Política

“Formação do Estado brasileiro foi marcada pela violência”

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Agenda Bonifácio – Se o Grito do Ipiranga de D. Pedro naquele 7 de setembro de 1822 decretou nossa independência de Portugal, por que tivemos cerca de cem conflitos armados em diferentes pontos do país nas três décadas seguintes? “Porque foi nesse período que se consolidou a criação do Estado brasileiro”, afirma o jornalista, escritor e pesquisador Leonencio Nossa, na entrevista a seguir. Leonencio descreve essa consolidação de forma convincente em seu livro recém-lançado As Guerras da Independência do Brasil (Editora Topbooks), no qual faz um recorte mais amplo do processo que levou ao Grito do Ipiranga – que tem início com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, e continua até em 1852, 30 anos após a declaração de independência, com a Guerra do Prata. O mérito do autor é contextualizar todos esses conflitos, de norte a sul do país, com a situação política, social e econômica local. Leonencio tem uma longa trajetória como jornalista investigativo e pesquisador. Além da obra recém-lançada, é autor de outros três livros fundamentais para entender o país: o primeiro é O rio: uma viagem pela alma do Amazonas (Record); no qual mergulha no universo político e social da Amazônia; depois vem Mata! O major Curió e as guerrilhas no Araguaia (Companhia das Letras), livro fundamental para entender o período da luta armada durante o regime militar; e, por fim, vale citar também a biografia não autorizada Roberto Marinho – O poder está no ar (Nova Fronteira). Como repórter especial do jornal O Estado de S.Paulo, Leonencio ganhou vários prêmios com duas reportagens investigativas que também ajudam a entender o país: no caderno especial Guerras Desconhecidas do Brasil, publicado em dezembro de 2010, ele resgata 32 revoltas populares sem ideologia nem tutela de partidos políticos, ocorridas já no século 20. Em 2013, Leonencio levou o Prêmio Esso de Jornalismo por outra reportagem investigativa publicada no Estadão – o caderno especial Sangue Político, no qual faz um levantamento sobre as disputas de poder na era democrática, a partir da Lei da Anistia, de 1979. O resultado dessa pesquisa é impressionante: o Brasil teve 1.133 mortes por motivação política em pouco mais de três décadas, o que na época deu uma média 1 assassinato político a cada 11 dias. Para Leonencio, a questão da terra sempre serviu de pano de fundo para a violência no Brasil. “As primeiras guerras oficiais declaradas por D. João contra os indígenas ao chegar ao Brasil, em 1808, tinham como causa a questão da terra”, afirma. “O que ele queria era tirar os indígenas de áreas que poderiam ser utilizadas pelo sistema produtivo”, acrescenta, lembrando o mesmo problema enfrentado por indígenas atualmente na Amazônia.

Seu livro recorre a uma centena de conflitos para explicar todas as consequências do processo de independência. Gostaria que você explicasse sua opção por esse recorte histórico, entre 1808 e 1852, e por que foram necessárias 3 décadas para consolidar a formação do Estado brasileiro? 

Optei por esse recorte, que começa com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, porque ali de fato começa, na minha avaliação, a formação do Estado nacional que temos hoje. Não quero desvalorizar, desqualificar ou reduzir os movimentos ocorridos no século 18, mesmo porque qualquer conflito fica na memória de uma sociedade. Mas a partir da chegada da família real houve uma guerra declarada, oficial, que consta em Carta Régia, por D. João, então regente, às comunidades indígenas de Minas Gerais e do Espírito Santo. E, logo em seguida, ele declara guerra às comunidades indígenas do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, para garantir que o Rio de Janeiro se tornasse a sede do reino unido. É interessante porque, embora sejam regiões distantes, ele está garantindo o avanço do setor produtivo nessas áreas ocupadas por indígenas. Minha história se concentra na formação desse Estado, no período inicial da independência. E aí se estende, claro, até 1852, quando o Brasil declara guerra a Rosas (Juan Manuel de Rosas, que havia sido eleito govenador de Buenos Aires) e compreende guerras contra a Cabanagem e a Balaiada, ocorridas na Amazônia e Nordeste, que ainda tinham demandas do período da independência – eles lutavam por liberdade dos negros, descentralização política e por melhorias de vida. Então, o processo se arrasta. Por isso, a opção por esse recorte.

Desses cem conflitos, quais os que te chamaram a atenção pelo grau de violência e que acabaram sendo relativizados na narrativa da historiografia oficial que vemos nos livros escolares sobre a independência do Brasil?

