecanismo usado pelas agências de vigilância do governo é identificar defeitos na programação e, em vez de relatar esses defeitos aos fabricantes, retê-los e depois usá-los para atacar adversários da agência. Assim, a NSA descobre algum bug no Windows e, em vez de dizer à Microsoft, usa-o para hackear pessoas que eles acham que são terroristas ou espiões ou apenas pessoas contrárias aos interesses nacionais dos EUA.
E o problema com isso é que há cerca de uma chance em cinco por ano de que qualquer defeito seja redescoberto de forma independente e usado por criminosos ou por um governo hostil, o que significa que o governo dos EUA expôs seus acionistas, empresas e indivíduos a riscos de proporções gigantescas ao descobrir esses defeitos e, de imediato, não agir rapidamente para fechar essas brechas. Esse risco se expressa muito claramente, de fato, na atual epidemia de ransomware, na qual oleodutos, hospitais e agências governamentais e cidades inteiras estão sendo atacadas por pequenos criminosos.
Então, esse é o tipo de reação que vimos contra a vigilância em massa, acendeu a centelha de um movimento antivigilância que agora está ganhando força, mesmo que não tenha chegado tão longe quanto se esperaria, dado o sacrifício realizado por pessoas como Ed Snowden.
Qualquer coisa que não possa durar para sempre acabará por ter um fim. E a vigilância em massa é tão tóxica para o nosso discurso, tão perigosa e imprudente, que não pode durar para sempre. Então, a questão não é se vai acabar, mas quanto perigo e dano vai causar antes de darmos um fim a ela. E momentos como as revelações de Snowden tornam esse tempo mais próximo.
Voltemos às empresas responsáveis por esta tecnologia. Como você caracterizaria o problema das Big Tech? Estamos falando de algumas empresas ou indivíduos que têm muito poder, como Elon Musk ou Mark Zuckerberg? Ou o problema é de seus modelos de negócios, a vigilância em massa? Ou será que as Big Tech estão operando dentro de uma estrutura muito mais ampla, que é problemática?
A primeira coisa que precisamos entender sobre as Big Tech é que elas não são muito boas em inovação. Pegue o Google. É uma empresa que criou três produtos de sucesso. Eles criaram um mecanismo de busca muito bom há 30 anos, um ótimo clone do Hotmail e um tipo de navegador sinistro. Tudo mais que eles fizeram internamente falhou. E todos os outros sucessos foram obtidos comprando outras empresas. Quando a parte de vídeo do Google falhou, eles compraram o YouTube. Seu pacote de tecnologia de anúncios, seu pacote para celulares, suas ferramentas de gerenciamento de servidor, suas ferramentas de atendimento ao cliente – com exceção daquelas três ferramentas, cada parte da empresa do Google foi comprada de outros.
Historicamente, os reguladores antitruste teriam impedido essas fusões e aquisições anticompetitivas e forçado essas empresas a descobrir como inovar por conta própria ou sair do caminho enquanto pessoas com ideias melhores as ultrapassavam. O Google não é único: Apple, Facebook, Microsoft são fábricas de compra de empresas que fingem ser fábricas de geração de ideias. Congelamos a tecnologia no tempo, permitindo que as empresas que têm acesso aos mercados de capitais decidam como será o futuro da tecnologia. É uma economia planejada, mas é planejada por alguns financiadores muito poderosos e executivos de algumas grandes empresas, não por legisladores ou governos democraticamente responsáveis – ou mesmo por um autocrata, ou pelo menos um autocrata que tenha um cargo público. Hoje em dia temos autocratas nas salas de reuniões das empresas.
E uma vez que se entenda que a maior vantagem dessas empresas é poder acessar os mercados de capitais e comprar e extinguir rivais em potencial antes que eles possam ganhar importância, então começamos a entender como se configura o seu poder. É um erro acreditar na autopropaganda do Google e do Facebook, que dizem aos anunciantes em potencial que construíram um raio de controle da mente que podem usar para vender qualquer coisa para qualquer pessoa se você pagar um modo premium. As pessoas afirmam ter construído o controle da mente desde Rasputin ou antes, e todas estavam mentindo. Suas afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias – e as evidências são muito escassas.
Em vez disso, o que vemos são empresas que têm um monopólio. O Facebook pode atingir 3 bilhões de pessoas porque as espiona o tempo todo e porque é basicamente impossível usar a internet sem usar o Facebook. Mesmo que você não seja um usuário do Facebook, todo aplicativo que você usa tem uma boa chance de ter sido construído com o kit de ferramentas do Facebook, o que significa que ele está sempre coletando dados sobre você. O mesmo acontece com o Google. Não é verdade que o modelo de negócio de vigilância é o que deu poder a essas empresas. É o poder delas que permite que adotem um modelo de negócios de vigilância que, de outra forma, teria sido proibido por qualquer sistema saudável de regulamentação ou teria sido combatido pelos concorrentes.
