Economia

Ladislau Dowbor desmistifica o teto de gastos: “É uma farsa”

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Fórum – À Fórum, o professor de economia da PUC-SP, Ladislau Dowbor, conta tudo o que você precisa saber para desmontar as argumentações que apontam “rombos no orçamento” e “quebra do equilíbrio fiscal” pela PEC da Transição e a volta dos programas sociais.

Após negociações no Congresso Nacional que a reduziram para um ano de duração e montante total de R$ 168 bilhões com teto de gastos ampliado para R$ 145 bilhões, a PEC da Transição foi finalmente aprovada na Câmara dos Deputados nesta semana e agora está incluída no Orçamento 2023. A aprovação é considerada a primeira vitória do futuro de governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) justamente por viabilizar o retorno de programas sociais, outrora travados pelo teto de gastos, que além de serem promessas de campanha, pretendem remediar situações de calamidade pública como a volta do Brasil ao mapa da fome – com cerca de 33 milhões efetivamente sem ter o que comer e outras 125 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar.

No entanto, as manchetes dos principais tablóides nacionais esqueceram de noticiar a emergência do combate à fome que incide, inclusive, sobre a economia do país, e preferiram direcionar os leitores para os bilhões de reais que serão gastos por fora do sacrossanto “teto de gastos” estabelecido durante o governo Temer, à toque de caixa.

Com o objetivo de desmistificar as argumentações convencionais que apontam para “rombos no orçamento” e “quebra do equilíbrio fiscal” para atacar a volta dos programas sociais mediante a PEC da Transição, a Fórum entrevistou Ladislau Dowbor, economista, professor da pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autor de uma série de livros sobre o tema como “A era do capital improdutivo” (Autonomia Literária).

“O dreno financeiro improdutivo do país é superior a 20% do PIB e estão fazendo um escândalo porque o novo governo quer assegurar 1,5% ou 2% do PIB para responder a uma situação absolutamente catastrófica. 33 milhões de pessoas passando fome são 6 milhões de crianças passando fome. Crianças que passam fome têm problemas com o desenvolvimento cerebral e são prejudicadas para o resto da vida. Isso é um crime. O governo de um país que está entre os principais produtores de alimentos e deixa o povo passando fome está praticando a prevaricação. É ilegal, está na Constituição a garantia do direito à alimentação básica”, explicou.

Leia a entrevista na íntegra a seguir.

A PEC da Transição foi aprovada na Câmara dos Deputados após dois acordos, um no Senado que a reduziu para R$ 145 bilhões, e outro na Câmara que prevê a validade do orçamento apenas para 2023. Ainda assim permitirá o retorno do Bolsa Família a R$ 600 mensais, mais o adicional de R$ 150 por criança de até seis anos, além da recomposição de outros programas sociais, como o Farmácia Popular e a política de valorização do salário mínimo que podem, além de resolver problemas imediatos da população mais vulnerável, dinamizar a base da economia. Como o senhor analisa do ponto de vista econômico e social a volta dos programas sociais, sobretudo levando em consideração que o Brasil hoje apresenta, após quatro de Paulo Guedes e Bolsonaro, 33 milhões de pessoas passando fome?

Quando falamos do PIB do Brasil, estamos falando de uma ordem de grandeza que, arredondando, neste ano vai dar cerca de R$ 10 trilhões. O que se batalhou na PEC da Transição, sejam os  R$ 198, R$ 175 ou R$ 168 bilhões, representam entre 1,5 e 2% do PIB. E mesmo assim os meios de comunicação reclamaram: “meu Deus, e como fica o equilíbrio fiscal?”

Vejamos então a evasão fiscal, que no ano passado foi de R$ 570 bilhões, ou 6% do PIB – pegando como base o número do ano passado. Traduzindo, são 6% do PIB, nas mãos daqueles que não pagam impostos, e simplesmente evaporam do país. Digo que não pagam impostos porque no Brasil quem mais paga impostos são os pobres, através do consumo. Os assalariados, como eu e você, pagam impostos que descontaram na folha. Já a evasão fiscal é essencialmente uma prática dos chamados ‘mercados’ – e que curiosamente se chamam assim apesar de serem essencialmente grupos financeiros.

As diversas isenções fiscais, que não são dadas para mim, e nem para você, mas para esses grupos, representam outros R$ 500 bilhões. São impostos que eles deveriam pagar e não estão pagando. Além disso, desde 1995, lucros e dividendos distribuídos são isentos de impostos, o que significa que praticamente todo o andar de cima da sociedade está liberado de impostos – e esta ‘liberação’ vai tranquilamente para 10% do PIB ou mais.