Acredito que esses conflitos acabam sendo ignorados porque ganham a condição de “conflitos regionais” – por terem ocorrido fora dos grandes eixos, dos grandes centros produtores de história. Citaria o que ocorreu em Belém. Depois do Grito do Ipiranga, D. Pedro manda um navio para garantir a independência, a anexação da Província Grão-Pará ao Império do Brasil. E ocorre uma luta sangrenta, mesmo porque o cenário ali era confuso. Ao mesmo tempo que tem uma população que lutava pela independência, essa sociedade percebeu que os principais cargos da província continuaram nas mãos dos portugueses. Ou seja, o rearranjo de forças na província não teve uma mudança brusca no sistema. Houve então uma repressão contra brasileiros que lutavam pela independência por parte do império. O que ocorreu: o enviado de D. Pedro mandou prender, no porão de um navio, o brique Palhaço, mais de 200 pessoas que tinham participado de movimentos de rua. Elas acabaram trancafiadas num espaço muito pequeno, de poucos palmos, quente. Naquele sufoco, os soldados deram tiros e houve uma batalha interna por sobrevivência naquele porão, faltava ar, faltava água. De madrugada, os soldados jogaram cal no porão e, quando amanheceu, só um preso tinha sobrevivido. Isso ocorreu em 1823. Imagine em Belém, uma cidade pequena na época, o impacto da morte de mais de 200 pessoas. Para a sociedade local foi um acontecimento que marcou demais. E o processo de independência no Grão-Pará vai se estender – depois teria a Cabanagem, que teve os mesmos motivos. No meu trabalho procuro mostrar que a história não é uma consequência de fatos e também não é bem uma conexão de fatos. Mas quando começamos a olhar a história do Brasil numa perspectiva mais ampla, a gente percebe que o terror, a violência do Estado, essa dificuldade da consolidação democrática, de maior participação da população, são coisas que vão ficando mais complicadas e difíceis.

Além da grande quantidade, esses 100 conflitos descritos nem sempre tinham uma agenda comum – alguns traziam insatisfação com governos locais, outros pediam a abolição e havia também motivações diferentes, como autonomia ou até a Proclamação da República. Como o governo imperial conseguiu se manter no poder, apesar de tantos conflitos e a dimensão continental do país?

No primeiro momento não conseguiu, porque D. Pedro assume um Estado que não tinha Marinha, não tinha Exército nem burocracia – tanto que vai buscar na Europa mercenários para formar uma força armada. Essa convulsão, esses conflitos que começaram a pipocar país afora, pelas cidades do interior, vai resultar na queda dele, em 1831. D. Pedro I sofre um golpe, por parte de militares, e acaba deixando o país forçado – e ainda deixa um filho. E ali temos uma criança, incubida em algum momento de governar o país, e depois vem a redução de maioridade para que esse menino, D. Pedro II, de 14 anos, pudesse assumir o país. Esse império vai se arrastar, conseguindo chegar até o final do século 19 sem virar uma república. Teve muita repressão, no Nordeste e no interior do país, mas não foi só isso que garantiu que o território brasileiro permanecesse o mesmo desde a época da independência. De 1822 para cá, o Brasil só perdeu a antiga Província Cisplatina, que virou o Uruguai, e ainda anexamos o Acre. Só as guerras não explicam tudo, o porquê disso. Há muitos fatores, e na história às vezes a gente erra ao ver um fator ou outro como a causa principal. Tem, por exemplo, a questão da força da língua portuguesa. É um dos fatores para manter a integridade territorial do que chamamos Brasil. Na América espanhola houve desintegração total de províncias e todos falavam o espanhol. A língua não foi suficiente para evitar isso, mas aqui, diante de tantas repúblicas espanholas, você tinha uma nação que falava uma única língua. Esse foi um dos fatores. Houve outros, claro.

Queria que você abordasse esse acordo, após a independência, para barrar a abolição da escravidão, uma exigência das grandes potências, principalmente a Inglaterra. E também sobre o modo de produção que a elite brasileira decidiu apostar, o grande latifúndio, contrariando grandes bandeiras levantadas por José Bonifácio, como a reforma agrária e o fim da escravidão. Você acredita que as características desse modo de produção acabaram ajudando a manter o país unido?

