Sociedade

Antropologia política: hierarquia, igualdade e sociedades humanas

Tempo de leitura: 45 min

David Graeber e David Wengrow – Por que existem sociedades onde algumas pessoas possuem mais recursos, mais direitos e mais poder de decisão do que outras? Alguma vez já houveram sociedades em que todos fossem iguais, e se sim, por quê?

Este artigo é a transcrição do episódio 6 do podcast What is Politics – Antropologia política: quando o comunismo funciona, e porquê. É o primeiro de uma série discutindo as origens das hierarquias nas sociedades humanas diante do conhecimento construído em diferentes áreas da antropologia e da arqueologia (e que mais à frente se tornou uma série de comentários críticos sobre o livro “O despertar de tudo: Uma nova história da humanidade“, de ).

Olá e sejam bem-vindos de volta ao O Que é Política,

Nos últimos episódios temos falado sobre esquerda e direita na política, que se referem à igualdade política versus hierarquia política – em outras palavras, conflito de classes, conflito entre os diferentes níveis nas várias hierarquias políticas, econômicas, culturais e internacionais que estruturam o nosso mundo social e político.

Durante os próximos episódios, vamos estudar um pouco de antropologia política e ver de onde vem a hierarquia humana. Por que existem sociedades onde algumas pessoas possuem mais recursos, mais direitos e mais poder de decisão do que outras? Por que existem sociedades onde os homens dominam as mulheres? Alguma vez já houveram sociedades em que todos fossem iguais, e se sim, por quê?

Será que o sonho da esquerda de igualdade política humana é algo possível, ou será que ele está condenado a fracassar para sempre porque a hierarquia residiria nas profundezas do nosso DNA de homem-macaco-chimpanzé-lagosta, ou porque as condições o tornariam impossível?

Como veremos, hierarquia e igualdade têm tudo a ver com o poder de negociação – quem tem poder de negociação, quem sabe que o tem, e quem sabe como utilizá-lo.

A humanidade, hoje

Se olharmos à nossa volta hoje, encontraremos um mundo repleto de hierarquias.

Temos hierarquias políticas, onde algumas pessoas dão ordens e outras recebem ordens – proprietários acima dos empregados, o governo acima dos cidadãos, os senhores acima dos escravos. Temos hierarquias econômicas, onde algumas pessoas possuem uma riqueza extraordinária, e outras são indigentes e passam fome. Temos hierarquias culturais, onde algumas categorias de pessoas culturalmente determinadas têm mais direitos ou poder do que outras categorias de pessoas: homens acima das mulheres, brancos acima dos negros, brâmanes acima dos intocáveis, cidadãos acima dos imigrantes, católicos acima dos protestantes, ateus acima dos religiosos [e vice-versa, dependendo do contexto]. E temos hierarquias internacionais ou entre unidades políticas, onde alguns países ou tribos dominam outros.

E todas essas hierarquias se entrelaçam e se reforçam mutuamente de diferentes maneiras. Ter mais riqueza te dá mais poder para mandar em mais pessoas. Fazer parte de uma categoria cultural privilegiada ou de uma nação imperial te dá mais acesso à riqueza, e ser membro de uma categoria subjugada te impede de ter acesso à riqueza ou, às vezes, te impede de ter acesso a qualquer riqueza.

Quando olhamos para a História, vemos o mesmo estado de coisas – uma variedade infinita de hierarquias – reis acima dos senhores, e estes por sua vez acima dos servos, patrícios acima dos plebeus, senhores acima dos escravos, chefes tribais e xamãs acima das pessoas comuns nas tribos, faraós, deuses imperadores aztecas e o Führer acima de todos os outros.

Mesmo quando olhamos para sociedades que supostamente deveriam ser fundadas com base na igualdade, como a ex-URSS, China, Cuba, Vietnã e todos os finados países comunistas do século XX, vemos apenas variações das mesmas hierarquias políticas, econômicas, culturais e internacionais. O secretário geral do partido comunista acima da nomenklatura, por sua vez acima dos membros do partido de baixa patente, e esses acima dos não-membros do partido, com hierarquias correspondentes em rendas e remuneração, ateus acima das pessoas religiosas, pessoas da cidade acima dos camponeses, chefes acima dos trabalhadores, etc.

Origem humana

Olhando para tudo isso, teríamos a impressão de que os seres humanos são animais naturalmente hierárquicos – que essa hierarquia estaria profundamente enraizada nos nossos genes, como as lagostas de que o Professor Doutor Jordan Peterson gosta de falar.

Agora, as lagostas não são uma comparação muito útil porque a relação delas conosco é distante demais, mas se olharmos para os nossos parentes mais próximos, os nossos primos grandes símios – gorilas, chimpanzés e bonobos, vemos que eles também estão todos organizados em hierarquias. Entre os chimpanzés e gorilas, machos fortes e agressivos dominam o resto do grupo, juntamente de uma coalizão de aliados, que é importante observar, inclui as suas mães. E todos os membros de uma comunidade podem ser classificados de alguma forma, o que determina quem tem acesso a vários recursos, incluindo sexo coercitivo.

Entre os bonobos, são coalizões de fêmeas que exercem a dominação, e elas utilizam uma combinação de sexo e violência para manter as suas posições e para controlar o acesso aos recursos. Dado que todos os nossos primos mais próximos estão organizados dessa maneira, os antropólogos assumem que o nosso antepassado mais antigo em comum com eles também deve ter se organizado em alguma forma de hierarquia de dominação.

No entanto, algo muito interessante aconteceu entre o momento em que nos separamos do nosso antepassado em comum com os nossos primos grandes símios e quando nos tornamos seres humanos anatomicamente modernos.

Isso porque, quando olhamos para as sociedades de seres humanos por todo o globo atualmente ou nos registros históricos que praticam o mesmo tipo de caça e coleta que a maioria dos nossos antepassados praticava durante a maior parte da nossa existência como espécie, vemos que cada uma dessas sociedades compartilha de uma distinta ausência de hierarquias de dominação social. Na verdade, parece que não há nelas quase nenhum tipo de hierarquia social.

