Denise De Sordi – Sair do Mapa da Fome com as Cozinhas Solidárias do MTST deve ser a política.
O retorno do Brasil ao Mapa da Fome a partir de fins de 2020 é um retrocesso e uma escolha política que não podem ser naturalizados. A fome e a pobreza generalizada, como argumentou Josué de Castro em seu livro “Geografia da Fome”, decorre da organização da sociedade, nas palavras dele: dos “sistemas econômicos e sociais”. O argumento do autor, escrito em 1946, segue sendo uma verdade e uma realidade no Brasil de 2022.
Afirmar que o retorno do país ao Mapa da Fome é uma escolha deliberada do governo de Jair Bolsonaro (PL) não é pura retórica. Quando analisamos as políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), tal como indicado no documento da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil – Um relato multidimensional”, dentre os fatores que garantem a manutenção da SAN em um país estão a estabilidade política, o atendimento ao custo das necessidades básicas, os empregos formais e a existência de uma rede socioassistencial.
Em 2014, quando menos de 5% da população se encontrava nesta condição e o país foi retirado do Mapa da Fome, políticas e programas sociais compunham uma gama de ações definidas por uma rede de proteção socioassistencial que permitiram este feito incomum na história brasileira. Políticas de transferência de dinheiro, a exemplo do extinto Programa Bolsa Família (PBF), valorização do salário mínimo, Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e geração de empregos formais estiveram dentre as políticas e programas sociais que permitiram minorar a pobreza e eliminar o cenário de fome. Todas desmanteladas, destruídas e apagadas sob o governo de Jair Bolsonaro, que sucateou os instrumentos de gestão social contidos nos Centros de Referência e Assistência Social (CRAS) e no Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
Soma-se a este apagão generalizado de ações que permitem o acesso aos Direitos Sociais o efeito cascata derivado das reformas macroeconômicas levadas a cabo durante o governo de Michel Temer (MDB) e aprofundadas por Bolsonaro, que tiveram por objetivo “enxugar o custo social”.
O que o governo nomeou de “custo social”, referindo-se a medidas econômicas e à intensificação da exploração e expropriação dos trabalhadores, na prática, significou mais informalidade, ausência de direitos, a finalização da rede de proteção social, benefícios sociais insuficientes.
Todas políticas sociais que traduziam décadas de lutas e conquistas e que foram tornadas inoperantes, levando mais de 33 milhões de brasileiros para a situação de fome, de acordo com os números divulgados pelo “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), em 2022.
O documento da FAO que anunciou a saída do país do Mapa da Fome em 2014 também nos lembra que a política de SAN é uma política. Ou seja, não é um conceito técnico de gestão do social tão somente, é um conceito político e que só pode ser construído com intensa participação social. Portanto, reencontrar o caminho para que seja possível sair novamente do Mapa da Fome demandará reconstruir os espaços de manifestações e reivindicações populares, a gestão democrática dos Direitos Sociais e a participação social em suas mais variadas instâncias e dimensões. Recompor espaços de participação passa por pautar novamente possibilidades que podem construir um horizonte social mais democrático e socialmente mais justo. Para tanto, a capilaridade e a potencialidade histórica dos movimentos sociais brasileiros são uma chave.
Desde 2016, no contexto do processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT), vimos os movimentos sociais, sob intensa pressão e limites, adotarem uma postura tática de recuo em suas pautas transformadoras, para que pudessem defender e garantir o que já era tido como conquista. Neste período, a manutenção de condições mínimas de vida foi articulação central e a “fome” retornou ao centro das temáticas das mobilizações populares, fazendo emergir ações e iniciativas diferentes daquelas ocorridas nos anos das décadas de 1990 e de 2000, quando ações filantrópicas mobilizaram a sociedade civil e quando políticas e programas sociais foram conquistados.
De um cenário que poderia indicar algum tipo de desmobilização conjuntural ou arrefecimento, vimos emergir uma nova gramática de lutas que empunha ossos de boi e panelas vazias para reivindicar benefícios sociais. A linguagem também tem deixado de se restringir à denúncia da fome, mas tem feito moeda corrente das expressões Segurança e Soberania Alimentar, indicando a articulação urgente e necessária entre camponeses e trabalhadores urbanos como forma para as políticas públicas e sociais, caso se pretenda que estas sejam fortes e sustentáveis.
Se entre os anos 70 e 80 a experiência de cozinhas comunitárias nas periferias se traduziu, em fins dos anos de 1990, em elemento central de organização coletiva no interior das ocupações urbanas, a partir de 2021, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) inaugurou o projeto das Cozinhas Solidárias como engenharia de urgência no contexto do apagão da área social. Criado a partir de experiências prévias do movimento social, o projeto das Cozinhas Solidárias atende parcela da população que expressa o que significa na prática o número de 33 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave; passando fome. São trabalhadores duramente atingidos pelas políticas de reformas do governo Jair Bolsonaro que aprofundaram o ciclo aberto em 2016.
Idosos, chefes de família, crianças, trabalhadores informais, desempregados, jovens LGBTQIA+ compõe o público heterogêneo que todos os dias se dirige a uma das trinta e uma cozinhas abertas pelo MTST em onze estados e no Distrito Federal. As Cozinhas Solidárias articulam o trabalho camponês com as pautas dos trabalhadores urbanos. Os alimentos produzidos sem veneno e preparados nas Cozinhas promovem uma extensa rede que demonstra ter o potencial de combater a pobreza de ponta a ponta, porque fixa as famílias no campo, permite a transição agroecológica e reorganiza as relações sociais conectadas à Segurança Alimentar, promovendo a Soberania Alimentar como política estruturante que garante o acesso a alimentos saudáveis e regionais, alimentando, empregando e garantindo renda.
As Cozinhas Solidárias ressignificam este espaço central para a vida, se tornam lugares de encontro, luta, sobrevivência e acolhimento. Representam parte do caminho a ser construído para a saída do Mapa da Fome, pois reúnem em seu projeto, além da entrega de alimentos sem veneno em refeições prontas e gratuitas – em cifras de mais de mil toneladas em dezembro de 2022 -, espaços de mobilização social, de aprendizado sobre Direitos e de reestabelecimento de laços comunitários, na contramão da gestão técnica e protocolar do social em geral ofertada pelo Estado.
Tornam-se, por meio de projetos de extensão e parcerias com as Universidades, centros de treinamento para profissionais em formação e espaços de pesquisa científica. Possibilitam ainda espaços para o encontro entre diversos movimentos sociais, comunitários e da sociedade civil. Mais do que a distribuição de alimentos saudáveis gratuitamente, as Cozinhas Solidárias são um modelo de mobilização social que coloca em prática o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional: um conceito político, que só pode ser construído com intensa participação social.
CASTRO, Josué de. Geografia da fome. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
FAO. O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil – Um relato multidimensional. Brasília: FAO, 2014.
MTST. Cozinhas Solidárias. 2022. Disponível em: < https://www.cozinhasolidaria.com/#inicio>. Acesso em: 8 dez. 2022.
PENSSAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil – 2022. Rede Penssan. 2022.
Fonte da matéria: A fome é uma escolha política | Fundação Lauro Campos e Marielle Franco – https://flcmf.org.br/a-fome-e-uma-escolha-politica/
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