Ainda, se olharmos para o que esses mercados colocam nos paraísos fiscais, fica mais assustador. Tenho uma cifra antiga do Tax Access Network de que em 2012 a evasão fiscal somava cerca de 28% do PIB, mas deve ter piorado muito. Nesse caso, o dado não se refere ao que sai todo ano, mas sobre o que há de estoque lá fora em comparação ao PIB anual. O próprio Paulo Guedes tem 8,7 milhões lá fora com o nome fantasma de Dreadnoughts.

A Lei Kandir, de 1996, isenta de impostos quem produz pra exportação. Em outras palavras, transformou o Brasil num exportador de bens primários, e alavancou o processo que conhecemos como reprimarização da economia e desindustrialização. Entre as implicações disto está, por exemplo, o fato de que as exportações de petróleo cru, de minérios brutos da Vale, da madeira derrubada na Amazônia, ou da soja do agronegócio estão isentas de impostos. Acontece que esses são produtos extraídos do país, cuja extração gera pouquíssimos empregos e muitos desastres ambientais. Ainda assim, não pagam impostos. Esse modelo não tem lógica. Ou seja, se você vai fazer atividades dessa natureza e impacto, como a exportação de produtos primários, deveria usar isso para financiar ciência e tecnologia ou setores industriais mais avançados, não simplesmente exportar e sequer cobrar impostos.

A seguir vem o escândalo dos dividendos. A população brasileira hoje paga R$ 130 no botijão de gás. Esse gás que mais do que dobrou, não aumentou o custo de extração e distribuição. Esse dinheiro então vai para onde? Simplesmente esse dinheiro é retirado das famílias e repassado para os donos das ações da Petrobrás, da Vale, da Samarco, enfim, de todos esses grupos. Isso inclui grupos nacionais e em particular grupos internacionais. Se olharmos para o setor agrícola, a maior parte dos lucros vai para 4 grupos: ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus, que são ‘simpaticamente’ chamados de ABCD. Esses grupos detêm 80% do sistema de grãos do mundo.

Se acrescentarmos em particular o endividamento das famílias, 80% das famílias são endividadas e 30% delas estão em bancarrota pessoal. Esse dinheiro de juros vai pros mesmos grupos financeiros, lá para cima. Estou falando em mais de 20% do PIB no total e nenhum pio sobre isso. Mas de repente lemos nos jornais: “meu Deus, 1,5% ou 2% do PIB que vão para os pobres podem quebrar a economia e os mercados não vão aceitar”.

Resumindo, se pegarmos em ordem de grandeza, os R$ 600 bilhões de evasão fiscal, os R$ 500 bilhões de subvenções, mais o que se retira de juros, que está acima de 10% do PIB, vemos um “orçamento” muito superior ao que se brigou na PEC destinado a setores improdutivos.

A base do raciocínio é a seguinte: peguemos o PIB do ano passado que está numa ordem de grandeza de pouco mais de R$ 10 trilhões, aproximadamente, e façamos a divisão pela população, que é de 220 milhões. Como resultado dessa conta, vemos que o que o Brasil produz de bens e serviços daria uma renda de R$ 15 mil por mês por família de quatro pessoas. Ou seja, é só reduzir muito moderadamente os lucros do andar de cima, de gente que não está produzindo, que é possível dar conta de todas as demandas econômicas. A prática do rentismo não pode viver no “vale-tudo”, é preciso reduzir um pouco essa desigualdade. Não precisa ter fome, não precisa ter pobreza, humilhação e todas essas coisas.

A dívida pública não significa que o Estado se endividou pra financiar a educação e a saúde, por exemplo, mas que está pagando juros. Elevaram os juros em nome de combater a inflação, essencialmente para repassar dinheiro dos nossos impostos para os grupos financeiros. Temos o dreno financeiro improdutivo superior a 20% do PIB e estão fazendo um escândalo porque o novo governo quer assegurar 1,5% ou 2% do PIB para responder a uma situação absolutamente catastrófica.

33 milhões de pessoas passando fome são 6 milhões de crianças passando fome. Crianças que passam fome têm problemas com o desenvolvimento cerebral e são prejudicadas para o resto da vida. Isso é um crime. Agora, o governo de um país que está entre os principais produtores de alimentos do mundo e deixa o povo passando fome, está praticando a prevaricação. É ilegal, está na Constituição a garantia do direito à alimentação básica.