Não existem posições fixas de autoridade, nem reis, chefes ou sumo-sacerdotes aos quais alguém seja forçado a obedecer. Os homens nem sequer dominam as mulheres, e os pais exercem apenas uma leve autoridade sobre os seus filhos. Essas sociedades demonstram um nível espantoso de igualdade política, econômica e de gênero, lado a lado com um nível muito elevado de liberdade pessoal – uma combinação que supostamente seria impossível, de acordo com os teóricos políticos do século XX mergulhados na ideologia da Guerra Fria.

Em 1634, o Padre Paul Lejeune, um missionário jesuíta, escreveu um famoso relato sobre os seus encontros com o povo Montagnais, hoje também conhecido como Innu, que vive no território que hoje é Québec e Labrador, no Canadá.

Sobre a organização política deles, ele observou:

“…Eles não têm organização política, nem cargos, nem dignidades, nem qualquer autoridade, pois só obedecem ao seu chefe por boa vontade para com ele… Toda a autoridade do seu chefe está na ponta da sua língua; pois ele é poderoso na medida em que for eloquente; e, mesmo que ele se mate de tanto falar e reclamar, não será obedecido a menos que ele agrade aos Selvagens. Além disso, como eles estão contentes em simplesmente viver, nenhum deles vai se dar ao Diabo para adquirir riqueza”.

Note-se que o termo “chefe” é de Lejeune, os Montagnais e Naskapi não tinham tal posição.

Ao mesmo tempo, sobre a liberdade pessoal, Lejeune observou com grande irritação que:

“Eles imaginam que, por direito de nascimento, têm o dever de gozar a liberdade dos potros selvagens, não prestando qualquer homenagem a quem quer que seja, exceto quando querem… Passam suas vidas comendo, rindo e caçoando uns dos outros e de todas as pessoas que conhecem… Se eu os questionava sobre uma coisa, falavam-me de outra, apenas para ter algo para rir e fazer piadas; e consequentemente eu não conseguia saber quando estavam falando sério, ou quando estavam brincando”.

Estas descrições, a ausência de autoridade, a falta de interesse na acumulação de riquezas, e a ampla liberdade pessoal individual, até mesmo as brincadeiras, provocações e zombarias com o sisudo missionário-antropólogo, podem ser encontradas em etnografias sobre sociedades de caçadores-coletores de um tipo específico até hoje, que vivem em territórios por todo o mundo. E também encontramos outras características comuns a essas sociedades, que Lejeune observou em outros pontos no seu relato sobre os Montagnais e Naskapi, tais como a sua inteligência criativa e o seu comedimento quando se trata de raiva, coisas que ele admirou bastante, ou então o seu libertinismo sexual e a ausência de dominação masculina, que lhe despertaram um incômodo sem fim.

Mais de 300 anos depois, e a milhares de quilômetros de distância, você pode ler etnografias ou artigos sobre os Mbuti, que vivem na floresta tropical de Ituri na África central, ou os Ju Hoansi do deserto do Calaári no Sul da África, ou os Hadza da savana da Tanzânia, ou os Batek que vivem na floresta tropical da Malásia, ou os Malapantāram e os Paliyan que vivem nas florestas do sul da Índia e verá o mesmo tipo de histórias sendo relatadas sobre o extremo igualitarismo político e econômico, a ausência de autoridade política, muito humor, e muita liberdade pessoal individual.

Agora, o que todas essas culturas têm em comum, acima desses traços culturais, é o fato de que todas elas praticam o mesmo tipo de economia de subsistência – uma forma específica de caça e coleta que o antropólogo James Woodburn chamou de caça e coleta de retorno imediato, o que significa que as pessoas na maior parte das vezes consomem aquilo que caçam e coletam dentro de alguns dias, sem processar ou armazenar os alimentos de alguma maneira elaborada (como defumar ou fermentar peixes, secar frutas, ou colocar vegetais na salmoura para serem comidos no Inverno).

O modelo forrageiro de retorno-imediato (e “forrageiro” ou “forrageador” são outras palavras para caçador-coletor) é a forma mais simples de caça e coleta – uma variação mais complicada da atividade forrageira que os nossos primos grandes símios praticam – e, como tal, é provavelmente o que a maioria dos seres humanos praticaram desde antes de sermos seres humanos anatomicamente modernos, até à Revolução Neolítica, que começou há cerca de 12.000 anos e que mudou totalmente a humanidade.

Materialismo

Então, porque é que todas as pessoas que praticam esse tipo de economia parecem compartilhar tantos traços culturais, a grandes distâncias umas das outras, em ambientes extremamente diferentes, da floresta tropical congolesa até o deserto de Calaári, passando pelas florestas boreais de Québec e Labrador?

Se pensarmos nisso, não deveria ser tão surpreendente que pessoas que fazem coisas semelhantes para viver apresentem características semelhantes – é algo que vemos à nossa volta na nossa vida cotidiana:

A maioria dos bons escultores e cirurgiões têm muita paciência, mãos firmes e um olho bom para os detalhes. Garçons e garçonetes bem sucedidos tendem a ser bastante amigáveis e a ter boa memória. Muitos advogados e CEO’s são psicopatas. Todos estes fenômenos ocorrem por razões materiais e práticas óbvias, que são inerentes à natureza dessas profissões.

E da mesma forma que há algo inerente a essas profissões que seleciona certos traços e que incentiva as pessoas que querem ter sucesso nessas profissões a adotar esses traços vencedores, há algo inerente a diferentes tipos de economias de subsistência que selecionam e incentivam certos traços culturais e até mesmo certos traços físicos.

Afinal de contas, diferentes economias de subsistência são muito semelhantes a diferentes profissões – qualquer pessoa que para viver se dedica à produção forrageira de retorno imediato está se dedicando ao mesmo tipo geral de atividades das outras pessoas que praticam esse tipo de produção, mesmo que certos detalhes sejam diferentes.

Pense na cultura de escritório, por exemplo. Existem gazilhões de postos de trabalho de escritório, com vários zilhões de locais de trabalho, e cada um deles tem a sua própria cultura – mas existem algumas características gerais que são encontradas nas culturas da maioria dos locais de trabalho de escritório.

Seja num local moderno, horizontal e descolado que sonha em se tornar uma gigante da tecnologia, com balanços, varetas para brincar de pogo e câmaras de meditação, ou seja num escritório-purgatório na forma de um call center com iluminação fluorescente distópica, a maioria das pessoas que trabalham em escritórios, fora dos altos cargos executivos, tende a ser muito avessa ao conflito e reticente em dizer o que pensa, ou em agir de acordo com as suas emoções – pelo menos no trabalho.

