Miguel Muñoz – Entrevista com Ignacio Ramonet
No início do livro, você escreve: “A invasão do Capitólio, em janeiro de 2021, é um evento crucial para o futuro da democracia, não apenas nos Estados Unidos”. Você a classifica como o “testemunho mais impressionante de como o sistema democrático está doente”. Não parece um início muito esperançoso.
Há alguns dias, Joe Biden fez um discurso. E em relação às midterms (eleições de meio de mandato), que acontecem nesta terça-feira, disse essencialmente que a democracia está ameaçada. Iniciou seu discurso dizendo: “Onde está Nancy?”. Isto era o que dizia um cara, com um martelo na mão, quando entrou na casa dos Pelosi e atacou o marido. “Onde está Nancy?” é o que diziam os invasores do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, quando também a procuravam para, literalmente, executá-la.
A situação evoluiu da pior forma possível. E ninguém hoje nos garante que os republicanos não vencerão, em 8 de novembro, e que teremos uma situação que favoreça o retorno de Trump. Perspectiva em que retornaria alguém que pela primeira vez na história dos Estados Unidos tentou um golpe de Estado. É o que disse e demonstrou a Comissão Parlamentar.
Então, você considera possível que Trump volte a governar nos Estados Unidos?
Não sabemos. Ainda faltam dois anos e muitas coisas podem acontecer. Mas vimos o peso que Trump tem no Partido Republicano, neste momento. A forma como está determinando e escolhendo os candidatos. É verdade que há uma corrente anti-Trump em seu partido, mas no momento não se enxerga quem poderia ser candidato e se apresentar nas primárias contra ele. Possui uma máquina colossal, contribuições financeiras colossais, criou sua rede social etc.
O fato de seu amigo íntimo Elon Musk agora ter comprado o Twitter também nos diz que é possível que Trump retorne a essa rede social. Trump, antes que o Instagram, YouTube e Facebook o coibissem, tinha cerca de 150 milhões de seguidores. Tinha um poder comunicacional muito importante e, hoje, continua tendo.
Qual seria esse Trump revanchista que retornaria? Existe uma Suprema Corte nomeada praticamente por ele mesmo. Com base, além disso, em uma campanha repleta de mentiras. É o que Biden dizia outro dia: será o triunfo das mentiras, se os republicanos vencerem na terça-feira. É possível que ganhem a Câmara dos Representantes e também o Senado. O último é menos provável, mas não impossível.
No livro, você disse que a lição do que aconteceu no Capitólio vale para outros contextos. E, aqui, menciona Jair Bolsonaro. Vimos como se resistia a reconhecer explicitamente sua derrota para Lula. No Brasil, existe o risco de que os resultados eleitorais não sejam respeitados e que aconteça algo como nos Estados Unidos?
Já parece difícil que os resultados não sejam reconhecidos. Implicitamente, Bolsonaro não nega os resultados, sem aceitá-los explicitamente. Mas vários de seus representantes, em particular o novo governador eleito em São Paulo, reconheceram a vitória de Lula. O que pode acontecer no Brasil é um golpe de Estado militar. Neste momento, os bolsonaristas não estão pedindo que Bolsonaro não reconheça a vitória de Lula. Pedem que os militares tomem as rédeas do Estado. Então, esse é o perigo do golpe de Estado.
O que aconteceu em 6 de janeiro, nos Estados Unidos, com a invasão de um edifício simbólico, tinha acontecido, por exemplo, na Alemanha, quando a extrema direita invadiu o Bundestag. Ou quando os fascistas italianos invadiram a sede da CGIL, o principal sindicato do país. Tudo isso foi antes. E então, uma vez que se invadiu o Capitólio, muitas pessoas se sentiram autorizadas a invadir edifícios simbólicos.
