Manolo – Precisamos avançar muito mais na análise da realidade, “de dentro e de perto” inclusive, até chegarmos a uma crítica do fenômeno dos influenciadores digitais adequada ao que se vê na prática.
Em tempos de precarização do trabalho, alastra-se como uma praga a profissão de influenciador digital. A entrada neste mercado é simples: bastam um celular, acesso à internet, conta em certas plataformas digitais, e ter o que dizer. (Minto: dispensa-se amiúde o último item.) Com o fenômeno da viralização, típico da web 2.0, às poucas barreiras à entrada soma-se uma estranha meritocracia aleatória, aleatoriedade aliás justificadora da insistência dos nano, pico, femto, atto, zepto, iocto, ronto e quectoinfluenciadores em produzir mais e mais vídeos, na esperança de hitar em vez de flopar, de estar no hype. Esperança vã, aliás, que comungam com outros atrás de dinheiro fácil na internet, como traders, rifeiros, apostadores, vendedores de cursos ou mesmo quem está novo no 7 fazendo a primeira lara para virar saldo de cc gg fuzil (entendedores entenderão).
A consultoria internacional Influencity Marketing Hub estima que, no mundo, o setor da “influência digital” fechará o ano de 2022 com movimentação financeira global de US$ 16,4 bilhões; no Brasil, a mesma consultoria estima haver cerca de 9 milhões de influenciadores, dos quais 62,2% (aproximadamente 5,6 milhões) são mulheres e 37,8% (aproximadamente 3,4 milhões) são homens. Bia Granja, da consultoria Youpix, estima que, desses cerca de 9 milhões, somente 36% (aproximadamente 3,24 milhões) conseguem viver exclusivamente da “influência”; ainda segundo a consultora, neste conjunto mais restrito, 75% (aproximadamente 2,43 milhões) consegue renda mensal entre R$ 2 mil a R$ 5 mil.
Neste contexto, em especial quando tais estimativas são sabidamente subdimensionadas e quando a produção audiovisual tornou-se praticamente forma básica de socialização entre adolescentes e jovens, cabe à esquerda anticapitalista debruçar-se sobre o fenômeno para intervir politicamente sobre mais este campo onde se opera a exploração econômica.
Numa tentativa de contribuir com este esforço, o Passa Palavra publicou, em 04 de dezembro de 2022, o artigo Economia política dos influenciadores digitais, onde seu autor, Fagner Enrique, apresenta dois argumentos principais, estendidos em comentários:
1) O influenciador digital está inserido num putting-out system invertido, onde concebe e executa performances sozinho ou com a ajuda de outras pessoas; é coinvestidor de um negócio junto com as plataformas digitais onde publicam seu material, porque ocultam o trabalho de outras pessoas necessário à sua performance e recebem, pela via da monetização, parte da mais-valia extraída no processo. Deste modo, todo influenciador é um capitalista em potencial, porque a economia da influência digital cria-lhe tal oportunidade; mesmo quando todo o trabalho é executado pessoal e isoladamente pelo próprio influenciador, mesmo nesta situação aliás comum o influenciador deixaria de ser coinvestidor, porque mesmo em tal situação não é explorado pela plataforma digital.
2) Interlocutores de esquerda do autor consideram influenciadores como trabalhadores, exclusivamente; como o autor considera os influenciadores como “coinvestidores”, e afirma que não são explorados pelas plataformas digitais mesmo quando fazem todo seu trabalho sozinhos, imputa a seus interlocutores a incapacidade de enxergar e definir com clareza a classe trabalhadora, negando-se assim a si mesmos enquanto esquerda e condenando-se à inexistência prática.
Discordo, integralmente e sem exceções, de toda a linha argumentativa do artigo. Na minha leitura, em suma, o artigo parte do erro de seus interlocutores iniciais — de que os influenciadores são exclusivamente trabalhadores, independentemente do processo de produção de seu conteúdo audiovisual — para o erro oposto, de que todo influenciador é capitalista, em potencial quando não o é de fato.