Isso porque se você for o tipo de pessoa que não presta atenção no que diz, então você tem tendência a ser despedido nesse tipo de ambiente. Temos um grupo de pessoas encaixotadas juntas como sardinhas o dia inteiro, e as tensões muitas vezes borbulham, mas o verdadeiro conflito direto perturbaria a produção e a obtenção de lucros, que é a razão pela qual todos estão ali. Os gestores não querem a dor de cabeça de ter de lidar com os sentimentos perturbadores de todos ou com conflitos, por isso, se você não consegue guardar os seus sentimentos para si próprio, é mais fácil simplesmente te despedir, a menos que você seja realmente importante para a empresa. Por isso, se for um tipo de pessoa ebuliente, que fala o que quer, num ambiente como esse, em breve você será despedido ou vai aprender a se calar. Como resultado, os escritórios são notórios por serem fossas de agressão passiva, e vemos muitas tiradas engraçadas sobre este aspecto da cultura de escritório em sitcoms de TV, filmes e tirinhas de quadrinhos nos jornais.

Do mesmo modo, em sociedades onde a harmonia social e a cooperação são essenciais para a sobrevivência, como em bandos de caçadores-coletores, onde o tipo errado de conflito na época errada do ano pode potencialmente levar ao colapso de um bando e à fome para todos, normalmente veremos uma enorme ênfase na contenção da raiva, e em evitar conflitos.

O Padre Lejeune caracterizou a atitude dos Montagnais-Naskapi com relação à raiva, contando como o xamã local certa vez lhe disse que “nada pode me perturbar; pode a fome me oprimir, pode a minha pessoa mais próxima passar à outra vida, podem os Iroqueses, nossos inimigos, massacrarem o nosso povo, eu nunca fico irritado”. E Lejeune observou ainda que em todo o seu tempo com os Montagnais-Naskapi ele só ouviu uma vez alguém dizer a palavra para “estou irritado” e depois disso o resto do grupo manteve os olhos nessa pessoa durante algum tempo, por medo de uma potencial explosão.

E você pode ler relatos semelhantes sobre a contenção da raiva em etnografias da maioria dos forrageiros de retorno imediato, e também em etnografias sobre outros tipos de sociedades onde o conflito representa uma ameaça existencial. O livro de Jean Briggs Never in anger (“Nunca irritado”) sobre o tempo que ela passou com os Inuit, que praticam um tipo diferente de caça e coleta, é uma etnografia clássica tratando desse tema.

Portanto, a lição número um a ser tirada de tudo isso é que as condições práticas materiais e sociais em que nos encontramos afetam o nosso comportamento e os nossos valores, na medida em que nos pressionam na direção de certos tipos de comportamentos e para longe de outros. E também selecionam certos tipos de comportamentos e valores contra outros – e seleção aqui significa que as pessoas que têm esses valores ou comportamentos se dão melhor do que as pessoas que não os têm. Elas sobrevivem por mais tempo, têm mais filhos, ou mantêm os seus empregos se estivermos falando de um ambiente de trabalho – enquanto que aqueles que não têm esses valores e comportamentos morrem ou são despedidos. O nosso ambiente não determina todas as escolhas que cada pessoa faz, mas ele nos pressiona em determinadas direções, fazendo com que certas escolhas sejam mais prováveis do que outras, especialmente no longo prazo. Se estiver -20º lá fora e você precisar sair de casa, você é totalmente livre para escolher vestir qualquer coisa que tenha, ou até para não vestir nada, mas eu posso apostar que você vai escolher vestir o seu casaco e suas botas mais quentes e não o seu biquíni. O canibalismo é bastante raro na Europa, mas em tempos de fome, é previsível que suba.

Portanto, voltemos aos caçadores-coletores de retorno imediato. Vimos o que os incentiva a conter a sua raiva, mas o que há na sua economia que incentiva as pessoas a um igualitarismo extremo, e a um elevado grau de liberdade pessoal?

Se olharmos rapidamente para a logística da atividade forrageira de retorno imediato, as respostas são bem simples.

As realidades da produção forrageira de retorno imediato

Uma economia forrageira de retorno imediato envolve pequenos bandos de cerca de 10 a 100 pessoas que estabelecem acampamentos temporários durante algumas semanas, durante as quais constroem abrigos, socializam, saem apanhar frutas, legumes, castanhas e outros comestíveis que crescem na selva, além e pequenos animais ou peixes que eles comem ali mesmo ou que levam de volta para compartilhar com as suas famílias. A caça de animais de grande porte é uma parte importante da vida nômade dos forrageiros e os padrões de migração nômade do bando baseiam-se geralmente em seguir os padrões de migração dos seus animais de caça favoritos.

O tipo de caça com o qual cada cultura se envolve depende do seu ambiente – por exemplo, entre os hadza, que caçam nas planícies do Serengeti na África Oriental, ou entre os bosquímanos no deserto de Calaári, são pequenos grupos de homens com menos de 40 anos que caçam usando arcos e flechas e lanças envenenadas. Entre os mbuti da floresta tropical de Ituri a caça com redes é comunitária, com homens, mulheres e às vezes até crianças participando todos juntos.

A cooperação é fundamental para a sobrevivência em muitos sentidos, uma vez que as pessoas dependem umas das outras para ajudar a construir os seus abrigos, para observar seus filhos, e para a caça de grande porte, entre outras coisas.

E em todos esses grupos, a carne dos animais de grande porte é sempre compartilhada por toda a comunidade do bando, independente de quem faz a caça.

Depois de algum tempo, quando a maior parte da boa comida da área tiver sido consumida ou que os animais tenham deixado a área de caça, o grupo decidirá passar para um local diferente.

A decisão de para onde ir é tomada mais ou menos por consenso. As pessoas discutem, apresentam suas posições, argumentam, e depois, eventualmente, o grupo faz uma escolha e vai. Se houver alguém que realmente se recuse a seguir nessa direção, pode formar um grupo separado e ir para outro lugar se conseguir juntar gente suficiente para formar um bando viável, ou então pode ir juntar-se a outro grupo existente onde tenha amigos ou familiares. Se dividir do bando é relativamente fácil em certas partes do ano quando os bandos são maiores e estão mais próximos, mas pode ser muito mais perigoso fazer isso durante a época do ano quando os bandos estão menores e mais afastados entre si, já que há uma probabilidade maior de que você possa ser um fardo para um novo bando, e que pessoas demais abandonando um bando pode acabar por torná-lo pequeno demais para ser viável.