A última safra de grãos no Brasil daria três quilos e setecentos gramas por pessoa por dia. Você divide a safra pela população. Se pegarmos a previsão da safra agora deste ano, que vai dar 312 milhões de toneladas, chegamos a mais de quatro quilos, só de grãos, por pessoa ao dia. Levando em conta que o consumo diário de uma pessoa gira em torno de 100 gramas, só o arroz que produzimos poderia entupir todo mundo de alimento.

Ou seja, não temos falta de recursos. Não tem falta de alimento. E ainda por cima, as empresas no Brasil estão trabalhando a 70% da capacidade. Se você gera mais capacidade de compra na base da população, vai dinamizar as empresas, que poderão operar na sua totalidade, o que consequentemente pode melhorar a oferta de emprego. A empresa precisa de gente com dinheiro para ter pra quem vender e juros baixos para financiar a produção. Isso vale pra qualquer país. Mas no Brasil de Bolsonaro e Guedes não tem nenhuma coisa e nem outra.

Por que a distribuição de renda via programas sociais funcionou na fase Lula e não gerou inflação? Como chegar a esse equilíbrio?

Através de 149 programas sociais, entre os quais o Bolsa Família, Luz para Todos, a elevação de salário mínimo etc., gerou-se mais capacidade de compra na base da sociedade, o que gerou demanda para as empresas, o que aumentou o emprego. Paralelamente aumentou o consumo das famílias e pela dinamização da economia também retornou dinheiro para o Estado através do imposto sobre o consumo. Foi assim que a roda girou.

Não teve déficit significativo na fase de Lula e Dilma. O déficit estoura a partir da era da austeridade. Porque você reduz os gastos do estado mas você paralisa a economia. O equilíbrio fiscal se consegue aumentando a dinâmica econômica, que gera mais recursos pro Estado. E não travando a economia simplesmente dizendo a gente só pode gastar o que está no orçamento. Isso é uma farsa. Foi explicado por Johnn Maynard Keynes mais de século atrás, além de já ter sido aplicado com sucesso em uma porção de países. Em termos econômicos é muito simples: nós temos que orientar a economia para o bem-estar das famílias. A partir daí a coisa engrena.

É curioso ouvir o senhor falar e apresentar esses dados, ao passo que me recordo de matéria na imprensa que dizia algo como: “veja o salário que o coloca entre os 10% mais ricos do seu Estado”; valores que não chegam a R$ 5 mil em São Paulo ou R$ 3 mil em Santa Catarina e no Rio de Janeiro, para não falar de estados que com R$ 2 mil mensais os trabalhadores já constam entre os “mais ricos”. Como isso se expressa no cotidiano da população e nos discursos dos economias dos jornalões?

Em termos econômicos isso é uma farsa. Não tem não outra palavra para descrever. Com a austeridade austeridade você trava a economia, travando simultaneamente a capacidade de compra das famílias, a capacidade de investimento das empresas e a capacidade de financiar políticas públicas. E não satisfeitos, fazem o teto de gastos em seguida.

O país está parado. Em 2022 estamos no mesmo nível que 2012. O último ano que o país cresceu foi 2013, cerca de 3%. Durante os governos Lula e Dilma crescemos a uma média de 3,8% ao ano, mesmo com a crise mundial de 2008. A quebradeira se deu quando os bancos e os diversos grupos, com a Lava Jato e a paralisia pra Petrobrás, empenharam a guerra que acompanhamos para derrubar o sistema distributivo, e não apenas a Dilma.  Derrubaram um sistema que funcionava e que agora a população quis de volta.

De lá pra cá, a economia estagnou. As famílias estão endividadas, as empresas não têm para quem vender e os juros das empresas são impagáveis e dificultam o desenvolvimento do setor produtivo. E para piorar, com o teto de gastos, o próprio Estado suspendeu as suas atividades de investimento. Além disso, no Brasil chama-se educação e saúde de ‘gasto’. No resto do mundo isso é ‘investimento’. Então paralisaram os processos de políticas sociais, de saúde, educação e segurança, como parou também todo o sistema ligado às infraestruturas. Aumentou o desemprego e a dívida pública.

