Tereza Novaes – Mais de 37% dos lares com crianças menores de dez anos enfrentam insegurança alimentar grave ou moderada.
A sabedoria popular coloca a cozinha como o coração de uma casa. O aconchego da comida, repartir uma refeição e alimentar quem amamos. Muito da vida familiar, da estrutura primordial de quem somos, passa pelo alimento. Falar sobre comida e seus inúmeros significados soa quase obsceno em um país com fome. Segundo o Vigisan (Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil), publicado em setembro passado, 37,8% dos lares com crianças menores de dez anos enfrentam insegurança alimentar grave ou moderada. O índice voltou ao patamar de 2004.
“É extremamente grave porque isso já havia melhorado e piorou de maneira sensível, sobretudo depois da pandemia. Hoje mais de 50% das famílias brasileiras têm algum grau de insegurança alimentar. É trágico, porque nós sabemos que são as crianças quem pagam o maior tributo desta situação. Elas estão em pleno desenvolvimento, que pode ser comprometido com déficits cognitivos, dificuldade no aprendizado e mau rendimento escolar”, afirma a pediatra Luciana Rodrigues Silva, professora titular da Universidade Federal da Bahia, vice-presidente da Associação Médica Brasileira e que presidiu a Sociedade Brasileira de Pediatria por seis anos.
Hoje mais de 50% das famílias brasileiras têm insegurança alimentar. É trágico, pois são as crianças que mais sofrem
O economista Naercio Menezes Filho, que dirige o Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância, adiciona a esse cenário perverso outro fator. “Sem recursos financeiros para colocar comida na mesa, os pais certamente estarão estressados, o que também afeta a dinâmica familiar e o convívio com os filhos. A criança precisa também de estímulos e de interação com os adultos para poder se desenvolver de forma plena.”
É o efeito bola de neve: a insegurança alimentar afeta o desenvolvimento infantil de várias formas, faz com que a criança tenha mais dificuldade na escola e acaba por afastá-la definitivamente dos estudos. “No futuro, essa criança vai ter problemas para se inserir no mercado de trabalho e contribuir para a produtividade, o crescimento econômico e o desenvolvimento do país”, aponta Naercio, que também é professor da Cátedra Ruth Cardoso no Insper e da FEA-USP.
Há 6,8 milhões de pessoas com fome em São Paulo e 2,7 milhões no Rio de Janeiro. Os dois estados lideram esse ranking, mas é no Nordeste que se concentra o maior número de famintos, 12,1 milhões de pessoas sofrem com insegurança alimentar grave na região. Realizado entre novembro de 2021 e abril de 2022, o Vigisan ouviu moradores de 12.745 domicílios, de 577 municípios, das 27 unidades federativas, em áreas urbanas e rurais.
Educação e comida como direitos
O direito à educação passa necessariamente pela comida. “A alimentação é um direito humano imprescindível para assegurar a vida, o desenvolvimento integral e a autonomia. Quem tem fome perde a autonomia e, por isso, a alimentação é um direito essencial garantido: quando há pessoas passando fome, as estruturas do estado democrático de direito ficam bastante comprometidas. Não à toa, está na Constituição Federal, no artigo 6º, a alimentação como um direito social”, lembra Raquel Franzim, diretora de educação e culturas infantis do Instituto Alana.
No Brasil, com a fome sempre à espreita, políticas públicas para reforçar a qualidade da merenda escolar são sabidamente uma boa estratégia para que crianças e jovens tenham o mínimo. Ainda em 1954, foi colocado em prática o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), incorporado como direito na Constituição de 1988, como aliado fundamental para uma educação de qualidade. O Pnae é uma suplementação de verbas para estados, municípios e escolas federais. O valor destinado a cada aluno, por dia letivo, é: creches R$ 1,07; pré-escola R$ 0,53; escolas indígenas e quilombolas R$ 0,64; ensino fundamental e médio R$ 0,36; educação de jovens e adultos R$ 0,32; ensino integral R$ 1,07; Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral R$ 2; alunos que frequentam o Atendimento Educacional Especializado no contraturno R$ 0,53.
Embora seja antiga e tenha sido aprimorada (30% desse valor deve ser usado para compra direta de produtos da agricultura familiar para estimular o desenvolvimento econômico e sustentável das comunidades), a Pnae está sem reajustes há cinco anos. Só nos últimos 12 meses, a inflação acumulada é de 7,17%.