A composição de cada bando pode ou não ter um núcleo central de pessoas mas, em geral, ele está sempre em fluxo, conforme as pessoas estão saindo para se juntar ou visitar outros bandos com amigos e familiares ou para evitar conflitos com pessoas com quem possam não se dar bem, ou então estão chegando pelas mesmas razões. E esses padrões de fluxo, divisões e fusões com outros bandos, dependendo da estação do ano ou das inclinações dos membros individuais, são chamados de agrupamento social de fissão-fusão.

As pessoas também se envolvem no comércio e trocas com culturas vizinhas de não-caçadoras por coisas como alimentos agrícolas e ferramentas de metal que elas próprias não produzem.

E embora possam trocar coisas por alimentos agrícolas, e saibam como produzir alimentos agrícolas, o que os define como caçadores-coletores é o fato de que eles próprios não se dedicam a qualquer agricultura.

Então por que o igualitarismo?

Portanto, com base nisso, por que há tanta igualdade política e liberdade nas sociedades que praticam este tipo de economia? E observe que, como mencionei nos episódios 4 e 5, ao contrário da propaganda da Guerra Fria, a liberdade não é o oposto da igualdade – a liberdade e a igualdade normalmente andam de mãos dadas – pois se todos têm uma voz equivalente, então ninguém manda em ninguém, por isso há mais liberdade – e se você não tem liberdade, isso significa que alguém está controlando o que você faz a partir de cima, o que significa que existe algum tipo de hierarquia e não igualdade. É por isso que os países democráticos são mais livres do que as ditaduras. É por isso que o famoso slogan da Revolução Francesa era Liberdade, Fraternidade e Igualdade.

Bem, a razão pela qual existe tanta igualdade política e tanta liberdade nessas sociedades é que, dadas as realidades práticas das condições em que elas vivem, simplesmente não há uma maneira de qualquer pessoa ou coligação de pessoas dominar de verdade as outras, mesmo que desejassem fazer isso.

Se um dos seus companheiros de bando estiver se tornando irritante ou dominador, você pode simplesmente ir embora e juntar-se a outro bando, na maior parte do tempo. E como o bando está sempre em movimento, não há nenhuma forma de acumular ou defender recursos. E mesmo que houvesse alguma forma de acumular coisas, na verdade não há nada de especial para se armazenar ou acumular, para início de conversa, já que qualquer coisa que as pessoas precisem pode ser encontrada, feita ou adquirida via troca por mais ou menos qualquer um, ou com a cooperação de alguns amigos – com a exceção da caça de grande porte, que normalmente só certas pessoas são fisicamente fortes ou habilidosas o suficiente para adquirir.

Em outras palavras, não há maneira de tornar ninguém dependente de outra pessoa, que é o necessário para se ter uma hierarquia real. O seu chefe te diz o que fazer no trabalho o dia todo e não o contrário, porque você depende dele para ter seu salário. Quando você é criança, os seus pais te falam o que fazer porque você depende deles para ter alimentação, abrigo e amor.

Então porque os bons caçadores ou coligações de bons caçadores não se aproveitam da carne que trazem para dominar outras pessoas e obrigá-las a fazer coisas para eles? Porque os caçadores dividem o que mataram entre toda a comunidade de acordo com regras cuidadosamente determinadas culturalmente ao invés de trocar por favores, serviços e tratamento especial?

Bem, antes de mais nada, as pessoas adoram carne de caça de grande porte, mas elas não dependem totalmente disso para sobreviver na maior parte do tempo, então as pessoas não precisam tolerar esse tipo de comportamento. Além disso, como até mesmo o melhor caçador necessita da cooperação de outras pessoas para todo tipo de coisas como construir abrigos, ajudar a cuidar das crianças, auxiliar na caça e outras coisas, os seus companheiros de bando poderiam retaliar e se recusar a cooperar com ele de tantas maneiras que acabariam minando a sua capacidade de funcionar.

E, para além destas razões materiais, existem pressões sociais e culturais que preenchem as lacunas e mantêm as coisas num bom caminho. A fim de evitar uma situação em que os bons caçadores estivessem constantemente testando os limites do quanto conseguem dominar as pessoas, o que resultaria em ter pessoas constantemente fazendo retaliações contra eles, o que causaria perturbações à cooperação do grupo com consequências potencialmente desastrosas, existem vários mecanismos culturais para encorajar a partilha e a cooperação e para desencorajar comportamentos de dominação.

A confusão da carne no Calaári

É célebre a história de como o antropólogo Richard Lee descobriu um desses mecanismos quando tentou impressionar o bando ju hoansi com o qual estava vivendo no deserto do Calaári, comprando aquilo que pensava ser um presente sensacional: um boi enorme e aparentemente repleto de carne para ser partilhado e comido no banquete de natal, que estava próximo.

Mas para seu espanto, quando mostrou o boi aos seus anfitriões, em vez de lhe agradecer, todos no bando passaram a se revezar para insultá-lo, fazer piadas e rir dele e do fracasso que foi o seu presente. Uma mulher exclamou “você espera que a gente coma aquele saco de ossos? O que você esperava que a gente fosse comer, os chifres?”.

Mais tarde, um jovem sentou-se sozinho com ele e perguntou “você é tão cego que não consegue ver a diferença entre uma vaca em boas condições e um bicho velho e acabado?” E em outra ocasião um velho se aproximou dele e perguntou com raiva: “honestamente, você acha que pode servir uma carne daquelas às pessoas e evitar uma briga? Com tão pouca quantidade de carne para distribuir, como vamos dar a cada um uma parte justa”?

Lee percebeu que isso poderia ser um grande problema, pois já tinha visto anteriormente momentos bem tensos e discussões ocasionais sobre a distribuição de carne, especialmente quando não havia o suficiente para satisfazer a todos.

Ao longo dos dias seguintes, Lee teve de lidar com incessantes intervenções como essas, pessoas dizendo que ele foi enganado, se queixando em voz alta que o banquete estava arruinado por causa dele, que as pessoas iriam brigar por restos, que ninguém teria energia suficiente para dançar, e que todos iriam para a cama com fome.

