Sophie Elmhirst – Visita, na Suíça, às clínicas de reabilitação para super-ricos. Entediados e incapazes de convívio social, eles exigem fausto e cuidado de uma multidão de profissionais. Semana custa R$ 500 mil. Sob imensuráveis contas bancárias, o abismo existencial.
Se o céu estiver claro, pode-se debruçar nas janelas da Paracelsus Recovery, uma luxuosa clínica de reabilitação em Zurique, e deixar o olhar vagar pelo lago até os Alpes ao longe. É o tipo de paisagem, de águas azuis e picos brancos, cuja contemplação promete um rejuvenescimento imediato, uma pureza próxima da santidade. A clínica, por sua vez, oferece tratamentos mais elaborados a um custo entre 95 mil e 120 mil francos suíços (R$ 538 mil a R$ 667 mil) por semana para uma estadia típica de seis a oito semanas.
Eu não era exatamente a típica pessoa esperada na clínica Paracelsus, batizada em homenagem ao médico suíço do século 16 que, ao contrário da opinião corrente em sua época, acreditava que quem sofria de doenças mentais não era um possuído por espíritos malignos e merecia um tratamento humano. Minha mochila estava cheia de velhas manchas de café e meu casaco tinha um buraco na parte de trás, por onde as penas ficavam escapando. A equipe aqui está acostumada com pessoas que não carregam sua própria bagagem e para quem 1 milhão em qualquer moeda é uma soma negligenciável. Os clientes típicos são membros de famílias reais do Oriente Médio, novos bilionários, atores famosos ou estrelas do esporte, e os filhos problemáticos de todas essas figuras, de quem herdam a riqueza e os fardos a ela inerentes.
Mais impressionante do que o luxo material das instalações da Paracelso, com seus altos tetos e corredores de orquídeas brancas, é a quantidade de atenção dispensada assim que eu entrei por suas portas. Eu não estava ali para receber qualquer tratamento, apenas ia ficar hospedada em um dos apartamentos enquanto entrevistava a equipe. Mesmo assim, enfermeiros, médicos, administradores e nutricionistas muito bem-vestidos surgiam de todos os cômodos, sempre com um sorriso sábio nos lábios, desses que a gente costuma encontrar nos rostos de clérigos e psicoterapeutas, ou de qualquer um que acredite ter acesso a uma verdade capaz de aliviar a dor.
Assomando por trás deles estava Jan Gerber, o diretor-executivo, alto e radiante como o prado dos pampas, com um lenço de seda amarrado no pescoço e exalando o tipo de afeto controlado de alguém que construiu um negócio de sucesso cuidando da angústia confidencial dos super-ricos. Seguindo-o, desfolhando um florilégio de boas maneiras, estava Pawel Mowlik, o sócio-gerente: um homem que ganhou milhões em fundos de hedge quando tinha 20 e poucos anos, sucumbiu à dependência em cocaína e álcool por vários anos, internou-se em diversas clínicas de reabilitação e, após três meses de profundo trabalho psicológico na Paracelsus, descobriu que seu propósito na vida era ajudar pessoas como ele.
Mowlik, 39 anos, é o tipo de pessoa que narra sua vida enquanto a vive, um sinal claro de alguém que passou por muita terapia. Sabendo que eu vinha de Londres, ele me disse que morou em vários locais da cidade: Covent Garden, Bayswater, as docas de St. Katharine. Ele gostava de se movimentar, inquieto por natureza. “Hoje acredito que não existe casa”, disse ele. “Casa é um sentimento.”