Os caminhoneiros canadenses cercaram o Parlamento do Canadá, em Ottawa. Grupos extremistas foram encorajados a agir com base em mentiras, ao não reconhecer resultados eleitorais e com base em boatos. Busco explicar que não são apenas mentiras, mas uma articulação entre algumas mentiras e também uma situação social que favorece a recepção dessas mentiras como verdades. Por exemplo, a situação da classe média branca nos Estados Unidos.
De fato, no livro você ressalta que muitas pessoas da classe trabalhadora e média votaram contra os interesses de sua classe por motivos identitários. E que quando se decepcionaram, começaram a abraçar as teses conspiracionistas. O que leva uma pessoa a abraçar esse tipo de tese?
Nós analisamos com uma espécie de grade marxista básica e, de forma científica e social, penso que votam contra sua classe social. Mas eles não pensam em termos de classes sociais. Pensam, como Trump os incita a pensar, em termos de identidade racial ou étnica. Portanto, como categoria étnica, sentem-se ameaçados, pois são os brancos pobres cercados por imigrantes não brancos que vão ascendendo do ponto de vista social.
Então, eles se sentem ameaçados e não têm mais a condição que tiveram em toda a história dos Estados Unidos, que é também a história de um genocídio, por meio do qual, pelo fato de ser branco, já tinham uma condição privilegiada. Hoje, estão perdendo. Então, também favorecem a tese que a extrema direita na Europa usa muito: a da “grande substituição”.
Ou seja, “os imigrantes estão chegando gota a gota, mas com o tempo vão nos substituir, como já aconteceu em alguns territórios, bairros ou regiões. Assim como nos substituíram do ponto de vista eleitoral em algumas esferas locais, nos sindicatos e organizações de bairro”. Eles se veem como um grupo étnico ameaçado. Por tudo isso, possuem uma dimensão muito racista.
Na Espanha, estamos salvos de riscos semelhantes?
Na época de Obama, há cerca de oito anos, o Tea Party nos parecia o mais à extrema direita que poderíamos imaginar, o mais irracional do ponto de vista político. Com coisas tão reacionárias e distantes do progresso, do curso da história. E hoje o Tea Party é quase uma organização democrática exemplar frente às novas extremas direitas.
Na Europa, observe o que acaba de acontecer na Itália. Um século após a marcha sobre a Itália, Giorgia Meloni está lá reivindicando Mussolini. A extrema direita ganhou as eleições na Suécia, que era um exemplo de social-democracia. Na França, o primeiro partido é o de Le Pen.
Vemos esse modelo americano que parece distante ou exótico e adaptado a uma cultura americana muito pouco estruturada segundo os nossos critérios acadêmicos e educacionais. Mas, aqui, as extremas direitas também estão em ascensão. Pelas mesmas razões, a questão da imigração é extremamente rentável a essas teorias.
No livro, são relatados todos os boatos relacionados às teorias conspiracionistas da era Trump e posterior. Arrepia um pouco, principalmente tudo o que está relacionado ao Pizzagate, a rede de pedofilia satânica… E que existisse total impunidade quanto à divulgação de informações assim.
As redes sociais criaram a ideia de que, finalmente, você encontra milhares de pessoas que têm ideias como as suas, que você não se atrevia a expressar porque te envergonhavam, pois não estavam no âmbito do que é aceitável. De qualquer tipo. Então, a pessoa pensa que não está sozinha como pensadora de uma ideia tão distorcida. Isso estimula a se afirmar em uma sociedade que exige, a ter personalidade e identidade comunicacional. Esses canais favorecem isto.
Essa expressão selvagem foi sendo corrigida ultimamente. Em especial, após a invasão do Capitólio, as grandes redes tomaram a decisão de moderar muito mais para ir eliminando aqueles que espalhavam boatos ou teses racistas. No entanto, agora, vemos como Elon Musk, ao comprar o Twitter, diz que irá restabelecer a liberdade, que a liberdade de expressão está muito limitada. Não sabemos o que será desta questão.