Mas Lee estava confuso – era um boi carnudo e realmente enorme, como é que todos podiam estar tão insatisfeitos com ele? Um dos seus informantes, um excelente caçador chamado Tomazo explicou que embora o boi fosse grande, o que os bosquímanos realmente adoram é gordura, e que a maior parte do tamanho desse boi eram apenas ossos gigantes, e que ele deveria ter comprado um boi menor e mais gordo, mas que agora era tarde demais e que eles teriam de se virar com um ensopado de boi.

Tudo isso fez com que Lee sentisse que tinha errado tão feio que talvez fosse uma boa ideia ele abandonar o acampamento permanentemente e recomeçar a pesquisa em algum outro lugar.

Mas depois, quando finalmente abateram e começaram a cortar o animal, Lee viu que, ao contrário do que todos tinham lhe dito, o boi na verdade estava cheio de camadas e mais camadas de gordura.

Quando ele tentava freneticamente apontar isso a um dos membros do bando, o homem gritou “você chama isso de gordura? Esse negócio magro, doente, morto!”, após o que desatou a rir, assim como todos os outros – literalmente rolando no chão de tanto rir.

Lee ficou ali totalmente confuso enquanto os caçadores, cujos rostos pareciam totalmente encantados enquanto abocanhavam enormes pedaços de carne com grandes sorrisos de satisfação, comentavam o quanto aquela carne era esquelética e inútil e o quanto era ruim a capacidade de julgamento de Lee.

Alguns dias mais tarde, finalmente, ele reuniu a coragem de perguntar a alguns dos seus informantes de maior confiança o que raios estava acontecendo, e lhe contaram que o jeito como ele tinha anunciado orgulhosamente o seu presente a todos foi considerado como uma gafe extremamente arrogante, e que eles responderam a isso da maneira apropriada, para que ele descesse um pouco do pedestal e se colocasse no seu lugar.

Ele foi então educado sobre a forma socialmente apropriada e esperada de um bom caçador quando vai anunciar um grande abate – basicamente, pedir desculpas por ter feito um trabalho tão ruim – e sobre como os ju hoansi constantemente se provocam e diminuem uns aos outros dessa maneira, a fim de manter todos com a cabeça no mesmo nível.

Como Tomazo, o habilidoso jovem caçador, lhe disse: “quando um jovem abate muita carne, pensa em si próprio como um chefe ou um grande homem, e pensa no resto de nós como seus servos ou inferiores. Não podemos aceitar isso. Nós recusamos aquele que se vangloria, pois um dia o seu orgulho vai fazer com que ele mate alguém. Por isso, sempre falamos da carne dele como sendo sem valor. Dessa forma, nós acalmamos o coração dele e o tornamos gentil”.

E quando Lee lhe perguntou, com raiva, porque não havia dito isso antes, Tomazo respondeu: “você nunca me perguntou!” (risos)

O fato de existir esse tipo de mecanismo, em primeiro lugar, sugere que o comportamento de dominação é um problema em potencial, que existe uma tendência humana para querer dominar, que precisa ser combatida com a cultura. E é isso que a maior parte da cultura realiza – encontrar formas de combater os impulsos perturbadores, e de encorajar aqueles que mantêm a continuidade suave da ordem social existente.

Punição capital

Porém, há uma outra peça importante do quebra-cabeças sobre a razão pela qual os grandes caçadores agressivos não dominam, e por que eles não se juntam em uma coalizão com outros como eles para tiranizar os seus companheiros de bando. Afinal, os grandes valentões entre os gorilas de dorso prateado e os chimpanzés alfa dominam os seus companheiros de bando apenas os atacando e aterrorizando até que eles aceitem o seu estatuto como alfa, e as fêmeas bonobo de alta patente dominam por coligação – e se um chimpanzé ou bonobo irritado for embora para se juntar a outro bando, só vai encontar um valentão diferente os dominando, e ele também vai se descobrir no degrau mais baixo de uma nova hierarquia.

Mas então porque isso não acontece com bandos de caçadores-coletores humanos?

Parte da resposta são os mecanismos de nivelamento cultural que já analisamos e outras práticas e valores culturais, outra parte é que os grupos de forrageiros humanos têm uma necessidade maior de uma cooperação suave do que a maioria dos grupos de símios, onde as hierarquias são regularmente testadas e desafiadas – mas outra parte fundamental da resposta é apenas o bom e velho homicídio!

Se alguém realmente sai do controle e começa a fazer coisas que perturbam a harmonia da vida do bando ou simplesmente irrita alguém para além de um certo ponto, é relativamente fácil que a pessoa perturbadora seja assassinada, graças à existência e ubiquidade de armas e venenos letais, disponíveis tanto para homens como para mulheres. Mesmo a pessoa mais magricela pode matar o maior maníaco beligerante a uma distância segura com uma lança, uma flecha ou um dardo envenenado.

Segundo os antropólogos, uma vez que os nossos antepassados do gênero homo desenvolveram alguns desses tipos de armas, começando pelo homo erectus ou homo habilis há mais de 2 milhões de anos atrás, os odiosos valentões alfa lentamente passaram a ser mortos numa base regular, eliminando assim traços físicos agressivos e de comportamento dominador que anteriormente faziam dos alfa masculinos os manda-chuvas, que faziam da hierarquia de dominação social a ordem do dia.

Assim, em vez de te garantir mais sexo, mais comida e mais diversão, ser um rufião agressivo só te dava uma lança na cabeça ou um dardo envenenado no seu traseiro idiota.

A evolução dos fracotes 

Podemos ver os resultados disso claramente no registo arqueológico na própria evolução dos corpos masculinos. Podemos pensar na evolução como uma sessão de escultura contínua, com o ceifador como o escultor e a sua foice da morte como o cinzel, e as sucessivas gerações como seu material.