Para o cliente típico da Paracelsus, o lar é geralmente uma de suas várias mansões, quem sabe até um palácio. Eles vêm a Zurique para uma forma particular de tratamento, conhecida como reabilitação de cliente único, ou “um cliente de cada vez”, pela qual a cidade se tornou mundialmente conhecida entre os ultra-ricos. Assim como a Paracelsus, Zurique abriga a Kusnacht Practice, onde o conceito se originou. Ao contrário de outras casas de reabilitação conhecidas – Meadows no Arizona, Betty Ford na Califórnia, Priory no Reino Unido – nas clínicas de Zurique, os clientes nunca veem ou interagem com qualquer outro cliente. Não há terapia de grupo, nem área comum. Os clientes ficam em sua própria mansão ou apartamento e têm seu próprio motorista, governanta, chef e terapeuta residente, além de sessões individuais diárias com uma equipe de 15 a 20 psiquiatras, médicos, enfermeiros, professores de yoga, massagistas, nutricionistas, hipnoterapeutas e terapeutas de trauma que informam uns aos outros sobre o estado e o progresso do cliente após cada consulta. Embora possa haver três ou quatro clientes hospedados em residências diferentes na clínica, a qualquer momento, seus horários são organizados de modo a assegurar a impressão de que cada um é o único foco da instituição inteira. Além da equipe, ninguém jamais saberá que eles estão lá.
É assim que deve ser, disse-me Gerber. Não é que a dor dos super-ricos seja mais complicada do que a de qualquer outra pessoa. Certamente, eles têm experiências únicas, de acordo com o campo emergente da “psicologia da riqueza”, como os problemas da “riqueza repentina” ou o fardo de uma vasta herança. Mas ansiedade, depressão, dependência e distúrbios alimentares dificilmente são exclusivos desse grupo demográfico. Todo mundo usa drogas e álcool; é que para os ricos, “as drogas são mais caras”, disse a Dr.ª Anna Erat, diretora médica da Paracelsus. (A necessidade de cocaína, por exemplo, que custa milhares de dólares por semana, em vez de dependência em vodca barata.)
Mesmo assim, insistiu Gerber, a reabilitação regular simplesmente não funcionaria. Os clientes geralmente são mundialmente famosos e desejam total discrição. Mas além do desejo de privacidade, a riqueza extrema tem um estranho efeito separador. “Se você colocar um bilionário em um ambiente de grupo, mesmo com pessoas abastadas de classe média, eles não conseguirão se relacionar uns com os outros”, disse Gerber. Essa gente não é como o resto de nós; suas vidas e mentes foram transformadas por suas fortunas.
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Em Zurique, até a luz do sol parece cara. As montanhas e o lago emprestam-lhe um brilho dourado que reflete as joias nas vitrines das lojas de grife na Bahnhoffstrasse e as imaculadas velas brancas dos barcos que singram o lago. O custo de vida da cidade é o mais alto da Suíça e o sexto maior do mundo. Uma “costa dourada” se estende além da cidade, à margem do lago. No final das ruas que levam às águas, há praias onde babás trazem crianças pequenas para brincar e homens de sunga nadam antes de, presumivelmente, irem para casa verificar seus investimentos. Descendo uma das ruas principais, passei pelo Algonquin, um castelo murado, para o qual Tina Turner se mudou ao se aposentar em 2009. Aparentemente, quando ela vai ao supermercado local, ninguém se vira para olhar. Zurique é um bom lugar para os ricos e famosos se esconderem em paz, devido, como disse um morador, à “peculiar falta de ânimo dos suíços”.
A uma curta caminhada da casa de Tina Turner, no bairro à beira do lago de Kusnacht, fica a casa de Carl Jung, uma grande mansão cor creme onde o analista viveu a maior parte de sua vida. No final da década de 1920, Jung tratou um empresário americano alcoólatra, Rowland Hazard III, ao longo de vários meses. Depois que Hazard começou a beber novamente, Jung disse que ele só se recuperaria se tivesse algum tipo de despertar espiritual. Em resposta, Hazard procurou uma irmandade cristã evangélica chamada Oxford Group, parou de beber e depois orientou um velho amigo na lida com o seu alcoolismo. Esse velho amigo, por sua vez, foi o mentor de Bill Wilson, que fundou a espiritualizada Alcoólicos Anônimos em 1935.
Zurique, portanto, tem a cura em sua história. É a origem do maior programa gratuito e interpessoal de tratamento de dependência do mundo e também, no outro extremo da escala, do mais exclusivo. A primeira clínica “um cliente de cada vez” começou aqui, em 2009, por uma enfermeira e seu então marido, um conselheiro de dependentes químicos. O casal, Christine Merzeder e Lowell Monkhouse, decidiu se dedicar a ajudar um amigo alcoólatra. Em vez de encaminhá-lo a uma clínica de reabilitação estabelecida, acharam um apartamento para ele, transformaram seu próprio quarto vago em um consultório e contrataram os serviços de um professor de ioga.
