Pedro Rangel – “O trabalho voluntário e dos movimentos sociais é muito mais efetivo”. Na pandemia, ambos os movimentos fizeram cozinhas solidárias e distribuíram comida. Pode ficar em paz. Movimentos de luta pela terra, como o MST, ou de luta por moradia, como o MTST, bem diferente do que a propaganda da direita quer passar, são os que mais lutam pelo direito de todos terem um teto e alimento para viver com dignidade.
Historicamente, governos brasileiros de direita como o de Bolsonaro buscam, a todo custo, reverter conquistas históricas da classe trabalhadora, frutos de uma árdua luta coletiva que se desenvolve cotidianamente. Desde 2016, os ataques contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) se intensificaram.
Escolhidos como inimigos preferenciais pelos conservadores e pela classe proprietária, são taxados como “terroristas vermelhos” e “invasores” da propriedade alheia, buscando legitimar a violência dos patrões e do Estado contra eles. A caracterização das organizações populares como “criminosas” não é apenas mera bravata que expressa acirramento da ofensiva ideológica reacionária, mas uma condição necessária a dar forma à política prática dos que visam aprofundar à situação de terra arrasada para a população trabalhadora brasileira — e justificar a continuidade de uma verdadeira guerra aos pobres.
Com o aprofundamento da crise social capitalista, escancarada com a chegada da pandemia de COVID-19, as contradições do sistema de classes vão se tornando cada vez mais nítidas. As elites se veem obrigadas a construir um consenso em torno da criminalização da luta popular. Qualquer protesto social militante é condenado de partida como intolerável. Mesmo diante desse cenário, a resistência do MST e MTST, principalmente após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, consegue pôr em questão esse consenso conservador, promovendo e expandindo suas lutas, suas alianças com outros setores da sociedade, e educando tanto sua base quanto a população em geral acerca dos objetivos e estratégias de seus movimentos.
Com esforço e criatividade, esses movimentos têm conseguido construir vínculos de solidariedade com amplas camadas do povo brasileiro e conquistar a simpatia de pessoas que não estão ligadas a essas lutas específicas. Se antes considerava-se normal esbravejar que movimentos invasores buscavam ilegalmente ocupar locais de “pessoas comuns”, as contradições da relação capital-trabalho fazem com que os trabalhadores — jogados novamente ao mapa da fome, desemprego e situação de rua — compreendam qual a verdadeira ameaça para suas vidas. E ela tem nome: capitalismo.
O MST não quer roubar seu sítio ou sua fazenda
Como presidente, Jair Bolsonaro ameaçou classificar as ocupações do MST como “terrorismo”. Assim como seus pares na extrema direita, Bolsonaro não aceita os mais básicos direitos sociais estabelecidos pela Constituição de 1988. A reforma agrária, objetivo principal do movimento, é, pelo menos no papel, uma política do Estado brasileiro desde a redemocratização.
O MST, uma das maiores e mais articuladas organizações de luta social da América Latina, foi fundado em 1984 com o objetivo histórico de erguer a bandeira da luta por uma reforma agrária no país – respondendo ao problema objetivo da brutal concentração fundiária no campo brasileiro. O esforço do MST já deu muitos frutos concretos, contribuindo diretamente para o assentamento de mais de 400 mil famílias. Outras 120 mil continuam à espera de um pedaço de chão, nos acampamentos organizados pelo movimento.
“Realizar a reforma agrária, longe de ser uma demanda subversiva, é apenas uma exigência constitucional. ‘Criminoso’, portanto, não é o movimento, mas o latifúndio.”
O MST luta por um direito, reconhecido expressamente na Constituição de 1988. O artigo 186 afirma que a desapropriação de terras não só é permitida como recomendada quando uma propriedade não cumpre sua função social e não atende a uma série de requisitos, sendo eles: “aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” Realizar a reforma agrária, longe de ser uma demanda subversiva, é apenas uma exigência constitucional. O que o MST e outros movimentos do campo reclamam é que se cumpra o que o próprio ordenamento jurídico democrático brasileiro já estabelece. “Criminoso”, portanto, não é o movimento, mas o latifúndio.