Por outro lado, no livro, falamos de um personagem chamado Alex Jones. Possui um canal de televisão e era quem atacava Hillary Clinton. Ele a acusava de matar as crianças, comê-las, chupar o sangue delas… Eu falo a esse respeito no livro, que um sujeito no fundo de Minneapolis ouviu isto, pegou o seu carro e foi parar em Washington para entrar na pizzaria em questão para libertar as crianças. Este Jones acaba de ser condenado por ter negado um massacre e ter ridicularizado os pais de um menino de 12 anos assassinado a tiros em uma escola. A condenação é de 995 milhões de euros.
Como você pode notar, estamos em um momento em que talvez, por um lado, Musk possa criar um ambiente de liberdade de expressão, mas, por outro, alguns tribunais consideram que isso tem consequências. Como a de que os pais de uma criança assassinada tenham que suportar zombarias, na frente de sua casa, com a acusação de terem inventado o assassinato de seu filho.
Você é muito crítico às redes sociais e em relação ao uso dado a elas. O que um cidadão pode fazer, neste contexto, para se informar com algum rigor?
A situação da informação hoje é muito difícil. Neste universo que aqui descrevemos, o que está em crise é a verdade. Ou seja, em particular eu desenvolvo quase um capítulo sobre a crise da verdade, a história da verdade. Isso é uma realidade hoje em dia. Hoje, literalmente, é impossível saber se algo é verdadeiro ou falso.
Estamos diante de uma das maiores crises geopolíticas dos últimos 60 ou 70 anos, que é a guerra na Ucrânia. Veja quantas pessoas confusas existem. Não estou dizendo que ninguém tem a verdade absoluta, mas é muito difícil saber algumas coisas. Por exemplo, quem está bombardeando a usina nuclear de Zaporizhzhia? Não temos uma resposta convincente para um juízo racional. Se são os russos, por que vão bombardeariam eles que estão lá? E se são os ucranianos, por que dizem que são os russos?
No livro, há um pequeno capítulo sobre essa guerra e você é muito crítico a respeito do papel dos grandes meios de comunicação.
Em geral, a uns e outros. Também não acredito que os russos tenham uma visão muito objetiva da guerra.
Então, volto a insistir sobre o que um cidadão pode fazer com a intenção de se informar corretamente.
Há uma crise da verdade. Há uma crise da informação. Parecia que se tivéssemos redes sociais iríamos nos livrar dos grandes meios de comunicação que pertenciam às corporações ou aos Estados. Você já sabe onde estamos. Pior do que nunca. Talvez seja necessário dizer que se informar sempre foi difícil. Nunca foi fácil.
Sempre tivemos a esperança de que chegaria uma tecnologia que iria nos permitir a boa informação. Uma tecnologia ou uma política como a democratização da informação, na época do Relatório McBride. No entanto, hoje, aconteceu a democratização da informação e estamos em uma confusão muito importante. Repito, informar-se sempre foi difícil.
Há algum tempo, eu escrevi um artigo chamado Informar-se custa. Não custa só dinheiro, porque é preciso assinar diferentes meios de informação, mas porque é preciso dedicar muito tempo para consultar diferentes fontes. Existem sites especializados na revelação da origem de fotografias ou vídeos. Hoje, é possível saber, mas leva muito tempo. Um cidadão comum não tem tanto tempo. Quer assistir ao noticiário da televisão e que diga a verdade. Hoje, isto não é possível.
Falamos sobre a extrema direita o tempo todo, mas eu queria perguntar se a esquerda está a salvo das teorias da conspiracionistas infundadas?
A esquerda não está a salvo. A esquerda também entra no conspiracionismo, quando acontece qualquer coisa, a culpa é do imperialismo. É muito fácil afirmar isto. Vou te dar dois exemplos. Quando ocorreram os atentados de 11 de setembro, uma parte da esquerda acolheu mundialmente a tese de Thierry Meyssan que dizia que era a grande mentira de nosso tempo, que nunca tinha acontecido um ataque às Torres Gêmeas. E que havia sido um autoatentado realizado pelo Pentágono. Parte da esquerda recebeu e repetiu isto. Nem toda a esquerda, eu me considero de esquerda e nós combatemos essa tese como irracional e “complotista”.