O artigo me suscitou várias questões, que apresentei de imediato na forma de comentário. Foi pedido ao Passa Palavra que convertesse o comentário em artigo, para maior difusão. Ora, o autor do comentário sou eu, não o Passa Palavra, que não tem ingerência alguma sobre transformá-lo ou não em artigo. Cabe aos comentaristas do site pedi-lo, se assim o quiserem — e eu quero. Eis, portanto, o comentário, reformulado como artigo, para que o Passa Palavra decida se o publica ou se, para evitar repetições, opta por ficar somente com o comentário, porque o grosso da argumentação já está lá.
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O artigo, dizia, suscitou-me várias questões, todas relativas aos pontos centrais de sua argumentação.
Primeiro, o tal “putting-out system invertido”.
O putting-out system importa para a história do desenvolvimento capitalista primariamente enquanto momento do processo de centralização de capital, dos meios de produção e do direcionamento/controle do processo de trabalho nas mãos dos capitalistas. Na economia política da influência digital, por contraste, a centralização de capital já se encontra realizada em proporções muito mais díspares que no putting-out system; a centralização dos meios de produção, idem; e não há direcionamento/controle do processo de produção por parte dos capitalistas envolvidos, porque toda produção de conteúdo digital lhes interessa. São momentos históricos diferentes, onde cada regime de trabalho cumpre “tarefas” diferentes no desenvolvimento do capital. A simples semelhança aparente, mesmo “invertida”, não justifica igualar um regime ao outro.
No putting-out system, os artesãos conseguiriam usar as mesmas ferramentas para produzir independentemente do direcionamento dado pelos capitalistas, e tinham um lugar onde vender tais produtos independentemente do monopsônio/oligopsônio que os capitalistas lhes pretendiam impor. Na economia política da influência digital, por contraste, pode-se até produzir algo, mas a transformação do produto em “mercadoria” depende, sem exceção, da infraestrutura de telecomunicações e de informática fornecida por capitalistas: no campo audiovisual, por exemplo, a alternativa a divulgar vídeos fora da internet é gravar em mídias físicas (DVD, pendrives, cartões de memória, etc.) e providenciar sua distribuição — como qualquer um pode imaginar, isso é possível, mas impraticável hoje, e mesmo inviável para a transformação de vídeos em mercadoria.
Segundo, o “coinvestimento”.
Quando se afirma no artigo que os influenciadores “costumam ser donos de outros meios de produção utilizados: um celular, por exemplo”, abstrai-se tal “coinvestimento” da tendência de outsourcing dos meios de produção, em especial daquela conhecida como bring your own device (“traga seu próprio aparelho”, também referenciada pela sigla BYOD), que tem se tornado cada vez mais influente no setor de serviços. Em suma: em vez de fornecer um celular ou um laptop a cada trabalhador, ou de comprar computadores para deixar na sede, empresas têm recorrido cada vez mais a usar os equipamentos dos próprios trabalhadores, sujeitando-os a regras com variados graus de rigidez quanto ao software que se permite usar nos aparelhos, ao acesso às pastas onde ficam os arquivos de trabalho, etc. A diferença: no regime BYOD as regras quanto ao uso do aparelho para o trabalho na empresa são centralizadas, na produção de conteúdo digital não existem diretrizes ou supervisão alheias ao próprio influenciador. Meio de produção, neste contexto, pode incluir certas ferramentas de propriedade jurídica do trabalhador, mas que são postas a funcionar de acordo com o controle do processo de trabalho exercido pela empresa.
Terceiro, a comparação, a meu ver equivocada, entre influenciadores e trabalhadores do transporte e logística submetidos à exploração por meio de aplicativos. Entregadores e úberes, em resumo.