Toda terra deve cumprir uma função social, ou seja, ter sua utilização correta, condizente com o bem-estar social coletivo. O Estado, portanto, pode intervir no título de tal propriedade privada caso ela não esteja cumprindo sua devida função. O que acontece é que muitas terras, concentradas na mão de latifundiários que promovem a especulação imobiliária, são improdutivas justamente para que a riqueza dos proprietários aumente cada vez mais, às custas de privações e sofrimentos para as famílias trabalhadoras.
Nas últimas décadas, uma parte do latifúndio improdutivo tem se convertido em agronegócio, e embora isso tenha se mostrado um grande negócio para os donos de terra, o mesmo não pode ser dito para os despossuídos. Como sempre, os lucros são privatizados, mas os prejuízos recaem nas costas dos que não tem nada: desmatamento e destruição do solo, envenenamento por agrotóxicos, grilagem e expulsão de camponeses de suas terras, invasão de territórios indígenas. O capital avança pelo campo, e o remodela a sua própria imagem, destruindo formas tradicionais de vida comunitária, proletarizando o campesinato e devastando o meio ambiente.
A aliança entre fazendeiros, capital financeiro internacional, grandes projetos de energia e mineração, produz uma modernização não só muito mal distribuída como furiosamente violenta, enriquecendo uns poucos e empobrecendo as duas fontes originais de toda a riqueza: o trabalhador e a terra. Mas esses interesses são poderosos o bastante para capturar o poder político, daí a força da “bancada do boi” e sua influência nas decisões do executivo (basta olhar para o orçamento). Diante do abandono do Estado em relação aos mais pobres, não resta outra alternativa à população que não a organização militante, a ação coletiva e a luta confrontacional por direitos.
A luta prática em meio ao limite institucional
No Brasil, sob o infortúnio de contar com uma classe dominante particularmente autoritária e conservadora, estar na lei não significa que será aplicado. Apesar da letra da Constituição, a concentração de terras cresce e o número de desapropriações diminui. Em virtude da força do poder do dinheiro, o agronegócio é dono do país — não só dono das terras, como do parlamento. A propriedade privada, não a lei (para nem falar do povo), é quem reina soberana. Em 2010, latifúndios representavam 40% das grandes propriedades rurais brasileiras. Em 2015, aproximadamente 228 milhões de hectares estavam abandonados ou fora da sua função social, logo, aptos para a desapropriação.
“A dívida do setor com o Estado brasileiro chegou a mais de R$ 700 bilhões em 2022, totalizando 22,4% do PIB nacional (R$ 1,5 trilhão).”
Para quem é descrito como o “motor da economia brasileira” por empresários do campo e parte da mídia brasileira, o agronegócio exibe uma potência decepcionante. É muita propaganda para pouco vigor. Para além das regalias do financiamento estatal a juros baixíssimos, o agronegócio sequer consegue pagar suas dívidas, que sempre precisam ser renegociadas com uma boa dose de subsídio público, alongamento de prazos, ampliação de benefícios e coisas tais. A dívida do setor com o Estado brasileiro chegou a mais de R$ 700 bilhões em 2022, totalizando 22,4% do PIB nacional (R$ 1,5 trilhão), segundo a própria Associação Nacional de Defesa dos Agricultores (Andaterra). Tampouco o agronegócio gera empregos. O censo agropecuário de 2017 feito pelo IBGE também registra que apesar de ocupar 77% da área de todos os estabelecimentos agropecuários brasileiros, o agronegócio emprega apenas 33% dos trabalhadores do setor, enquanto a grande maioria (67%) trabalha na agricultura familiar.