O outro exemplo é que nos meios de comunicação de esquerda se lê frequentemente que o grupo Bilderberg é o dono do mundo e que tudo o que acontece tem a ver com isso. Para uma parte da esquerda, Bilderberg são os reptilianos. A esquerda não está a salvo do “complotismo”. Uma coisa que eu digo é que os complôs existem de verdade. Não muito longe daqui. Prim foi assassinado vítima de um complô que até hoje não foi elucidado.
A pandemia também potencializou o surgimento dessas teses.
Obviamente. Dois anos de confrontação permanente, de comércio permanente com as telas e fechados por meses, tendo relações com pessoas desconhecidas, provocaram o surgimento de organizações como o QAnon.
QAnon é o paradigma de todas essas teorias e uma parte importante do livro é dedicada a ele.
QAnon é tudo isso. Porque o QAnon é a Igreja do trumpismo para a qual Trump é o profeta e o Papa. Não é americano, está em todo o mundo. Estou certo de que há um QAnon espanhol. Vi que, há algumas semanas, houve um grande congresso terraplanista em Barcelona, que é uma cidade racional, e em Palma de Mallorca. Não estamos a salvo dessas teorias.
E que perspectiva enxerga para o QAnon e essas redes conspiracionistas? Vão se esgotar ou vão mais longe?
Vão ascendendo. Há uma coisa importante e que eu destaco. Nesta história do que é a verdade e do que é a mentira, ocorreu uma mudança copernicana. Até agora, funcionamos com a convicção de que se você repete uma mentira, ela se transforma em verdade. O problema é que agora isso funciona ao contrário. Hoje, se você repete uma verdade mil vezes, transforma-se em mentira. Isso é muito mais difícil de combater. Você não pode começar a dizer que dois e dois não são quatro. Você tem que continuar dizendo que dois e dois são quatro.
No entanto, tem gente que vai dizer não e que dois e dois são Pizzagate. Esse é o questionamento da narrativa dominante. Trump impôs a verdade alternativa. Esse relativismo faz com que agora exista uma nova geração. Olha a extrema direita, é jovem. Meloni, por exemplo. A extrema direita está criando sua própria construção intelectual e não podemos nos limitar a depreciá-la sem nos interessar em como funciona e de onde vem. É um pouco a intenção deste livro, sobre como se constrói a extrema direita. Com mitos e com realidades sociais como os crimes sexuais ocorridos nos Estados Unidos. São uma legião e autorizam alguém a dizer que há pedófilos entre nós.
No verão de 2020, tive a oportunidade de conversar com você. Dizia-me que a pandemia havia colocado o modelo neoliberal em crise. Como você avalia a saída da crise, vista agora em perspectiva?
Acredito que sim, a pandemia colocou em questão a globalização. É preciso entendê-la como a forma como o poder financeiro domina a economia. Não domina a fabricação ou a indústria, mas o funcionamento das finanças. Isso não funciona mais. Cito dois pequenos exemplos que demonstram que a globalização parou.
A covid teve consequências para a inflação, a guerra na Ucrânia acrescentou mais elementos a ela. Mas, veja, Liz Truss chega ao poder no Reino Unido com um programa thatcheriano, que foi quem inventou a globalização. Apresenta enormes cortes de impostos não financiados para que automaticamente a economia se levante. E quem se revolta contra esse modelo? Não só a esquerda e os sindicatos. São os próprios mercados, que não acreditam mais em uma solução globalizadora dos problemas econômicos que o mundo enfrenta hoje.
Segundo exemplo, a China. Este ano terá o crescimento mais fraco dos últimos 40 anos. Não basta dar trabalho à nova geração que vem. Qual é o projeto chinês atualmente? Não apostar tudo nas exportações, que era um fator a mais da globalização, mas apostar tudo no mercado interno. Há dois exemplos, nada banais, que demonstram que a globalização não funciona mais como antes.
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