Merzeder achou o tratamento diário com foco em um único cliente mais satisfatório e eficaz do que a abordagem padronizada das instituições públicas, mas demandava trabalho intensivamente. O filho de Merzeder, Jan Gerber, percebeu aí uma oportunidade. Desde que se formou na London School of Economics (LSE), Gerber trabalhou como consultor financeiro para bancos de investimento e abriu várias empresas, incluindo uma clínica de cirurgia estética para homens em Zurique. Ele conhecia os hábitos dos muito ricos, e também os seus problemas. Ele sabia que haveria muitas pessoas dispostas a pagar.
Juntos, eles fundaram a Kusnacht Practice em 2011. No início, o sucesso vinha do boca a boca. De acordo com Moustafa Hammoud, que trabalhou na Kusnacht fazendo a ponte com a clientela do Oriente Médio, um cliente da Arábia Saudita enviou pelo menos três de seus filhos, todos em luta contra a dependência química ou a depressão. Hammoud estimou que cerca de 70% dos clientes iniciais da Kusnacht vieram da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Egito. Famosos em casa, muitos clientes buscaram ajuda no exterior para evitar que a “vergonha” de sua angústia fosse descoberta. Muitos, disse ele, vieram algumas vezes. “Eles se recuperavam, tinham uma recaída, voltavam.” A clínica cresceu rapidamente, contratando mais funcionários e alugando mais mansões para os clientes. Em 2013, Gerber saiu e montou a Paracelsus. Monkhouse, por sua vez, vendeu a Kusnacht para uma empresa de private equity. Hoje ela é administrada por um empresário brasileiro e oferece diversos tratamentos médicos, incluindo “restauração biomolecular”, além de reabilitação. A Paracelsus continua menor – “mais boutique e personalizado”, segundo Gerber.
Desde o início, disse-me Merzeder, os clientes apresentaram desafios que ela nunca havia enfrentado durante sua carreira no sistema público de saúde da Suíça. Frequentemente, eles chegavam com várias prescrições, consequência de um excesso de tratamento com médicos particulares concorrentes que não liam as anotações uns dos outros. Ela se lembra de uma paciente mais jovem, “uma princesa”, que foi atendida pelo melhor professor americano de psiquiatria pediátrica e apareceu “carregada de comprimidos”. Uma abordagem que racionalizasse todos os aspectos do cuidado físico e psicológico seria transformadora, acreditava Merzeder. “Nunca me interessei pelo desenvolvimento de negócios ou pelo resultado financeiro”, acrescentou. “Eu estava apenas interessada em resultados clínicos.” Gerber, sentado ao lado dela, sorriu: “É por isso que formamos uma boa equipe!”.
Gerber conhece seu mercado e sabe que ele está crescendo. De 2019 a 2021, o número global de indivíduos com patrimônio líquido ultraelevado, aqueles com mais de US$ 50 milhões (R$ 260 milhões), cresceu de 174.800 para 264 mil. De acordo com Gerber, as pessoas nessa faixa de riqueza, apesar de estarem financeiramente resguardadas contra inúmeras dificuldades, têm três a cinco vezes mais chances do que a média de sofrer de uma doença mental ou de um problema relacionado a abuso de substâncias. Dado que a Paracelsus aceita apenas 30 a 40 clientes por ano, o mercado é claramente grande o suficiente para manter a clínica ocupada.
O tratamento de saúde mental ultraexclusivo é uma das muitas novas microindústrias que surgiram para atender os super-ricos. O Spears 500, um guia anual de serviços de consultoria, agora assessora especialistas em tudo, desde a aquisição de vinhedos até o gerenciamento de cripto-reputação. A Dr.ª Ronit Lami, uma “psicóloga especializada em patrimônio líquido ultraelevado” com consultórios em Los Angeles e Londres, disse-me que quando ela começou a trabalhar, em 2000, ninguém sabia muito sobre esse público. Agora, seus clientes querem profissionais especializados que entendam as complexidades específicas do planejamento sucessório e da transferência de riqueza geracional. O que desejam é similar a muitos de seus outros desejos: um serviço que seja prestado de forma personalizada e exclusiva, um jato particular em vez de uma companhia aérea comercial.