Em meio a uma crise econômica sem precedentes, e as porteiras generosamente abertas para deixar passar uma boiada de políticas econômicas neoliberais passando, a inflação vai esvaziando o prato de comida na mesa das famílias trabalhadoras: já são perto de 20 milhões de brasileiros atingidos pela fome, e cerca de 55,2% da população em estado de insegurança alimentar (de acordo com o Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). A desapropriação de terras improdutivas, o assentamento de famílias e a disponibilização de recursos para a produção agroecológica e formação de cooperativas no campo são todos elementos cruciais para o fortalecimento da agricultura familiar e, consequentemente, para a erradicação da fome no país novamente.
A defesa de movimentos como o MST é uma pauta fundamental de todo socialista. Deslocar o centro do debate para a questão da soberania alimentar, e do direito universal à comida de qualidade, significa não apenas fortalecer a luta contra as mazelas do agronegócio, mas garantir a sobrevivência material dos trabalhadores pobres, para que possam seguir lutando por dias melhores. Agindo no limite do institucional, o movimento trava o bom combate pela conquista do devido e adequado uso social da terra. O já famoso boné vermelho, que traz um casal camponês com o punho ao alto e os contornos do Brasil ao fundo, é emblemático como imagem do país que podemos ser, mas é também uma questão de urgência prática para todos que querem ver uma classe trabalhadora forte e confiante, disposta a disputar e conquistar o poder político.
Não, o MTST não vai ocupar sua casa ou apartamento
A função social não apenas se estende para as propriedades rurais, mas também urbanas. A regulamentação se dá principalmente através do Estatuto da Cidade, que determina políticas de desenvolvimento urbano para promoção do desenvolvimento das funções sociais da cidade. Mas para além de qualquer lógica de direitos e bem estar coletivo, o mercado imobiliário se mostra um protagonista feroz, e nada “urbano”, na disputa pelo destino dos territórios e pela própria conformação do espaço público, deformando a cara das nossas cidades.
O centro da cidade de São Paulo, a cidade mais rica do país, é uma das áreas onde tal processo de gentrificação se torna mais nítido, por ser um dos locais com maior concentração de prédios abandonados no Brasil. Enquanto isso, a população de rua na cidade aumentou em cerca de 31,4% no ano de 2021.
“A maneira eficaz que o povo trabalhador encontrou para fazer valer seus direitos é ocupando ‘imóveis vazios e abandonados de grandes proprietários, em geral com dívidas milionárias com o Poder Público’.”
É esse mapa de desigualdade que explica o aparecimento de movimentos como o MTST, que travam o combate por moradia digna, pressionando o Estado a cumprir as leis de função social e destinar áreas ociosas para a moradia social. Esses movimentos não “roubam” a casa de ninguém — “ao contrário, o Movimento conquista casas para pessoas que não têm”. A maneira eficaz que o povo trabalhador encontrou para fazer valer seus direitos é ocupando “imóveis vazios e abandonados de grandes proprietários, em geral com dívidas milionárias com o Poder Público”. Nada mais justo, já que “esses imóveis ocupados estão em situação ilegal, por não cumprirem a função social exigida pela Constituição e o Estatuto das Cidades”, diz Guilherme Boulos, coordenador do MTST, sobre a falsa concepção de que o movimento quer “invadir a casa da gente”.
Do projeto à vitória
E não é só ocupar: o MTST acompanha de perto as iniciativas de moradia estatal e faz questão de lutar por melhorias em cada projeto. Como muitas vezes cabe a construtoras definir o local de novas construções de moradias populares, o movimento permanece atento para que as moradias sejam feitas com a melhor qualidade possível e tamanho digno para uma vida de boa qualidade – e isso envolve a luta para além do projeto, mapeando terrenos e supervisionando obras.
O Brasil possui um dos maiores números de trabalhadores do continente, com 80% da população habitando cidades metropolitanas. Logo, capitais urbanas são a maior expressão das contradições da luta de classes. O déficit habitacional no país, segundo o Instituto João Pinheiro, é de 5,8 milhões. Números de 2018 mostram, em contraste, que mais de 6 milhões de imóveis encontram-se desocupados ao redor do país. Há, portanto, mais moradias vazias do que pessoas morando nas ruas. É neste contexto que o MTST aplica sua tática de ocupações pontuais e planejadas.