Por exemplo, muitas pessoas gostam de usar um ótimo mecanismo de pesquisa, mas poucos de nós percebem como o Google nos espiona. Historicamente, se você tem uma empresa cujos produtos digitais fazem três coisas que seus clientes gostam e uma coisa que eles desprezam, então alguém fará um módulo de pós-venda que lhe dará todas as coisas que você gosta e nenhuma das coisas que você não gosta. No entanto, sempre que uma empresa tenta construir algo assim, ela é comprada pelo Google, Facebook, Apple ou uma das outras grandes empresas, ou é processada até ser esquecida por se envolver em uma conduta muito semelhante às que essas empresas se envolveram quando estavam crescendo. Quando elas fazem, é um processo legítimo. Quando nós fazemos isso, é roubo.
E o que você acha da opinião de que a questão é o modelo de negócios de vigilância que empresas como o Google adotam?
Não acho que a questão seja o modelo de negócios. Existe essa ideia de que se você não está pagando pelo produto, você é o produto. Bem, a Apple lançou uma ótima tecnologia antivigilância que impede o Facebook de espioná-lo. Mas acontece que, mesmo que você ative as ferramentas “Não Me Espione” em seu dispositivo iOS, iPhone ou iPad, a Apple ainda espiona você. Eles coletam sorrateiramente um conjunto de informações quase idêntico ao que o Facebook teria coletado e o usam para direcionar anúncios para você. O maior acordo que a Apple faz todos os anos, negociado pessoalmente entre o executivo sênior da Apple, Tim Cook, e o executivo sênior do Google, Sundar Pichai, é aquele que torna o Google a ferramenta de pesquisa padrão no iOS, o que significa que toda vez que você usa seu iPhone, você está sendo espionado pelo Google.
Portanto, a ideia de que existe uma empresa boa e uma empresa ruim ou que o modelo de negócios de vigilância transforma nerds bons e honestos em, digamos, tenebrosos vilões do mal, não resiste a uma análise mais detida. As empresas irão tratá-lo como podem tratá-lo. E se puderem encontrar uma maneira de ganhar dinheiro tratando você como um produto, elas o farão. E se você acha que dar dinheiro a elas fará com que parem, você é um otário.
Cory, sua resposta é a primeira que talvez um tanto encorajadora, pois entendemos que o poder digital das Big Tech é baseado em mediocridades que conseguem obter um monopólio. Então, essencialmente, se formos capazes de quebrar seu monopólio, talvez possamos retomar o seu poder nas nossas mãos?
Sim, acho que isso é verdade. O problema da teoria do raio de controle da mente que você vê publicada em livros como o de Shoshana Zuboff, Age of Surveillance Capitalism [Era do capitalismo de vigilância] é que ela aconselha o desespero. Há uma parte do livro em que ela diz: “Bem, e a lei da concorrência? E se nós simplesmente desmantelássemos essas empresas e as tornássemos menos poderosas?”. Ela argumenta que isso não as tornaria menos poderosas, porque agora que elas têm esse raio de controle da mente, mesmo que se ficassem pequenas novamente, elas ainda teriam a capacidade de controlar as mentes. E, em vez de ter um raio de controle da mente controlado por um supervilão do mal, você terá centenas de supervilões do mal, como armas nucleares empunhadas por terroristas, em vez de nossa atual teoria de um jogo friamente racional jogado por superpotências.
Isso seria verdade se eles tivessem, de fato, construído superarmas. Mas eles não o fizeram. Eles nem são muito bons no que fazem. Eles continuam piorando seus produtos e cometem erros terríveis em grande quantidade. Só que, como acontece com pessoas muito poderosas, eles podem falhar e, pelo fato de terem um grande colchão – poder de mercado, reservas de capital, acesso aos mercados de capitais, aliados poderosos em agências governamentais e outras empresas que dependem deles para infraestrutura e suporte –, eles podem fazer todo tipo de burrada e meio que seguir adiante. Elon Musk é um garoto-propaganda de fracassos. É um homem que está tão isolado por sua riqueza, sua sorte e seu privilégio, que não importa quantas vezes ele erre, ele ainda consegue cair em pé.