Alguns ex-funcionários da Kusnacht já exportaram a ideia da reabilitação de cliente único para todo o mundo, abrindo clínicas semelhantes em Mallorca (The Balance), Irlanda (Rosglas) e outra em Zurique (Calda). O primeiro centro de luxo para um cliente único em Londres, o Addcounsel, foi aberto por um empresário chamado Paul Flynn, que vendeu sua empresa de recrutamento e iniciou a clínica em 2016, depois que um amigo que trabalhava na Kusnacht sugeriu a ideia. Flynn me disse que o negócio cresceu 300% no ano passado e espera um crescimento semelhante em 2023. A miséria dos super-ricos é um mercado como qualquer outro, e há uma lacuna. Nos próximos anos, disse ele, “acho que veremos muitas atividades de fusões e aquisições neste setor”.
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É preciso se esforçar muito para não se seduzir pelo luxo. Gerber me mostrou o apartamento onde eu ia ficar na Paracelsus, uma sequência de quartos de cobertura à beira do lago, onde tudo parecia brilhar: mesas de vidro, castiçais de prata, superfícies de mármore. No quarto, os lençóis tinham uma brancura luminosa e nítida, impossível de alcançar quando você lava sua própria roupa. Uma bandeja de minicanelones de ricota e berinjela, feitos na hora, foi servido na mesa de centro, apenas por precaução.
A aspiração é que tudo pareça se produzir sem esforço, toda essa opulência, então todo o trabalho que permite que ela aconteça é mantido invisível. A governanta, Izabela Borowska-Violante, e o chef, Moritz von Hohenzollern, costumam aparecer para trabalhar antes que o cliente acorde. Enquanto eu vagava pelos quartos perfeitos, tentando não tocar em nada, e desejando que minha mochila não estivesse tão suja, eles surgiram dos aposentos de funcionários no apartamento como se estivessem lá esperando em repouso. Gerber me disse que a equipe podia se comportar conforme a preferência do cliente, mais interativa e tagarela ou invisível. De qualquer forma, os funcionários devem ser os “silenciosos e bons espíritos da casa”, quase como uma família, embora não se assemelhe a nenhuma família que eu tenha conhecido. “Quanto a mim, tudo se resume a ficar quieto”, confirmou Von Hohenzollern, a menos que o cliente queira companhia. Apesar dessa política precavida, ele nem sempre conseguia conter o entusiasmo. “Receba as grandes boas-vindas de nossa parte aqui da gastronomia!”, se exaltou ele ao me ver chegar.
A princípio, me meti em confusão, sem entender direito os termos da relação. Agradecia a todos constantemente, ao ponto de me irritar. Por constrangimento, tentei fazer as coisas sozinha, como buscar minha própria água, até que Von Hohenzollern me lembrou que esse era o trabalho dele. Na primeira manhã, ele me perguntou se eu gostava de cogumelos. Oh sim, eu menti educadamente. Mais tarde, ele fez cogumelos para o jantar e eu comi todos. No dia seguinte, durante uma sessão demonstrativa com a nutricionista, ela me perguntou se havia algo que eu não gostava muito de comer. Cogumelos, eu disse. Antes mesmo de eu voltar para o apartamento, a nova informação já havia circulado entre a equipe. Von Hohenzollern ficou mortificado. Por que ele não tinha sido informado antes? Como ele poderia fazer seu trabalho corretamente se não estivesse me servindo o tempo todo exatamente o que eu desejava?
O cliente típico estaria acostumado a tais serviços, é claro. Na verdade, o apartamento da Paracelsus – com sua cozinha e sala de jantar, e uma grande área privada para o cliente – provavelmente devia ser apertado em comparação com suas próprias casas. A clínica queria criar um ambiente seguro, semelhante a um casulo, ideal para a recuperação, explicou Gerber. A Kusnacht Practice, por sua vez, a 10 minutos de carro dali, abriga seus clientes em enormes mansões. Quando me mostraram uma delas, com três andares de banheiros de mármore, uma piscina externa e um amplo terraço na cobertura, notei o retrato de um homem olhando diretamente para fora da moldura. O zelador me disse que eles poderiam removê-lo se o cliente achasse incômodo ser olhado, mesmo por uma pintura.