Na pandemia vimos que as crianças estavam se desnutrindo muito por conta do fechamento das escolas
“Essa verba é muito importante porque, às vezes, esse é o único alimento da criança. Na pandemia vimos que as crianças estavam se desnutrindo muito por conta do fechamento das escolas”, atesta a médica Virgínia Weffort, docente da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, em Uberaba, e coordenadora do curso de nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria.
A merenda não só é capaz de suprir parte importante das necessidades nutricionais das crianças, mas também é um elemento essencial para o conhecimento. “Precisamos reconhecer que, quando as crianças se alimentam dentro da escola, o alimento tem um papel até maior que o crescimento, a nutrição e a saúde infantil. Ele é muito importante para aprendizagem. Alimentar-se junto, numa instituição como a escola, é uma prática social repleta de lições importantíssimas porque a comida é uma experiência cultural”, aponta Raquel Franzim.
Comida também é cultura e aprendizagem
Dentro desse contexto, o Instituto Comida e Cultura tem como foco educar os pequenos por meio da alimentação. “Pela comida podemos falar de questões ambientais e de biodiversidade, de territórios e diminuição de cadeias, dos impactos que a gente causa no meio ambiente e da própria saudabilidade do corpo. A obesidade, por exemplo, é uma pandemia global e uma porcentagem grande das crianças brasileiras hoje em dia é obesa por conta de má alimentação, do consumo desenfreado de ultraprocessados. Tudo isso pode ser abordado com as crianças nas aulas de uma maneira bastante lúdica, resgatando histórias, brincadeiras, cozinhando com elas e comendo ao final”, conta Ariela Doctors, diretora geral da organização.
Além do trabalho realizado diretamente nas escolas, o Instituto Comida e Cultura promove oficinas para educadores da rede municipal de São Paulo e para crianças. Na mais recente que aconteceu no evento São Paulo Food Film Fest, o tema foi o trigo. Após assistir ao filme “Ratatouille”, o público infantil foi convidado a fazer macarrão.
Crianças que comem ultraprocessados não têm fome no estômago, mas o organismo está todo com fome
Essa parte importante da formação das crianças, que não vivem em situação de fome, claro, está ameaçada. “Hoje falta nas casas o cheiro de comida. Por pressa, as pessoas passaram a consumir coisas prontas e produtos processados, mas essa pressa é inimiga da saúde”, alerta Virgínia Weffort.
A enxurrada de ultraprocessados traz obesidade e subnutrição. Segundo ela, essas crianças não têm fome no estômago, mas “o organismo está todo com fome”.
Não há nutrientes mais ou menos importantes. O importante é o conjunto. “Por exemplo, ele precisa do carboidrato, arroz, batata ou mandioca, por exemplo. E precisa da proteína animal, qualquer tipo de carne ou ovo, e da vegetal, que são as leguminosas, como feijão, soja ou lentilha, além das hortaliças, verduras de folha e legumes. Ela precisa de tudo e em quantidades adequadas”, detalha a pediatra.
A exceção para fazer suplementação é para famílias de veganos, por exemplo. “A carne tem alguns nutrientes que não encontramos em outros alimentos da mesma forma, como a vitamina B12 e o ferro”, afirma.
Comida no prato, lápis no caderno
Para Virginia, comer certo é fácil e depende dos pais e do exemplo da família. Uma criança vai passar por uma fase mais seletiva, que vai deixar de lado algo que antes gostava. “É um processo natural, do desenvolvimento infantil e ocorre por volta dos dois anos.” Ela alerta ainda que, especialmente em casas com insegurança alimentar, continuar amamentando, até ao menos dois anos, ajuda muito. “O leite materno tem o cálcio e as vitaminas que a criança precisa. A partir dos seis meses, precisa começar com arroz, feijão, abobrinha, carne ou ovo para complementar.”
Insegurança alimentar é um problema emergencial
Comida no prato e lápis no caderno são causa e consequência de um futuro melhor e de uma infância feliz. “Insegurança alimentar é um problema emergencial. As crianças comem dentro e fora da escola, e esse esforço para que haja comida precisa ser feito por gestores comprometidos com a qualidade de vida das pessoas, a educação e a saúde das famílias”, destaca a pediatra Luciana Rodrigues Silva.
“Nossos gestores precisam urgentemente estarem aptos a criar políticas públicas que possam alterar essa situação. A fome e a desnutrição atrapalham de modo definitivamente significativo o desenvolvimento e as habilidades, como atenção, memória, leitura e aprendizagem da linguagem. Isso vai determinar o futuro desses indivíduos e as chances de emprego e de trabalho deles”, finaliza Luciana.
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