Bruno Paes Manso – O bloqueio das estradas e as manifestações em frente dos quartéis ocorridas depois da eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva confirmaram algo cada vez mais óbvio. O País não está rachado apenas porque as pessoas têm opiniões divergentes, mas porque enxergam os fatos usando lentes distintas, como se vivessem em realidades paralelas.
A discussão política no Brasil sempre foi polarizada, mas a maioria das pessoas partia de um solo comum. Desde a redemocratização, em 1985, tanto esquerda como direita abandonaram pretensões golpistas ou antissistema. A democracia parecia se consolidar como um caminho sem volta e o debate se restringia ao tipo de reforma a ser feita para melhorar o sistema. Apesar dos problemas, a racionalidade pautava os debates sobre políticas públicas, que giravam em torno de temas sem graça, como a Previdência, privatização, déficit público etc.
Os primeiros sintomas de que mudanças estruturais estavam em curso na política nacional vieram com as Jornadas de Junho, em 2013. Multidões tomaram as ruas em protestos virulentos. Havia uma novidade na cena dos protestos. As redes sociais surgiam e possibilitavam um tipo de comunicação mais horizontal, dando voz e visibilidade aos que não tinham, o que parecia ampliar as ferramentas de participação popular.
Eram tempos alvissareiros, vistos como otimismo em diversos lugares do mundo. As revoltas populares, iniciadas em 2010, que ficaram conhecidas como Primavera Árabe, propagaram uma onda de protestos que pareciam colocar em xeque governos autoritários que mantinham sua população calada. As manifestações nas redes e nas ruas se multiplicavam com a ação do mídia-ativismo, que começava a despontar e a pautar as bandeiras até então represadas pelos grandes veículos de comunicação, donos das prensas e dos equipamentos de rádio e de televisão. A transformação era profunda. Para os novos protagonistas da informação nas redes, bastava um laptop ou um celular para arrasar na luta política.
Segundo a tese defendida pelo mídia-ativismo, o que estava em jogo era a chamada “guerra das narrativas”, que seria vencida pelos mais capazes de disseminar suas versões dos fatos. A suposta imparcialidade da grande imprensa – repleta de defeitos e vieses –, segundo os críticos, ao invés de promover racionalidade nos debates públicos, apenas servia para disfarçar uma visão de mundo conservadora e elitista, que precisava ser desconstruída para mudar a realidade.
As revoltas nas redes e nas ruas do Brasil provocaram reboliço em 2013. Os manifestantes derrubaram inicialmente o aumento do valor da tarifa do transporte público, numa vitória surpreendente. No ano seguinte, continuaram nas ruas contra a Copa do Mundo e o preço alto da construção dos estádios. Os grupos progressistas controlavam a situação, mas a reação conservadora já vinha sendo articulada, não apenas no Brasil, mas em outras partes do planeta.
Em menos de uma década, o reacionarismo se mostrou mais capaz de seduzir mentes e corações aflitos com tantas mudanças. Havia medo de desordem, incertezas sobre o futuro e insegurança. No Brasil e no mundo, os empregos estavam acabando, com as vagas sendo substituídas pela tecnologia. As mulheres assumiam um protagonismo inédito, os movimentos negros recontavam a história e cobravam reparação. As famílias se transformavam e a comunidade LGBTQIA+ exigia respeito.
A extrema-direita, como começou a ficar cada vez mais evidente, tinha grandes vantagens para avançar e vencer a guerra das narrativas. As transformações profundas que tomavam o planeta de assalto abriam brechas para o fortalecimento dos discursos que pregavam o retorno ao passado, mais seguro e compreensível. As mudanças defendidas pelos progressistas eram facilmente associadas ao caos, à anomia e à imprevisibilidade.