O componente final do apartamento da Paracelsus, ausente durante minha estada, foi o terapeuta residente: “Uma relação sagrada”, disse Danuta Siemek, que está no cargo há um ano. Uma vez atribuída a um cliente, ela fica com ele durante toda a estadia. Ela vai comer com ele, conversar sempre que ele quiser, cuidar dele se estiver tendo um ataque de pânico às 4 da manhã. É um trabalho intenso e íntimo, uma dinâmica que surpreendeu outros psicoterapeutas com quem conversei, acostumados ao formato mais convencional de sessões semanais estritamente delimitadas de 50 minutos. Para evitar qualquer confusão, os clientes geralmente recebem terapeutas de uma idade diferente e de um sexo não compatível com sua preferência. “A vida como a conhecemos acaba”, disse Siemek, a respeito do trabalho. Eu me perguntei como ela conseguia permanecer sã. “Caminhada forte”, ela respondeu.
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Há um efeito particular em ser o centro das atenções de vários profissionais. Eu mencionei que gostava de nozes. Nozes, suavemente temperadas, chegaram. Se eu esbarrasse em uma toalha, ela era quase imediatamente dobrada de novo para parecer intocada. Durante a avaliação do nutricionista, comecei a me perguntar se meus hábitos alimentares eram de fato tão singularmente fascinantes. Um leve escorregão para o narcisismo parecia inevitável.
Mas é por isso que o cliente paga: a dedicação exclusiva de toda uma equipe. No início da estadia do cliente, a prioridade é a estabilização física. A equipe médica realiza exames de sangue, monitora a pressão arterial e a frequência cardíaca e, em seguida, produz um relatório de linha de base, mostrando todas as deficiências possíveis. “Muitos de nossos clientes são bastante orientados por dados”, disse Erat, a diretora médica. Às vezes, eles ficam um pouco obsessivos em relação aos relatórios, com seus “selfs” reproduzidos em forma de planilha, como se seus problemas pudessem ser resolvidos corrigindo um único ponto perdido entre os dados. Mas, como disse Erat, em termos de recuperação “é apenas um método entre muitos”.
A recuperação psicológica, seja você extremamente rico ou não, é um trabalho árduo. O principal psiquiatra da Paracelsus, Thilo Beck, é um dos mais respeitados em Zurique. Um homem de fala mansa com cabeça raspada, enormes tênis brancos e um ar frio e inabalável, Beck divide seu tempo entre a Paracelsus e a Arud, uma das maiores clínicas ambulatoriais para o tratamento da dependência química sem fins lucrativos da Suíça. Na Arud, ele trata pessoas do outro extremo do espectro socioeconômico, dependentes químicos que vivem na pobreza ou à beira de não ter onde morar. Ambos os grupos, observa Beck, são “estigmatizados e marginalizados de certa forma, e considerados não muito normais”. Ele frequentemente encontra em ambos uma negligência emocional. Por um lado, o paciente pode ter sido criado por um pai que trabalha em vários empregos para sobreviver. No outro, o cliente muitas vezes foi “criado por babás”. Frequentemente, identificava um sentimento, segundo ele, de que ninguém realmente se importava.
Beck se formou no mesmo hospital psiquiátrico em Zurique onde Jung trabalhou. No início de sua carreira, na década de 1990, o tratamento da dependência química se concentrava na abstinência, que ainda é o método central do programa de 12 passos do AA. Ele diz não ter tempo para isso. “É paternalista”, disse. “Vem da ideia de que ‘Nós sabemos o que é certo e temos que pressionar esses caras para entender o que é bom para eles’.” Beck prefere uma abordagem mais pragmática, concordando com uma “hipótese de trabalho” com seus clientes sobre qual é o problema e como eles podem tratá-lo. Ele então implementa uma série de terapias, incluindo o que ele descreve como tratamentos de “terceira onda”, como terapia de aceitação e compromisso, cujo objetivo não é combater os sintomas, mas “recebê-los como convidados em sua vida”. Essa abordagem, disse ele, frequentemente ajudava os clientes a transformar o que antes consideravam um problema em uma oportunidade de mudar o curso de suas vidas. Os clientes tendiam a responder rapidamente, acrescentou, por causa da intensidade do processo. Em um ambulatório, ele pode ver um paciente uma vez por semana. Na Paracelsus, ele atende um cliente todos os dias por 90 minutos e pode adaptar seus métodos rapidamente. “Vemos mudanças acontecendo em um mês ou dois que levariam um ano em outro formato de atendimento.”