A comparação dos influenciadores digitais com o úber no que diz respeito ao status é um despautério, porque não é isto o que o úber produz. Por contraste, o reconhecimento público é um dos resultados esperados da produção audiovisual. Se está correta a observação de que a produção audiovisual digital como que democratizou o acesso ao mundo das celebridades pop, por outro lado deve-se reconhecer que a mudança de meios de produção e circulação não afetou o reconhecimento público como um (sub)produto da indústria cultural, do qual se alimenta a indústria do marketing. Na uberização dos transportes, por sua vez, não se inseriu o reconhecimento público como (sub)produto da atividade do deslocamento, porque não é próprio da atividade de deslocar; isto se entende muito facilmente ao se lembrar que, inversamente, não se pode esperar que um influenciador leve alguém de cá para lá, ou que faça entregas, etc., exceto se, além de influenciador, é também motorista, entregador, etc.
Quarto, a questão do ocultamento dos trabalhos de outros trabalhadores envolvidos no processo de produção da “influência”.
É outro despautério a argumentação em favor da tese de que “como a visibilidade é toda de quem executa as performances, oculta-se o trabalho de quem organiza o ‘palco’, isto é, o trabalho dos assistentes dos influenciadores e o trabalho de quem mantém em funcionamento a infraestrutura da rede social”. O trabalho de produção audiovisual, e de produção artística em geral, já é assim, exatamente assim, independentemente do meio. Idem para a afirmação de que “[o] influenciador, na verdade, como qualquer celebridade, depende do trabalho de dezenas, às vezes centenas, milhares de trabalhadores”.
Estas duas linhas de argumentação, com que se tenta afirmar também nisso a especificidade do “putting-out system invertido”, se baseiam em tornar necessariamente social o trabalho da produção audiovisual, e em robinsonadas todos os outros tipos de trabalho. Só para ficar entre aqueles com quem tem contato imediato, o entregador depende do trabalho do mecânico, do frentista, do estoquista, do restaurante, etc.; idem para o motorista por aplicativo. Se forem pautados aqueles com quem estes trabalhadores não têm contato imediato, como toda a cadeia produtiva dos ramos de energia, eletrônica, telecomunicações e software, a situação fica ainda mais complexa.
Este argumento se cruza com a defesa da tese do influenciador como “coinvestidor”, quando se afirma no artigo que, “se for competente o suficiente para ‘viralizar’ seus vídeos, tornar-se-á sócio do empreendimento, celebridade e garoto-propaganda, e receberá uma parte da mais-valia expropriada pela plataforma digital, que por sua vez receberá uma parte da mais-valia expropriada pelo influenciador, caso seja o empregador de uma equipe de assistentes; se o influenciador não demonstrar competência, não conseguirá ultrapassar o nível do micro ou nanoempreendedor”. Ora, isto é verdade tanto para o influenciador digital quanto para qualquer trabalho de produção audiovisual. A descrição citada serve tanto para a produção audiovisual mais tradicional quanto para aquela voltada para o digital; se o parâmetro de “sucesso” no digital é o “viralizar”, antes dele o parâmetro eram os prêmios recebidos, eventualmente o retorno de bilheteria (com patrocínios, nem sempre bilheteria é determinante), etc. Nos filmes que entravam no circuito comercial, o papel da plataforma digital era desempenhado pelas distribuidoras; basta trocar “plataforma digital” por “distribuidora”, e trocar “influenciador” por “diretor” ou “produtora”, e o resultado é o mesmo. As plataformas digitais ampliaram o alcance e duração da distribuição, e também baratearam enormemente seus custos; o resto é o mesmo, literalmente o mesmo.
Quinto, a questão do controle sobre o tempo e sobre o processo de trabalho pelos influenciadores.