O essencial nesse momento é retomar a redinamização, que prevê a possibilidade de ativação do principal motor da economia que é o consumo das famílias. O consumo das famílias faz com que as empresas tenham pra quem vender, o que acarreta em estoques acumulados. Com isso a empresa pode começar a investir e se expandir. Ambos, setor produtivo e economias familiares, geram recursos para o Estado. Precisamos compreender que a questão do teto de gastos ou de quanto vai se colocar no Bolsa Família são secundárias. O que importa é a  lógica do conjunto, porque a economia é um movimento. Não dá para isolar o problema, e nem a solução.

Qual sua avaliação da economia brasileira hoje, já com vistas para o próximo período?

Temos uma economia amplamente subutilizada. A força de trabalho no Brasil está em cerca de 107 milhões de pessoas, mas temos apenas cerca de 33 milhões de empregos formais privados. Acrescentemos aí 11 milhões de empregos públicos, dá 44 milhões de empregados no mercado formal. Ainda há mais cerca de 40 milhões no mercado informal, gente que se vira. E os outros?

Segundo o IBGE, em média as pessoas ganham a metade no setor informal do que ganha uma pessoa no com emprego formal, que tem carteira assinada, aposentadoria etc.. Então além dos 44 milhões de formais e 40 milhões de informais, ainda há 13 milhões de desempregados e 7 milhões de desalentados, que sequer têm esperanças de arrumar um emprego e portanto não o procuram. Somando informalidade, desemprego e desalento, temos de 50 a 60 milhões de pessoas subutilizadas.

Nosso problema não é econômico no sentido de falta de recursos. O problema é de organização política e social. Esse é o eixo.

O senhor certa vez comentou que a partir de certo nível de desigualdade não há democracia que funcione. A partir dessa afirmação, qual a expectativa que se tem para a reconstrução desse sistema de redistribuição, que é inclusive uma promessa de campanha do Lula?

A esperança é pegar o mais urgente e resolver: a fome. Você mencionou mais cedo os 33 milhões que têm fome e os 125 milhões que estão em segurança alimentar. A dinamização nesse nível atinge muita gente mas é politicamente fraca, pesa pouco no Brasil. De qualquer maneira isso pode dar um alento político na base da sociedade, pois se trata de ir ganhando espaço para progredir em relação a um sistema que favoreça o crescimento do conjunto do país. Até porque voltando a crescer é possível redistribuir, investir nas políticas sociais e empreender coisas óbvias, como tirar o teto de gastos que é uma idiotice.

E entre vários pontos que podem desdobrar a partir daí, estaria resgatar mais recursos na base da sociedade e promover acesso a bens públicos como saúde, educação e segurança, que chamamos de salário indireto. Nos países que funcionam minimamente, o salário indireto corresponde a 40% do bem-estar econômico das famílias. Somando o repasse de recursos, aumento do salário mínimo, e retomada das políticas sociais, você melhora a base da sociedade, gera mais mercado e mais demanda dentro da sociedade. Esse é o principal motor.

Paralelamente é preciso ter políticas de emprego. A Índia, por exemplo, assegura cem dias de trabalho para qualquer adulto, pago com salário mínimo. Todo município pode ter um cadastro de projetos que podem ser de saneamento básico, arborização urbana, o que for. Temos um monte de coisa útil para fazer e um monte de gente parada, isso é óbvio.

Com tudo isso, podemos ter um processo de inclusão produtiva e de dinamização pela base. Agora, à prazo, em termos estruturais vamos precisar de uma Reforma Tributária sobre os ricos que não pagam impostos. Em termos de terras agrícolas sub utilizadas no Brasil, há mais  de 160  milhões de hectares – e não estou falando de áreas florestais ou de preservação, mas de terras já consideradas agrícolas. Isso dá cinco vezes o território da Itália. E os proprietários estão sentados em cima, especulando. Essa reforma também deve incluir a utilização os recursos naturais para retomar setores mais avançados.

Temos que fazer ainda a reforma do crédito, pois as taxas cobradas no Brasil, inclusive para pessoa física, são absurdas se comparadas ao resto do mundo. Tudo isso desemboca em uma nova política fiscal, no sentido original da expressão, que quer dizer ‘olhar para onde vai o dinheiro e os recursos’. O grande problema não é de onde vem o dinheiro, mas para onde ele vai.

Fonte da matéria: EXCLUSIVO – Ladislau Dowbor desmistifica o teto de gastos: “É uma farsa” | Revista Fórum – https://revistaforum.com.br/economia/2022/12/22/exclusivo-ladislau-dowbor-desmistifica-teto-de-gastos-e-uma-farsa-129046.html

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