Carlos Bocuhy – Extração de hidrocarbonetos das rochas na reserva de Vaca Muerta, na Argentina, se dará por meio do fracking, tecnologia banida de países onde seus impactos foram estudados e comprovados.
Fomos surpreendidos pelo anúncio do presidente Lula, em recente visita à Argentina, sobre a intenção de o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) financiar parte do gasoduto argentino Nestor Kischner. Nesse gasoduto, a extração de gás se dará pela condenável técnica de fracking, ou fragmentação hidráulica.
A polêmica sobre o financiamento brasileiro vem desde o ano passado. A secretária de Energia da Argentina, Flavia Royón, anunciou em 12 de dezembro de 2022 que seu país já contava com US$ 689 milhões do BNDES para concluir o segundo trecho do gasoduto. O BNDES, em 14 de dezembro de 2022, afirmou em nota: “O governo argentino, por meio de sua Embaixada em Brasília, e empresas brasileiras entraram em contato com o BNDES e com o Ministério da Economia em consulta sobre eventual financiamento à exportação de bens brasileiros. Não há pedido formal de financiamento protocolado no BNDES”.
A extração de hidrocarbonetos das rochas na reserva de Vaca Muerta, na Argentina, formação geológica rica em gás e óleo de xisto, se dará por meio de fraturação hidráulica. Jatos de grandes quantidades de água e areia, com uso de mais de 600 substâncias químicas poluentes, irão para as águas residuais e subterrâneas. Há notícias sobre o aumento de abalos sísmicos na região, que vêm sendo atribuídos à prática do fracking.
Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que essa tecnologia foi banida de países onde seus impactos foram estudados e comprovados. Recentemente os Estados Unidos, mesmo dentro de sua obsessão estratégica com relação à suficiência energética, acabou por proibir a prática do fracking. No Brasil a tecnologia está proibida em vários municípios e estados.
Em segundo lugar, estamos falando da continuidade de extração e uso de combustíveis fósseis, na manutenção de processos históricos que estão lançando a humanidade “em direção ao abismo, enquanto pisamos fundo no acelerador”, conforme afirmou Antonio Guterrez, secretário geral das Nações Unidas. O apelo de Guterrez ocorreu em função dos prognósticos do aquecimento global, em cenário inesperado e fora de controle, conforme atestam os últimos estudos do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC).
Para completar esse quadro, há conflito territorial e impactos para a comunidade mapuche, que no final do século XIX quase foi exterminada pelas ações genocidas do general Julio Argentino Rocca.
O Brasil e a Argentina assinaram a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. A convenção afirma que povos indígenas deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente. O artigo 7º, parágrafo 4, afirma: “Os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos interessados para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam”.
Mas os mapuche de Neuquén, na Patagônia, que abriga a reserva de gás de xisto de Vaca Muerta, não foram consultados. Jorge Nahuel, líder da Confederação Mapuche, afirma que o fracking é uma atividade ilegal: “Nossos territórios estão em um lago de combustível. O resultado é poluição e morte. Os animais nascem com malformações”.
A perspectiva de genocídio que se instala sobre a reserva de Vaca Muerta não virá sozinha. Devemos considerar a complexidade de efeitos decorrentes da não observância de outros acordos internacionais. Onde quer que se vá, dentro dos escritórios governamentais, lá se encontram estampados os Objetivos do Desenvolvimento Sustentado (ODS), assumidos pelo Brasil e pela Argentina diante da ONU, em 2015.
Os ODS não são tema novo. Sucedem a Agenda 21 e Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, na mesma linha, que visa libertar a humanidade da pobreza e proteger ambientalmente o planeta. Falar de fracking, sua poluição, impactos aos povos originários e ODS representa identificar desconformidades e inadequações em aspectos ambientais, sociais, econômicos, jurídicos e científicos.
A atual situação de fracking em Vaca Muerta fere ao menos sete dos dezessete objetivos ODS: o 6, gestão sustentável da água, inclui a eliminação da poluição por produtos químicos perigosos; o 7, compromissos com energia e sua transformação para matrizes limpas; o 10, reduzir desigualdade protegendo as pessoas em situação de vulnerabilidade; o 11, tornar assentamentos humanos seguros, resilientes e sustentáveis, incluindo a prevenção dos desastres relacionados à água e com o foco em proteger os pobres; o 12, padrões de produção e consumo, visando reduzir a liberação de poluentes para o ar, a água e o solo, minimizando os possíveis impactos adversos para os pobres e as comunidades afetadas; o 16, promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, garantindo a igualdade de acesso à justiça para todos, tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis; e, finalmente, o 17, que busca a parceria global para o desenvolvimento sustentável, a difusão de tecnologias corretas, o aumento da coerência das políticas para o desenvolvimento sustentável, garantindo o acesso à justiça para todos.
A situação é grave. Será preciso questionar fortemente os governos do Brasil e da Argentina, além de empresas e agentes financeiros envolvidos. Por que os compromissos globais dos ODS e a Convenção da OIT, que deveriam orientar políticas públicas, estão sendo completamente desconsideradas no caso do fracking de Vaca Muerta?
A situação levou mais de uma centena de especialistas da área ambiental, ONGs e juristas, por iniciativa do Observatório da Governança Ambiental do Brasil, a enviar documento alertando BNDES, Ministério de Relações Exteriores, Ministério do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas.
Espera-se coerência de parte do governo brasileiro. O recurso dos cofres públicos do Brasil, em valor aproximado de R$ 3,6 bilhões, poderia ser aplicado, com as devidas garantias, em inúmeras iniciativas transformadoras e saudáveis voltadas à sustentabilidade.
É incompreensível a falta de critérios que alimenta a atual proposta que se caracteriza como pouco civilizada, fóssil e poluidora para o meio ambiente e em desrespeito aos povos originários.
Fonte da matéria: BNDES e a armadilha fóssil de Vaca Muerta – https://diplomatique.org.br/bndes-e-a-armadilha-fossil-de-vaca-muerta/
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