Por volta da época em que as armas de projéteis se desenvolvem, todos os traços que fazem com que tenha sucesso o homem-machão-alfa-valentão nos grandes símios e em outros animais – como caninos gigantes para assustar ou atacar os competidores, testas e sobrancelhas grossas para proteger o seu rosto de golpes com os punhos dos seus concorrentes, grande tamanho corporal masculino versus o tamanho das fêmeas para ajudar a lutar contra os concorrentes sexuais masculinos – estas características começam a desaparecer continuamente até chegarmos à nossa forma masculina moderna, com os nossos pequenos e fracos caninos equivalentes aos femininos, nossas sobrancelhas de covarde franzino e nossa patética diferença de 15% entre os machos e fêmeas, em média, em comparação com a diferença de mais de 50% de tamanho entre os machos e fêmeas dos nossos primos orangotangos e gorilas – esses sim, “homens de verdade”, verdadeiros “reis machões”.

Basicamente, os valentões alfa foram repetidamente mortos pelos seus pares e essas características foram progressivamente eliminadas até chegarmos à nossa forma atual, há cerca de 300.000 anos, mais ou menos.

Punição capital entre forrageiros contemporâneos

E, quando olhamos para os caçadores-coletores de retorno imediato atuais, ainda hoje vemos essa mesma dinâmica em ação. Homens que são agressivos, dominadores, e que repetidamente causam brigas demais e perturbações demais, serão às vezes assassinados por um inimigo, ou os seus parentes passivamente não os defenderão quando sofrerem uma emboscada pelos seus inimigos, ou então, em casos extremos, sofrerão a pena capital nas mãos de toda a comunidade.

Richard Lee descreve uma ocorrência rara em que toda a comunidade emboscou e matou em plena luz do dia um assassino perturbador que já havia assassinado outras três pessoas.

“Enquanto ele morria, todos os homens dispararam contra ele com flechas envenenadas até […] ele parecer um porco-espinho. Então, depois de morto, todas as mulheres, bem como os homens, aproximaram-se do seu corpo e o apunhalaram com lanças, partilhando simbolicamente a responsabilidade pela sua morte.” (Lee 1979)

O antropólogo Christopher Boehm denomina esses mecanismos de nivelamento cultural mais a ameaça de retaliação ou mesmo de pena capital por comportamento dominador como sendo uma “hierarquia de dominância reversa” – o que significa que a comunidade domina coletivamente os potenciais homens alfa, os impedindo de estabelecer qualquer tipo de hierarquia. Assim, se você não gosta da ideia de igualitarismo, pode chamá-la de “hierarquia de dominância reversa” para se sentir mais confortável – dá na mesma!

E essa é uma notícia espetacular para os comunistas e anarquistas – não só os seres humanos são capazes de um elevado grau de igualitarismo, mas esse igualitarismo foi muito provavelmente a norma durante a maior parte dos últimos 300.000 anos da nossa existência como seres humanos anatomicamente modernos, e provavelmente por muito mais tempo do que isso, além do fato de que esse igualitarismo moldou a nossa própria natureza como espécie.

E a razão para esse igualitarismo tinha tudo a ver com uma relativa igualdade de poder de negociação inerente às realidades logísticas da vida como caçadores-coletores de retorno imediato.

*Porém*, segurem vossos cavalos, anarquistas e comunistas – nós até podemos ser capazes de igualdade, mas vivemos atualmente em um mundo de hierarquias sem fim, com apenas algumas centenas de milhares de pessoas em sociedades igualitárias de caçadores-coletores, e zero civilizações industriais igualitárias. Como chegamos de lá para cá e será que existe algum caminho de volta?

Hierarquia e forrageiros complexos: a Costa Noroeste do Pacífico

Para responder a estas questões, é útil olhar para outras sociedades de subsistência. Podemos começar com os caçadores-coletores de “retorno retardado”, também chamados de caçadores-coletores complexos. Ao contrário da atividade dos forrageiros de retorno imediato, que é basicamente um tipo de economia, o termo “caçadores-coletores complexos” inclui uma variedade de diferentes tipos de economias. O que eles partilham em comum é o fato de que não se dedicam à agricultura, e que processam e armazenam alimentos para uso posterior.

As várias tribos nativas americanas da Costa Noroeste do Pacífico, tais como os Haida, os Kwakwakaʼwakw, os Tlingit, eram tradicionalmente caçadores-coletores complexos, cujos tipos de atividades econômicas diferiam grandemente dos forrageiros de retorno imediato que descrevemos anteriormente.

Assim, em vez de seguir os grandes animais de caça durante o ano todo, a economia tradicional de busca de alimentos na Costa Noroeste do Pacífico estava centrada no controle de territórios fixos de pesca de salmão e de outros peixes, junto das áreas circundantes. Como resultado, as várias tribos da Costa Noroeste do Pacífico eram em grande parte sedentárias, vivendo em aldeias fixas com alojamentos de longo prazo e outras estruturas permanentes, embora saíssem para longas expedições de caça e invasões durante a maior parte do ano.

Os territórios de salmão por si só já representavam grandes riquezas, e grandes riquezas significam que há algo a ser roubado, o que significa defesa, e algo a ser armazenado, o que significa gestão de recursos. Além disso, a vida sedentária e moradias permanentes significam que é possível armazenar e defender a suas riquezas – peixes em conserva, cobre, cobertores, e artes incríveis.

Além do mais, alojamentos fixos, com riquezas a se proteger e possuir, também significa que é mais complicado simplesmente levantar e partir se alguém estiver te dominando. Não dá para simplesmente começar o seu próprio bando, e se você abandonar a sua família, estará deixando para trás propriedades importantes. O casamento e o divórcio tornam-se mais complicados porque o casamento começa a envolver a família dos cônjuges e o seu acesso a recursos e territórios, pelo que o casamento arranjado é incentivado a fim de manter territórios preciosos nas mãos certas e para manter a riqueza e o prestígio da família.

Riquezas armazenadas e territórios desejados significam guerras, pilhagem e defesa, o que incentiva a cooperação e coordenação firmes entre grupos maiores de pessoas para defender esses recursos ou para atacar e pilhar outros grupos pelos recursos deles.

E o resultado de tudo isso é … hierarquia. As culturas da Costa Noroeste do Pacífico tinham chefes com autoridade, níveis e classes sociais bem delineados, nobreza de chefes e pessoas comuns – com o poder social baseado na desigualdade de riqueza e escravos, que eram pessoas capturadas em ataques de pilhagem e levadas para longe de sua região, para onde não tinham aliados e onde estavam cercados por guerreiros inimigos e, assim, tinham de fazer o que lhes era dito se quisessem ter acesso a alimentos.