Os clientes dividem-se basicamente em dois grupos: os que nasceram ricos e os que adquiriram riqueza depois de adultos. Os primeiros muitas vezes se sentem sem direção, oprimidos pelo sucesso de seus pais e envergonhados pela facilidade de suas vidas. “Os self-made guys são totalmente diferentes”, disse Beck. “Não quer dizer que seja mais fácil.” Muitas vezes, sua ética de trabalho era autodestrutiva e os levava a negligenciar a família, os amigos e a própria saúde. Mas também havia semelhanças entre os dois grupos. Ambos pareciam sentir que algo estava faltando, uma “questão de valor” mais profunda, disse Beck, que se resumia a uma pergunta: “O que eu vim fazer neste mundo?” Há uma ausência de propósito, algo faltante ou perdido; um vasto vazio que jaz sob o dinheiro.
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Na minha segunda noite em Zurique, Pawel Mowlik me contou sobre o momento em que sentiu o vazio. No verão de 2014, ele acordou na suíte presidencial de um hotel em Mônaco cercado por corpos nus de pessoas que não conhecia. Sua vida não tinha sentido, ele então percebeu.
Estávamos em um de seus restaurantes favoritos em Zurique, um entre as centenas que ele frequentou em um único ano, quando gastou mais de R$ 6 milhões em refeições requintadas. Nascido em uma pequena cidade da Polônia, Mowlik tinha uma mãe disciplinadora e um pai infeliz. Depois que seus pais se divorciaram, ele começou a experimentar anfetaminas. Em sua lembrança, certa vez ele ficou acordado por três dias, conversando com qualquer um que se aproximasse e quisesse ouvir. Largou a escola aos 15 anos e trabalhou como carregador de malas no Hotel Atlantic Kempinski em Hamburgo, onde seu charme se tornou tão conhecido que foi destaque em uma revista local. (Ele mantém uma fotografia do artigo em seu celular.) Enquanto estudava na escola de administração de hotéis em Zurique, ele conheceu um gerente de fundos de hedge que lhe ofereceu um emprego de relacionamento com investidores no escritório suíço. Aos 24 anos, ele ganhou milhões, mudou-se de Nova York para Londres (“meu auge”) e festejou com força, como alguém que veio do nada e ganhou tudo. Ele usava ternos Louis Vuitton e camisas Tom Ford e se tornou, como ele mesmo disse, “um cara tipo James Bond”. A cocaína, a essa altura, para ele não era mais uma droga, mas uma necessidade funcional para tocar a vida.
Quando Mowlik percebeu que estava perto da autodestruição, ele buscou tratamento de reabilitação, primeiro na Flórida, depois seguidamente, várias vezes, até aterrissar na Paracelsus. Uma vez recuperado, ele se juntou à equipe de Gerber. A paixão de Mowlik era fazer amizade com os clientes, e muitas vezes viajava com eles para Provença, Mônaco, Milão. Ele contava sua história e eles compartilhavam a deles. “Às vezes é engraçado, às vezes é triste”, disse ele, “porque passei por muitas coisas tristes”. Ele teve overdose, mais de uma vez. Sentiu que todas as suas amizades haviam sido compradas. “Toda a minha vida me senti meio solitário, embora conheça tantas pessoas”, disse-me Mowlik. “Há uma diferença entre estar sozinho e a solidão. Eu me sentia sozinho, sem estar só. E ainda me sinto.” Ele parecia bastante tranquilo em relação a esse fato, como se fosse simplesmente o preço de uma vida como a dele. “Não é mais algo que me deixe triste, em comparação com a época em que eu precisava de drogas e álcool para compensar. Eu apenas aceito.”