Ao contrário do discurso da extrema direita, as ocupações dos trabalhadores sem-teto não são obras de vagabundos, ou tramadas por indivíduos desocupados. Os números do pós-pandemia não mentem: milhares perderam suas casas em todo território brasileiro porque não conseguem conciliar as despesas habitacionais com o custo de vida por causa dos baixos salários — e são justamente essas pessoas que vão engrossar as fileiras do movimento. Como os salários têm estagnado, e a renda das famílias trabalhadoras diminuído, mas os preços dos bens necessários para viver continuar a aumentar, muitas vezes essas famílias se vêem forçadas a escolher entre pagar o teto ou a comida. As políticas econômicas preferidas pela classe proprietária, e intensificadas desde o golpe de 2016, tornam insustentável que um trabalhador que receba o salário mínimo, de pouco mais de R$ 1.000, consiga arcar com as despesas necessárias para manter as despesas da casa — água, luz, gás, aluguel.
“A agudização da luta de classes nas principais capitais do país explicita o caráter de urgência de movimentos como o MTST.”
Frequentemente, restam duas opções: se endividar com empréstimos bancários ou não pagar as contas. Em virtude do desemprego desenfreado no pós-pandemia, o MTST lançou a campanha “Contrate Quem Luta”, uma ação realizada para facilitar a contratação de membros do movimento nos mais diversos tipos de serviço. A campanha não só é inspiradora no âmbito da luta popular, mas faz algo esquecido por parte da esquerda há um tempo: o aproveitamento das ferramentas tecnológicas de massa. Entrando em contato com um número disponibilizado pelo grupo, o receptor recebe um catálogo com todas as profissões realizadas pelos militantes. Em entrevista à imprensa, diversos trabalhadores engajados no movimento afirmaram só conseguirem organizar suas contas após o projeto.
A opressão contra os trabalhadores sem-teto não para nas medidas econômicas, mas se estende a perseguições, ameaças, ataques físicos e desapiedada repressão estatal. Em um trecho de seu livro, Boulos descreve um relato de violência policial em uma ocupação em Osasco. A área havia sido ocupada um ano antes e era cercada de prédios abandonados, sem qualquer função social.
“O major responsável pela operação disse secamente que era um despejo. ‘Mas não fomos notificados, major!’. ‘Não importa. Vocês têm dez minutos’. E assim foi. Em dez minutos, a tropa avançou pelo terreno e começou a arrombar a porta dos barracos. Pedi um tempo ao major para fazer uma reunião com os moradores e explicar o que estava acontecendo. Ele deu o tempo. Mas, quando mal tínhamos feito uma roda e começado a falar, jogaram uma bomba de gás lacrimogêneo em cima das pessoas. Idosos, grávidas, crianças de colo… todos correram tentando se proteger. Era apenas o começo de um dia de terror.”
Todas as conquistas do MTST são parte de uma luta quase secular envolvendo ocupações, manifestações, assembleias e reuniões de negociação com órgãos de Estado e privados. Diante dos ataques sofridos às ocupações e militantes, o preconceito joga a favor do grupo social minoritário que deseja maximizar seus lucros, mesmo que isso signifique que a maioria das pessoas não tenha um teto para morar. Fortalecer o MTST e os movimentos de lutas populares por moradia e direito à cidade é uma responsabilidade de todo socialista. A agudização da luta de classes nas principais capitais do país explicita o caráter de urgência de movimentos como o MTST. Só a luta muda a vida. Sem o MTST, não há dúvidas, a tarefa seria bem mais difícil.
Fonte da matéria: Os socialistas não vão ocupar minha casa e invadir minha fazenda? – https://jacobin.com.br/2022/10/os-socialistas-nao-vao-ocupar-minha-casa-e-invadir-meu-sitio/
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