Como falamos no terceiro episódio, a hierarquia é uma forma eficaz de coordenar efetivamente as atividades do grupo em tarefas onde a disciplina é necessária, como na guerra, e é também uma boa maneira de prevenir conflitos sobre recursos. Quando há recursos a serem divididos, você tem basicamente três opções: pode haver uma distribuição igualitária, o que é realmente difícil (se não impossível) de se impor quando não há um poder de negociação relativamente igualitário juntamente de uma necessidade de cooperação; pode haver uma distribuição hierárquica, que tenderá a seguir a divisão existente de poder de negociação; ou então pode haver constantes disputas e violência, conforme as pessoas estejam constantemente trazendo justificativas pelas quais merecem uma parte maior do que aquilo que estiverem recebendo – “você tem cara de cocó e eu sou um Adônis”; “Deus me ama e te odeia”; “eu tenho um diploma universitário e você não sabe ler”; etc.

Pense na queda do Império Romano – quando já não se tinha uma grande estrutura hierárquica que dominasse e unificasse todos aqueles territórios, eles se desmembraram em unidades políticas menores, de posição relativamente equivalente, que lutaram entre si incessantemente ao longo da Idade Média até que se amalgamassem em unidades políticas maiores – e esses Estados maiores também lutaram entre si, até que o capitalismo acabou por interligar as elites dos diferentes Estados capitalistas em uma teia de hierarquia e cooperação.

A hierarquia evita disputas ao determinar antecipadamente quem ganharia se houvesse uma batalha, e quem fica com o quê, e uma hierarquia estável vai corresponder ao poder de negociação que existe entre as várias partes, uma vez que as pessoas normalmente não se darão ao trabalho de entrar numa batalha que elas sabem que provavelmente não vencerão, a menos que sejam seriamente provocadas.

Existem diferentes maneiras de estabelecer e de manter hierarquias, mas se você quiser administrar a riqueza intergeracional que é controlada por uma família ou por uma linhagem – como um território de pesca desejado por outros – um método comum é apontar a pessoa mais velha dessa linhagem como sendo a autoridade máxima, que afinal de contas, representa o elo comum mais antigo entre todos os membros da linhagem. E aí aquelas linhagens fora do grupo de linhagens interligadas pelo sangue, e que controlam mais recursos e que possuem mais poder de negociação, passam a ser reconhecidas como linhagens nobres, e a nomear o chefe da mais poderosa dessas linhagens como sendo o chefe de toda a comunidade.

E assim, para evitar a guerra constante dentro das suas próprias sociedades pelos pontos de pesca e por outros importantes recursos de localização fixa, as culturas da Costa Noroeste do Pacífico desenvolveram estruturas sociais hierárquicas baseadas em linhagem, idade e riqueza, onde diferentes famílias, clãs e linhagens tinham acesso a diferentes territórios. E haviam os grandes chefes encarregados do planejamento da guerra e da distribuição das riquezas, o que era feito de acordo com o status e as classificações de cada um. Além disso, haviam e ainda existem os grandes potlatches, onde o chefe redistribui grandes riquezas, de acordo com o status social – e quanto mais alto for o seu status, mais você recebe – o que mantém a legitimidade do chefe e mantém o sistema estável.

É claro que estou apenas apresentando a perspectiva materialista da cultura – existe todo um sistema complexo de rituais, crenças e arte que mantém tudo isto unido – uma hierarquia espiritual de conhecimentos rituais secretos que reforça, delimita ainda mais a forma, e conceitualiza a hierarquia do mundo material, e que dá a estas sociedades não só mais estabilidade, como os mecanismos de nivelamento e os valores igualitários realizam para os caçadores de retorno imediato – mas que também dá sentido e beleza à vida. E as pessoas da Costa Noroeste do Pacífico são famosas pelos seus incríveis postes e totens, pinturas, máscaras, trajes, danças e canções que dão forma aos seus mundos espiritual e material.

Resumindo, os caçadores-coletores da Costa Noroeste do Pacífico desenvolveram uma ordem social hierárquica porque era possível fazer isso e porque também era benéfico fazer isso. Ao monopolizar e defender o acesso aos principais pontos de pesca, alguns grupos de pessoas tinham os meios para dominar outras pessoas – e eles também tinham hierarquia política porque ela fazia sentido e criava estabilidade – a hierarquia política e econômica estabiliza a competição sobre recursos fixos, tanto no interior das famílias, linhagens e clãs, como entre eles, e reduz o conflito e o caos que ameaça todo mundo, especialmente as pessoas no topo das várias hierarquias, que lutarão para manter o sistema existente, mesmo quando este prejudica outras pessoas, como veremos em episódios futuros.

Hierarquia e mudanças sazonais

Portanto, as sociedades humanas podem ser estruturadas hierarquicamente, onde algumas pessoas dominam as outras, ou elas podem ser estruturadas de acordo com o princípio da igualdade, onde todos têm relativamente o mesmo poder político e riqueza. Quando o poder de negociação entre as pessoas é relativamente igual, e quando a cooperação é necessária para a sobrevivência – que é a situação com os forrageiros de retorno imediato – o resultado é a igualdade política. E quando as circunstâncias dão a algumas pessoas vantagens sobre as outras, como é o caso com os clãs entre os vários forrageiros da Costa Noroeste do Pacífico que controlam territórios melhores ou piores, o resultado são vários tipos de hierarquia.

As culturas podem mudar da hierarquia para a igualdade ou vice-versa ao longo do tempo, à medida que as circunstâncias mudam. A mudança pode ser gradual – por exemplo, as evidências arqueológicas mostram que a hierarquia na Costa Noroeste do Pacífico parece ter surgido ao longo de um período de séculos depois deles terem começado a praticar uma economia de armazenamento de salmão, ou a mudança pode ser rápida, acontecendo durante uma geração ou até menos, como veremos no próximo episódio.

Mas às vezes a mesma cultura passa de mais hierarquia para mais igualdade de maneira sazonal, às vezes todos os anos, à medida que as pessoas alternam entre diferentes tipos de atividades econômicas sazonais, de maneiras que resultam em mudanças no seu poder de negociação relativo.