Ela aparece reiteradamente: a solidão. Gerber esboçou um perfil típico de um filho de bilionários, criado por uma babá cara, enviado para um colégio interno de elite, e do qual se espera que ele saia para ingressar na empresa da família ou pelo menos se conformar a um certo tipo de vida. Muitas vezes, não lhes é permitido casar-se com quem queiram, pois os pais “vão querer se certificar de que não tragam ninguém para casa, por questões de segurança”.
Surpreendeu-me que as condições da clínica parecessem replicar a solidão que havia definido a vida de muitos clientes: separados da comunidade, isolados a um alto custo e afligidos por um injustificado sentimento de serem pessoas muito especiais. Gerber sempre me dizia que era importante para a recuperação do cliente que o ambiente fosse familiar e no padrão ao qual estavam acostumados. Mas, como me disse um ex-terapeuta residente em uma das clínicas suíças: “É uma bênção e uma maldição. Essencialmente, estamos alimentando essa dinâmica de que você é a pessoa mais importante da sala.”
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Sinais preocupantes começaram a surgir. No segundo dia no apartamento, reduzi radicalmente minha incansável gratidão e me acostumei a ser escoltada por toda parte, tanto que, na única vez em que tive que me virar sozinha, fiquei trancada do lado de fora e tive que ligar para uma enfermeira me deixar entrar, indefesa como uma criança.
O cenário parecia alimentar tal irresponsabilidade pessoal. Frequentemente, disse-me Hammoud, os clientes não estão acostumados a acordar cedo. “Às vezes você não tem permissão para acordá-los”, disse ele. “Eles te olham de cima a baixo e perguntam quem é você para me acordar?” Um cara era verbalmente abusivo com todos, contou Von Hohenzollern. Jogava o prato de comida no chão. “Nós atendemos a cada uma de suas necessidades e desejos”, disse o ex-terapeuta residente. “Eles não têm a experiência de cair na realidade.” Alguns nunca ouviram um “não” em suas vidas, disse Gerber. Mas ainda são pessoas com muita dor, ele enfatizou, possivelmente percebendo as ondas de julgamento que se evidenciavam em meu rosto.
Danuta Siemek, a terapeuta residente, me disse que o princípio de seu relacionamento com um cliente era tratá-lo com “consideração positiva incondicional”. Ela os aceita sem julgamento. Isso não quer dizer que um cliente nunca seja desafiado, mas “quando os desafiamos demais”, explicou Gerber, “podemos criar uma situação de perde-perde. Eles fazem as malas e vão embora.” Não é incomum que o piloto do jato particular de um cliente fique instalado em um hotel próximo de Zurique para que ele possa sair quando quiser. Naturalmente, é melhor para o balanço da clínica se o cliente ficar.
Não que a reabilitação termine quando eles saem. Após o período na Suíça, o cliente voltará para casa, geralmente com o terapeuta residente a reboque, a um custo contínuo aproximado de R$ 12.500 por dia. O programa de pós-tratamento, de acordo com Paul Flynn em Londres, é a chave para o modelo financeiro, sendo uma fonte de receita recorrente, ao invés da taxa única de reabilitação. Recentemente, contou Gerber, um cliente levou um terapeuta de volta a Nova York, hospedou-o em um hotel por uma semana e não o viu nem uma única vez: ele simplesmente gostava de saber que ele estava lá. “Temos uma terapeuta na faixa dos 70 anos”, acrescentou, “que praticamente se mudou para a Arábia Saudita”. Uma configuração, ao que parecia, um tanto em desacordo com a ênfase típica da psicoterapia na criação de um relacionamento não dependente no qual o cliente adquire a autoconfiança.
Na maioria dos casos, no entanto, o terapeuta acabará saindo. A clínica mantém contato, mas no final das contas, como uma criança transitando para a idade adulta, o cliente deve aprender a se virar sozinho, com seus próprios motoristas, chefs, camareiras, terapeutas e psiquiatras.
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Mais de uma vez, durante a visita às luxuosas clínicas de reabilitação de Zurique, ouvi dizer que o momento transformador da experiência de um cliente, seu despertar espiritual, era uma ida ao supermercado. Em uma versão, um membro de uma família real do Oriente Médio foi filmado por seus filhos fazendo fila no caixa, exultantes com a experiência de ter colocado coisas em sua cesta e depois pago por elas. Ele nunca tinha feito nada parecido antes. Em outro, um jovem cliente parado no corredor de iogurtes ficou completamente impressionado com a oferta de iogurtes, porque ele nunca antes tinha tido que ficar em um corredor de iogurtes e escolher.