Onde foi que a esquerda errou? Nós dois atingimos a maioridade na década de 1990, quando sentimos que a internet era uma ferramenta emancipatória e que as forças progressistas de esquerda estavam na vanguarda, seja desafiando estruturas como a Organização Mundial do Comércio seja derrubando governos antidemocráticos. Mas agora vivemos em uma época em que as grandes corporações têm pontos de estrangulamento usados para o controle, em que o discurso da internet é povoado por desinformação e é a extrema direita que parece ter muito mais sucesso no uso de tecnologias digitais. Então, o que você acha que aconteceu para chegarmos a isso e quais são as lições?
O erro não estava em ver o potencial libertador da tecnologia ou em não ver seu potencial de confiscar a liberdade e o poder, mas sim em não entender o que havia acontecido com o direito da concorrência e não apenas na tecnologia, mas em todas as áreas do direito, que começou com Ronald Reagan e se acelerou na era da tecnologia. Lembre-se de que Reagan foi eleito no ano em que o computador Apple II Plus chegou às prateleiras. Portanto, a economia neoliberal e o setor de tecnologia não podem ser separados. Eles estão firmemente interpenetrados. Falhamos em entender que algo fundamentalmente diferente estava acontecendo na maneira como permitíamos que as empresas conduzissem seus negócios, deixando-as comprar qualquer concorrente que se interpusesse em seu caminho e permitindo que os mercados de capitais financiassem essas aquisições para criar esses monopólios que mudariam o equilíbrio de forças.
Minha história pessoal é que eu ganhei um Apple II Plus em 1979, pelo qual me apaixonei e foi ali que me tornei um jovem obcecado por tecnologia. Naquela época, as empresas gigantes entravam em colapso da noite para o dia, e uma nova empresa ainda mais incrível surgia no lugar dela. Era fácil pensar que este era um caráter intrínseco da tecnologia. Olhando em retrospecto, eram os últimos dias de um mercado competitivo de tecnologia. O Apple II Plus e os computadores pessoais foram possíveis devido à intervenção antitruste na indústria de semicondutores na década de 1970. O modem tornou-se possível com a dissolução da AT&T em 1982.
Como resultado, agora temos este mundo onde esse estímulo e esse dinamismo acabou. Vivemos em um tempo ossificado. Uma época em que tecnologia, entretenimento e outros setores se fundiram não apenas uns com os outros, mas com os militares e o Estado, de modo que temos apenas uma bolota densa e cada vez mais concentrada de poder corporativo, que se mistura com o poder estatal de uma forma que é muito difícil desemaranhar.
Então, você diria que o gênio saiu da garrafa? Parece haver alguns movimentos em direção à regulamentação nos últimos anos, como o Regulamento Geral de Proteção de Dados na Europa, a Lei dos Mercados Digitais. Existem discussões antitruste nos Estados Unidos e, de um modo geral, as pessoas estão acordadas para isso. Como você enxerga esses esforços dos legisladores e a maior conscientização pública?
Estamos vivendo um momento extraordinário, um momento regulatório, tanto para as Big Tech quanto para outros tipos de poder corporativo, que está muito atrasado e que já faz muito tempo que vem chegando. Acho que isso se deve a uma sensação crescente de que as Big Tech não são um fenômeno isolado, mas apenas uma expressão do fenômeno subjacente do poder corporativo cada vez mais concentrado em todos os setores. Então, quando dizemos que queremos a Big Tech domesticada, estamos participando de um movimento que também diz que queremos a Big Agriculture domesticada, o Big Oil, o Big Finance, a Big Logistics e todos esses outros grandes setores integrados e concentrados que prestam serviços cada vez piores, obtêm lucros cada vez maiores, infligem cada vez mais danos e enfrentam cada vez menos consequências.
Também podemos ter esperança no modo como a tecnologia digital é profundamente diferente e genuinamente excepcional em relação a outros tipos de tecnologia, quer dizer, a tecnologia digital é universal. Na verdade, só sabemos construir um tipo de computador. É a máquina de Turing von Neumann completa. Formalmente, esse é um computador que pode executar todos os programas que sabemos elaborar, o que significa que, se existe um computador projetado para te vigiar, também existe um programa que pode ser executado nesse mesmo computador que vai frustrar essa vigilância. Isso é muito diferente de outros tipos de tecnologia, porque esses programas podem ser reproduzidos infinitamente com um clique do mouse e instalados em todo o mundo. Agora, isso significa, por um lado, que as organizações criminosas são capazes de explorar as tecnologias das maneiras mais terríveis. Não existe um computador de hospital que possa operar apenas a máquina de raio-X e não executar também o ransomware. Mas isso significa que o que costumávamos chamar de hacktivismo e o que está sendo cada vez mais chamado de boa política industrial, conforme contemplado em legislações como a Lei Europeia de Mercados Digitais, têm o potencial de fazer pender o equilíbrio em que a infraestrutura dessas grandes empresas e os Estados que as apoiam sejam obrigados a apoiar as pessoas que se opõem a eles.