É difícil dizer se ajudou porque tivemos movimentos, de baixo para cima do país, pela abolição. Os negros participam ativamente da luta pela independência. Se pegarmos o que ocorreu na Bahia (em 1823), havia contingentes inteiros de negros recrutados ou lutaram de forma voluntária pela independência. No Piauí, as grandes batalhas que ocorreram lá foram com soldados negros, indígenas e mestiços. E de fato existia um projeto, um esboço de nação com Bonifácio e D. Pedro I que previa, sim, o fim do latifúndio porque ele representava, na ótica do Estado, o limite imposto a esse Estado. Isso porque, a partir do momento que existe um latifúndio, o senhor daquela propriedade acaba sendo o dono de tudo e também do Estado ali dentro. Bonifácio tinha essa noção, como um homem preocupado em criar um Estado, de que o Estado não poderia ter limites – ele percebeu que tinha limites quando se deparava com a questão do latifúndio e consequentemente, com a questão da escravatura. E houve uma grande contradição brasileira: a manutenção do sistema escravocrata enquanto estávamos adotando um sistema liberal. Foi feita essa adaptação trágica de um liberalismo que, dentro dele, aceitava a escravidão. E ali venceu a elite econômica que defendia essa escravidão. Não era uma elite qualquer, era uma elite muito forte no Recôncavo Baiano, em Pernambuco e outra que vai surgir depois no Vale do Paraíba. Essa classe de moradores que surgia no Rio de Janeiro e em São Paulo, com visões mais libertárias, não vai dar conta de enfrentar essa elite que estava mais estruturada naquele momento. Vale lembrar também que, apesar do fim do tráfico de escravizados para o Brasil, essas famílias que ganharam muito dinheiro com o tráfico vão dar as cartas na elite política do Império que surgia, por meio de filhos e agregados. Esses grandes traficantes vão “lavar” a sua situação de escravocratas – perseguidos até pela Inglaterra – fazendo conchavos com essa elite política. Portanto, não foram apenas os donos de engenho nem só os senhores de cafezais que começaram a lucrar no Império.  Temos uma nova configuração dessa classe mais abastada das grandes cidades que permitiu que a escravidão fosse o modelo adotado.

Nesse seu livro, e também nas reportagens investigativas sobre as guerras desconhecidas no século 20 e a violência na política brasileira na era democrática, chama a atenção o pano de fundo da questão da terra. Na sua opinião, essa na verdade sempre foi a principal razão para termos tantos conflitos armados desde a época colonial?

Acho que sim. A terra sempre foi onde as pessoas buscam o sustento. Como disse antes, tivemos as primeiras guerras oficiais declaradas por D. João contra indígenas por causa da questão das terras. O que ele queria era tirar os indígenas de uma área que poderia ser utilizada pelo sistema produtivo. Ao longo do tempo, tivemos uma legislação, medidas de abrir essas terras para um público maior, mas é um desafio que iria continuar e continua até os dias de hoje. A questão agrária é a grande questão – o que temos hoje, só para fazer um paralelo e sem querer ser simplista, é uma disputa por terra numa região cobiçada, a Amazônia. E a questão agrária envolve outras questões. Uma delas é a questão da liberdade do corpo. Se você não limita espaços físicos, você não delimita a garantia de direitos civis. O que ocorre é que a escravidão, por incrível que pareça, existe hoje nas grandes fazendas do Pará ou do Mato Grosso. Se as antigas equipes que combatiam o trabalho análogo à escravidão – que foram desativadas nos últimos anos – fossem retomadas, iriam encontrar grandes levas de pessoas em condições muito ruins de trabalho. Portanto, a questão da terra envolve boa parte dos nossos problemas sociais. Se partirmos para a questão urbana, por exemplo, vemos a questão das comunidades, das disputas de forças, como a milícia, o tráfico ou o próprio Estado nessas comunidades, tudo gira em demarcação de território. Não estou querendo simplificar em torno de um tema. Mas não dá para negar que o debate da terra é uma forma de olhar o país com mais profundidade, com mais complexidade.

Retomando essas pesquisas que você fez em reportagens investigativas sobre a violência política e as guerras desconhecidas, ambas do século 20, você enxerga uma continuidade, um padrão de violência que a gente sempre teve no país desde a época da colonização?

Alguns padrões são repetidos. Mas, como disse, a história não é uma sucessão de causas e efeitos porque as conjunturas mudam muito. O Brasil está inserido num sistema político e econômico internacional. O Estado que se forma na independência até chegar aos nossos dias não vai garantir direitos plenos a todos. Essas demandas que surgiram na independência vão perdurar ao longo do tempo. Não significa que o Brasil continua “a mesma coisa”. São conjunturas diferentes que formaram o povo brasileiro. Não somos o mesmo povo da independência — tivemos nova levas imigratórias, somos um país dinâmico nisso. Mas temos problemas que vão desafiar o tempo.

Dentro desse contexto, você acredita que o Brasil de fato é um país independente?

Sim, somos um país absolutamente independente. Mas a garantia de independência, que permite o bem-estar, o cidadão ter uma renda e viver com sua família com dignidade, essa condição exige um exercício diário de busca de independência. Porque as forças que compõem o Estado são volúveis. A garantia de que o país tenha uma independência, uma garantia de proteção, não é automática. Temos fissuras a todo momento quando as forças que compõem esse Estado começam a se mover. O jogo é muito dinâmico. Acredito que somos um país independente, mas essa independência não é algo fixo.

Fonte da matéria: “Formação do Estado brasileiro foi marcada pela violência”, diz o jornalista e escritor Leonencio Nossa | Agenda Bonifácio – https://agendabonifacio.com.br/entrevistas/formacao-do-estado-brasileiro-foi-marcada-pela-violencia-diz-o-jornalista-e-escritor-leonencio-nossa/

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