Eu me perguntei se, realmente, os clientes precisavam de uma equipe inteira de médicos para viver uma epifania no supermercado. E, no entanto, da maneira como a riqueza extrema parece transformar as pessoas em uma mistura problemática de solitários auto-isolados e crianças indulgentes, talvez eles precisem. (Como disse o ex-terapeuta residente: “O Lótus Branco realmente retrata com precisão muitos dos problemas que vejo.”)
Thilo Beck descreveu os “pequenos passos” que costumava dar com os clientes, encorajando-os a “encontrar novos amigos ou um grupo de amigos ou outros hobbies”. É muito dinheiro gasto, no entanto, para receber a recomendação de participar de uma aula de desenho vivo. Os médicos, principalmente aqueles que trabalham com clientes de renda drasticamente baixa, não desconheciam a disparidade no atendimento. “Eu adoraria”, disse Beck, “poder oferecer isso a todos”. (Embora tal movimento pudesse desmantelar a alegação de exclusividade da clínica.)
“Como economista experiente, sei que esta não é uma opção”, disse Gerber, que argumentou que o trabalho deles produz um efeito cascata. Ajude o cara no topo de uma grande empresa, ou o jovem de 20 e poucos anos com milhões que nunca ganhou na conta do banco, e seus “selfs” transformados podem escolher ajudar seus funcionários, sua sociedade, o mundo. Como frequentemente acontece com essa retórica da cascata, ela parece expressar mais uma esperança do que uma realidade. Se a riqueza é uma parte da própria doença, não pude deixar de pensar que a tributação agressiva talvez ofereça um tipo diferente de cura.
Para Mowlik, que deixou a Paracelsus logo após minha visita, sua experiência de co-dirigir uma clínica de reabilitação se resumia a algumas verdades simples. “Acredito honestamente que até a pessoa mais rica do mundo está procurando se conectar com as pessoas”, disse-me. Quanto ao sucesso do tratamento, dependia inteiramente da determinação do próprio cliente. “Você tem que estar disposto a mudar. Nenhum Bentley ou mansão fará a diferença.” Ele passou a pensar que a abundância de luxo – “toda essa merda, desculpe pelo meu francês” – era simplesmente uma distração. Estas clínicas eram bolhas, insustentáveis e frágeis, “é por isso que muitos não encontram as respostas e acabam voltando para seus velhos estilos de vida tóxicos”. Como sua próxima iniciativa, ele estava decidido a criar uma fundação de saúde mental sem fins lucrativos. Olhando para trás, Mowlik sentiu que o período mais autêntico de sua vida até agora foi quando trabalhou como carregador de malas em Hamburgo. Propósito, serviço, conexão humana: todas as lições de vida estavam lá.
No final da segunda noite, me vi vagando sozinha pelo apartamento, à deriva. Depois de dois dias tendo todas as necessidades antecipadas e todos os aspectos práticos resolvidos, eu não tinha ideia do que fazer. Na prática, era um luxo, eu sabia, não ter que cozinhar, limpar ou administrar as mundanidades da logística, mas também tinha um efeito de esvaziamento distinto. Tudo que eu tinha para pensar era em mim mesma, uma condição terrível para se estar.
Na manhã seguinte, me despedi de Von Hohenzollern, que me deu alguns chocolates artesanais para levar para casa. Ele queria me mostrar onde comprar o almoço, como chegar ao aeroporto, o melhor lugar para comer pão em Zurique. Não se preocupe, eu disse, vou dar um jeito. Eu estava desesperada para descobrir. Peguei meu casaco xexelento e corri para fora do prédio como se fugisse de um incêndio.
Fonte da matéria: Onde os bilionários buscam consolo – Outras Palavras – https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/e-onde-bilionarios-buscam-consolo/?utm_source=sendinblue&utm_campaign=228%20-%20Ningum%20solta%20a%20mo%20de%20ningum&utm_medium=email
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