Então, o que você acha que vai ser necessário para aproveitar ao máximo este momento? Como podemos dar o empurrão que falta para torná-lo um ponto de inflexão adequado?
O ponto de inflexão talvez seja mudar a maneira errada de pensar sobre isso. Há algo em estatística que se chama curva de crescimento em patamares [scalloped growth curve]. Você provavelmente já viu isso: você tem uma curva que sobe, atinge um pico, desce para um nível mais alto do que estava antes e, em seguida, sobe para um novo pico e, em seguida, desce para um nível mais alto do que o anterior. Então, é uma espécie de crescimento por ciclos.
E a maneira de pensar sobre isso em termos de suspeita em relação ao poder corporativo é que os abusos corporativos – que acontecerão inevitavelmente como consequência da concentração de poder – gradualmente construirão sua própria oposição. Por exemplo, no mês passado, 1 milhão de passageiros ficaram presos na semana do Natal pela Southwest Airlines, que foi uma das beneficiárias do socorro de US$ 85 bilhões para as companhias aéreas e que entregou dividendos de US$ 460 milhões para seus acionistas. O secretário de Estado que deveria regular essas empresas, Pete Buttigieg, não fez nada, embora tivesse amplos poderes para intervir. E isso fez que muita gente se tornasse partidária de que algo deve ser feito em relação ao poder corporativo. Agora, essas pessoas têm outras coisas para fazer em suas vidas. Alguns vão desistir, mas alguns deles vão guardar rancor e farão parte desse movimento para domar o poder corporativo. E como essas empresas são tão mal reguladas, esvaziadas e exercem o poder de maneira tão paroquial e venal, elas acabarão criando mais crises e ainda mais pessoas se juntarão ao nosso movimento.
Então, eu não acho que haverá um ponto de inflexão e sim uma espécie de construção lenta e inexorável da vontade popular. E acho que nosso desafio é fazer com que as pessoas dirijam suas críticas para o lugar certo, entendendo que é o poder corporativo desenfreado e os altos funcionários que tornam essa situação possível, e que não se trata de mal específico das tecnologias ou um altamente improvável raio de controle da mente. Ou, e tenho certeza de que isso já está subentendido: o problema não são os imigrantes, não é o George Soros, não são os gays. É o poder corporativo sem controle.
Estou gostando do seu livro, Chokepoint Capitalism [Capitalismo dos pontos de estrangulamento], e acho que muito da nossa conversa se concentrou em nós como consumidores ou ativistas. Não tocamos muito nos trabalhadores. Você conta boas histórias em seu livro sobre como ativistas e trabalhadores confrontaram e reverteram o poder corporativo. Você poderia compartilhar uma das histórias inspiradoras com as quais devemos aprender?
Claro. Na verdade, minha história favorita é a dos motoristas da Uber, que apresentamos como um relato exemplar no livro. Aqui na Califórnia, a Uber estava envolvida em um roubo desenfreado de salários dos seus motoristas, não o roubo normal de salários de classificação incorreta de trabalhadores, mas uma forma à parte de roubo de salários em que eles simplesmente guardavam o dinheiro que deviam. Na Califórnia, os motoristas da Uber tinham que assinar um termo de arbitragem vinculante para dirigir para a Uber, no qual todas as disputas seriam ouvidas por um árbitro caso a caso.
Um árbitro é um falso juiz que trabalha para uma empresa contratada pela companhia que te prejudicou, e que, para a surpresa de ninguém, raramente encontra alguma coisa contra a companhia que paga seus honorários. Mas mesmo que o faça, pouco importa, porque geralmente esse acordo é confidencial e sem precedentes, o que significa que a próxima pessoa não pode usar o mesmo argumento para obter um resultado semelhante. Mais importante ainda é que a renúncia à arbitragem vinculativa interdita a ação coletiva, o que significa que cada motorista da Uber teria que contratar individualmente um advogado para representá-lo, o que nunca seria economicamente sensato ou viável. Tudo isso significava que a Uber poderia seguir roubando essa dinheirama toda.