Por exemplo, a estrutura hierárquica dos povos da Costa Noroeste do Pacífico é mais rígida no seu mundo de Inverno, quando eles se reúnem em grandes números em alojamentos fixos; no entanto, essa estrutura hierárquica relaxa num maior igualitarismo relativo durante a parte do ano em que eles se dividem em bandos menores para praticar caça e coleta e vagueiam pelos seus territórios de maneira semi-nômade, à medida em que várias hierarquias se tornam menos relevantes e mais difíceis de serem impostas. E essa dualidade é refletida nas suas práticas religiosas, onde as pessoas têm até mesmo nomes diferentes na estação do Inverno versus a estação do Verão.

Outro exemplo disto é o povo indígena Nambiquara do Brasil. Quando Claude Lévi-Strauss foi viver com eles no final da década de 1930, eles tinham chefes com autoridade na época das chuvas, quando praticavam agricultura de jardinagem em aldeias fixas, e depois, durante o resto do ano, quando as pessoas se separavam em bandos nômades de caça e coleta, esses chefes perdiam a sua autoridade e tinham de reconquistar os seus seguidores sendo bons líderes e ganhando o respeito do bando, porque as pessoas que não gostavam de um chefe podiam simplesmente abandoná-los para se juntar a outros grupos onde tivessem amigos ou família.

Em outras palavras, quando eles mudavam para uma atividade econômica que se assemelhava à caça e coleta de retorno imediato, as condições logísticas e o equilíbrio de forças também se deslocavam, e as suas estruturas sociais refletiam essa mudança.

Um mundo de forrageiros simples ou complexos?

Se olharmos para o registo arqueológico e aplicarmos os conhecimentos do registo etnográfico das culturas que conhecemos para interpretá-lo, obtemos uma narrativa de um antepassado hierárquico pré-humano em comum com os gorilas, chimpanzés e bonobos há 10 milhões de anos, e depois, à medida que nos ramificamos nas nossas respectivas linhas evolutivas, há cerca de dois milhões de anos, um dos nossos antepassado do gênero homo – talvez o homo erectus ou o homo habilis – desenvolve armas de projéteis letais que disparam uma transformação que nos afasta das hierarquias de dominação, à medida que os machos alfa e beligerantes vão sendo progressivamente eliminados, até chegarmos ao momento em que os seres humanos anatomicamente modernos entram em cena, há cerca de 300.000 anos, na forma dos igualitários caçadores-coletores de retorno imediato.

E então, quando o clima e a geografia começam a mudar, há cerca de 30-40.000 anos, obtemos algumas evidências de possíveis caçadores-coletores complexos surgindo em certas áreas onde a pressão populacional e as condições ambientais tornaram esse tipo de economia possível ou vantajosa. E o surgimento de forrageiros complexos, com as suas vidas semi-sedentárias e grandes concentrações de pessoas relativamente aos forrageiros de retorno imediato, com seus rituais complexos e sua complexa vida religiosa, coincide com a Revolução do Paleolítico Superior, onde começamos a encontrar evidências de vida simbólica mais complexa entre os seres humanos.

Depois, há cerca de 12.000 anos, algo grande acontece, de modo que após milhões de anos de caça e coleta, e 300.000 anos de seres humanos modernos provavelmente vivendo em relativa igualdade, as sociedades hierárquicas começam a se espalhar como um incêndio descontrolado, juntamente com a dominação masculina, violência organizada, e desnutrição crônica, de forma que há cerca de 5.000 anos a maioria dos seres humanos vivia em algum tipo de sociedade hierárquica, e hoje em dia mais de 99,9% dos seres humanos estão organizados hierarquicamente, com menos de 150.000 pessoas vivendo em bandos de caçadores igualitários.

No próximo episódio discutiremos esse acontecimento que mudou o mundo, e um monte de outras coisas fascinantes como a dominação masculina, as sociedades matrilineares, a revolta dos camponeses de 1381, o movimento de sufrágio feminino, a revolução anarquista na Espanha na década de 1930 e se sociedades igualitárias fazem algum sentido no mundo industrializado.

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Enquanto isso, se estiver interessado sobre o que conversamos hoje – e espero que esteja, porque acho tudo isso incrível e fundamental para se compreender a política – então há montanhas e mais montanhas de livros e artigos acadêmicos que talvez você queira ler, e vou deixar alguns dos meus favoritos e talvez fazer um mini-episódio bônus sobre eles, incluindo alguns artigos que questionam a minha tese principal – porém, antes disso: por favor, fale sobre este podcast com seus amigos, seus amigos virtuais nas redes sociais e seus amigos para-sociais – e se conhecer alguém com um podcast ou um canal no youtube popular que tenha algum alcance e que possa dar um impulso ao programa, essa parece ser a principal forma como as pessoas descobrem os podcasts e os canais no youtube hoje em dia, por isso, por favor, fale sobre este programa se puder!

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Até a próxima, nos vemos por aí!

Bibliografia

“The causes and scope of political egalitarianism during the Last Glacial” [As causas e escopo do igualitarismo político durante a última glaciação] por Doron Schulnitzer et al., 2010 em Biology and Philosophy N° 25

Hierarchy in the Forest [Hierarquia na floresta], por Christopher Boehm, 1999

The Dobe Ju/’Hoansi, por Richard Lee 1984/2012

”Eating Christmas in the Kalahari” [Ceia de natal no Calaári], por Richard Lee, 1969

The Forest People [O povo da floresta], por Colin Turnbull, 1961

Wayward Servants [Servos desobedientes], por Colin Turnbull, 1965

“Taming Wild-Ass Colts” [Domando potros selvagens] por Nancy Nienhuis, 2009 em Journal of Feminist Studies in Religion, Vol. 25, No 1. pp. 43-64

Mitos da dominação masculina, editado por Eleanor Leacock, 1981

Chimpanzee Politics [Política chimpanzé], por Franz de Waal, 2007

The Hadza Hunter-Gatherers [Os caçadores-coletores Hadza], por Frank Marlowe, 2010

The Foraging Spectrum [O espectro forrageiro], por Robert L. Kelly, 2013

”Farewell to the Childhood of Man” [Adeus à infância do homem], por David Graeber & David Wengrow, 2015 (ver o episódio 7 para a razão pela qual a tese deles está errada e seu projeto político, mal orientado).

Fonte da matéria: Antropologia política: hierarquia, igualdade e sociedades humanas – O Minhocário – https://ominhocario.wordpress.com/2022/11/07/antropologia-politica-hierarquia-igualdade-e-sociedades-humanas/

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