Na verdade, mesmo a afirmada falta de direcionamento/controle do processo de produção por parte dos capitalistas envolvidos deve ser entendida cum grano salis, porque existe, sim, um processo relativamente complexo de seleção entre o material publicado, determinado por vários fatores: número de seguidores, os algoritmos de cada rede, etc. A diferença: enquanto nos meios tradicionais de comunicação (People, Caras, etc.) há uma seleção prévia do material a publicar, nos meios digitais a seleção é feita a posteriori, quase sem controle “humano” algum. Essa “falta de controle” sobre os algoritmos envolvidos não permite comunicar com clareza por que o vídeo X teve preferência sobre o vídeo Y, como o faria um editor “humano”, mas indica algumas linhas gerais.
Especialistas em marketing digital dizem ter o poder de interpretar os algoritmos e evidenciá-las, mas a interação entre os fatores desse “sistema editorial difuso” mudam sempre, e um vídeo hoje “monetizado” amanhã pode não mais sê-lo, e vice-versa. Na interação entre seleção por inteligência artificial, interpretação dos especialistas em marketing digital e intuição dos produtores opera-se um processo de seleção prévia, por meio do qual dá-se maior preferência a determinado conteúdo em vez de outros.
Um exemplo: é comum no Youtube que as “capas” dos vídeos (a imagem que aparece primeiro) os influenciadores apareçam com expressões faciais exageradas (boca muito aberta e olhos esbugalhados, para expressar espanto; sobrancelhas muito franzidas e boca muito apertada, para expressar raiva ou desgosto; etc.). Isso acontece porque há, entre produtores de conteúdo digital, a interpretação de que os algoritmos “classificam melhor” vídeos cujas expressões faciais exageradas de capa permitam à inteligência artificial do Youtube “lê-las melhor”. Ora, se é fato que a inteligência artificial se dá melhor interpretando exageros, não sutilezas, insistir no exagero faz com que entenda como “normal” a expressão exagerada, tornando-se necessário exagerar ainda mais nas expressões de capa, o que retroalimenta este mesmo sistema num loop.
Haveria mais a dizer, mas o tempo anda curto.
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Disse no início que o artigo aqui comentado parte de um erro para cometer outro. Entre um e outro extremo existe um universo inteiro que o artigo ignora, justificando tal ignorância quanto ao fenômeno com a afirmação de que “não tem a menor intenção de observá-lo de dentro e de perto”, contentando-se em observá-lo “através do noticiário, observando as pessoas ao redor e conversando com elas”. Com isso, o artigo ignora tanta coisa que seria necessária uma longa série de artigos para suprir tais lapsos. Alguns temas que o artigo ignora:
1) A produção audiovisual em celulares como forma de socialização, especialmente entre mais jovens;
2) Os mecanismos específicos de inserção desta forma de socialização em cadeias de produção de valor, operados por capitalistas que desempenham funções muito diversas em cadeias produtivas até então distintas;
3) O esmaecimento dos limites entre trabalho e lazer neste campo, sintetizado na expressão anglófona playbor (play + labor), que traduzo como “trabalhazer”;
4) O papel específico das produtoras de audiovisual junto a influenciadores de maior impacto, e, inversamente, o papel dos influenciadores que procuram tais agências para aumentar seu impacto.
Qualquer que seja a posição acerca destes temas, não se pode falar do assunto sem alguma reflexão mínima sobre eles.
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Costuma-se dizer que não se deve julgar um artigo pelo que nele falta, mas pelo que nele há. Este artigo serve como curioso exemplo de um escrito que se pode criticar, e se deve criticar, tanto pelo que nele falta quanto pelo que nele há. Precisamos avançar muito mais na análise da realidade, “de dentro e de perto” inclusive, até chegarmos a uma crítica do fenômeno dos influenciadores digitais adequada ao que se vê na prática. Fica aberto o convite a quem mais queira contribuir com o debate.
As fotografias presentes no artigo são do acervo do Instituto Moreira Salles.
Fonte da matéria: Economia política dos influenciadores digitais: uma outra visão | Passa Palavra – https://passapalavra.info/2022/12/146905/
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