Diante disso, os motoristas da Uber contrataram um escritório de advocacia inteligente e descobriram como automatizar as reivindicações de arbitragem. E contratar um árbitro, que a Uber tem que pagar como entidade que está impondo a renúncia à arbitragem, custa alguns milhares de dólares. Portanto, se um milhão de pessoas exigir a arbitragem de suas reivindicações, apenas rejeitar essas reivindicações custaria mais do que fazer a coisa certa e pagar. Então, enfrentando centenas de milhões de dólares em taxas de arbitragem, a Uber fez um acordo com os motoristas e deu a eles US$ 150 milhões em dinheiro, o que é incrível.
Isso é muito legal. É um sinal de que de algum modo a mudança é possível. E para continuar, quero perguntar: você acha que é possível remodelar o poder digital, definido em linhas gerais como você o descreveu no início, no interesse público, e usá-lo para enfrentar grandes crises, como o colapso ambiental?
Acho que a tecnologia que responde às necessidades de seus usuários, a tecnologia projetada para maximizar a autodeterminação tecnológica, é crítica para qualquer futuro em que abordamos nossas principais crises. A principal coisa que a tecnologia digital faz, a melhor maneira de entender seu poder transformador, é que ela reduz os custos de transação – os custos que você tem que arcar quando quer fazer coisas com outras pessoas.
Quando eu era criança, por exemplo, se eu quisesse ir ao cinema com os amigos numa sexta-feira à noite, ou tínhamos que planejar com antecedência ou fazíamos esse absurdo que era ligar de telefones públicos para as mães uns dos outros, deixar mensagens e torcer para que de alguma forma a mensagem chegasse até eles. Agora basta enviar uma mensagem de texto para o grupo de chat dizendo: Alguém está a fim de ver um filme? Esse é um exemplo simples e direto de como reduzimos os custos de transação.
A internet torna os custos de transação muito mais baixos. Ela nos permite fazer coisas como construir enciclopédias e sistemas operacionais e outros projetos ambiciosos de maneira fácil e improvisada. A redução dos custos de transação é realmente importante para fomentar a mudança social porque, por definição, os atores poderosos sacaram a questão dos custos de transação. Se você é um ditador ou uma grande corporação, seu trabalho é descobrir como coordenar muitas pessoas para fazer a mesma coisa ao mesmo tempo. É aí que está a fonte do seu poder – coordenar muitas pessoas para agir em conjunto e projetar a sua vontade em todo o mundo.
Portanto, embora esses custos de transação signifiquem que o custo de descobrir quem está em um protesto nunca foi tão baixo para os policiais, o custo de organizar um protesto também nunca foi tão baixo. Passei boa parte da minha juventude andando de bicicleta pelo centro de Toronto colando cartazes em cabines telefônicas, tentando mobilizar as pessoas para manifestações antiproliferação nuclear, manifestações antiapartheid, manifestações pró-aborto e assim por diante. Então, qualquer que seja a diversão que as pessoas possam ter com o click-ativismo, é de uma riqueza que ultrapassa em muito os nossos sonhos mais loucos de apenas algumas décadas atrás.
Portanto, nosso projeto não deve ser o de extinguir a tecnologia, mas descobrir como nos apropriarmos dos meios de computação, como construir um substrato tecnológico que responda às pessoas, que nos permita coordenar nossa vontade, nosso esforço e nossa ética para construir um mundo que queremos – incluindo um com menos carbono, com menos injustiça, mais direitos trabalhistas e assim por diante.
Aqui está um exemplo de como isso pode ser feito para lidar com a crise ambiental. Muitas vezes nos pedem para escolher entre decrescimento e abundância material, então nos dizem que decrescimento significa fazer menos com menos. Mas há um sentido em que mais coordenação nos permitiria fazer significativamente mais com menos. Por exemplo, moro em uma casa suburbana, nos arredores de Los Angeles, e tenho uma furadeira barata porque só preciso fazer furo na parede umas seis vezes por ano. Meus vizinhos também possuem furadeiras lastimáveis pelo mesmo motivo. Mas existem furadeiras de excelente qualidade. E se tivéssemos um mundo em que não estivéssemos preocupados com a vigilância porque nossos Estados fossem transparentes para nós, e não estivéssemos preocupados com o controle coercitivo, então poderíamos ter furadeiras estatisticamente distribuídas por nossos bairros e as próprias furadeiras nos diriam onde elas estão. Esse é um mundo em que você tem uma furadeira melhor, que está sempre disponível, sempre ao alcance da mão, mas em que a conta de material, energia e mão de obra cai consideravelmente em ordem de grandeza. Requer apenas coordenação e transparência no uso da tecnologia.
Fonte da matéria: Estudo especial: a captura da Tecnologia – Outras Palavras – https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/estudo-especial-a-captura-da-tecnologia/
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