No Brasil, a crise econômica e política aprofundada depois da reeleição de Dilma Rousseff, somada aos quatro anos de denúncias da Lava Jato, atingiram em cheio à Nova República. A política e o sistema caíram em descrédito, empurrando o discurso disruptivo para os braços da extrema-direita. Era preciso reestabelecer a autoridade com alguém disposto a liderar uma guerra, que ingressava com força no cenário político nacional.
O outsider Jair Bolsonaro surfou nessa onda e revelou ao Brasil a força sedutora do discurso do ódio e da defesa da luta contra os inimigos. O mídia-ativismo da extrema-direita passou a engajar mais gente a partir da exploração da revolta e do medo das pessoas diante das incertezas quando ao futuro. Seitas foram sendo criadas em bolhas que compartilhavam distorções da realidade que apenas reforçavam seus preconceitos. O antipetismo ganhou força não apenas por causa das denúncias de corrupção contra o partido, já que escândalos parecidos nunca colaram no governo corrupto de Bolsonaro. Lula não era perdoado porque simbolizava as transformações que atemorizavam os que queriam que o mundo andasse em marcha à ré.
O reacionarismo de Bolsonaro seduz e desperta paixões, como ocorre com outros fundamentalismos reacionários pelo mundo afora. A promessa de ordem e previsibilidade, mesmo que imposta pela violência, produz conforto aos bolsonaristas, enquanto as mudanças geram medo. Não deixa de ser surpreendente, nove anos depois de 2013, acompanhar uma revolta reacionária usando instrumentos e vocabulário semelhantes ao da esquerda autonomista, bloqueando vias e falando em desobediência civil. A revolução apaixonada da extrema-direita pretende parar o tempo, interromper as transformações, regressar ao passado para um mundo previsível.
As transformações, contudo, chegaram para ficar e se aprofundar. Não podem ser barradas porque são legítimas. O homem não terá de volta o protagonismo das sociedades patriarcais e tradicionais. Também não existe espaço para retrocessos em relação às pautas de raça e de gênero. O debate sobre o meio ambiente e a vida no planeta deve se tornar prioritário para que o mundo não acabe. Caberá à política e às instituições democráticas garantirem que esses avanços prossigam, sem potencializar medos e conflitos.
Para exorcizar o espírito golpista e conspiratório que tomou conta de parte da população, o avanço deve prosseguir com diálogo e compaixão aos desesperados. Os que estão com medo e com raiva devem se conformar e entender os benefícios das mudanças. Caso contrário, é necessário usar a força na legítima defesa do contrato coletivo.
Os crimes contra a ordem democrática devem ser punidos, para que o Estado de Direito e as instituições democráticas se fortaleçam. Mas a moderação de uma frente ampla precisa liderar o processo de construção da ponte que conecte o País cindido, contemplando os partidos compromissados com a democracia. Será necessária uma política de redução de danos. É preciso curar os traumas que afloraram no Brasil.
O discurso antissistema, portanto, precisa dar um tempo, tanto à esquerda como à direita. As reformas devem ocorrer dentro da estrutura republicana e democrática. Esse consenso precisa voltar a ganhar apoio. As informações falsas e conspiratórias podem perder força conforme os ânimos se esfriem. A normalização das mudanças no mundo vai permitir que as paixões doentias sejam exorcizadas para a volta do juízo e da racionalidade.
Nesse momento da história, no Brasil, Lula é uma liderança capaz de assumir esse processo de pacificação dos espíritos. Ele vai precisar se desdobrar para restabelecer o solo comum para que todos voltem a enxergar a realidade a partir das mesmas lentes, sem delírios. Existe um papel de reconstrução de pontes. Serão quatro anos decisivos, em que moderação e o diálogo são os melhores caminhos para fortalecer o progresso civilizatório.
Fonte da matéria: Como exorcizar o espírito golpista e conspiratório – Jornal da USP – https://jornal.usp.br/articulistas/bruno-paes-manso/como-exorcizar-o-espirito-golpista-e-conspiratorio/
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